A televisão e a invenção da democracia em Portugal

Television and the Invention of Democracy in Portugal

 

 

Carla Baptista

ICNOVA/NOVA FCSH (Portugal)

https://orcid.org/0000-0002-8188-3567

 

 

Este texto analisa as mudanças ocorridas na televisão portuguesa (RTP) na transição para a democracia possibilitada pelo golpe militar de 25 de abril de 1974. Assinala as principais características da televisão durante a última fase do Estado Novo e sinaliza a coexistência da informação subordinada à propaganda do regime de Marcelo Caetano (1968-1974) com a modernidade de vários programas culturais e de divulgação não diários. A partir do mapeamento dos momentos chave da informação televisiva ocorrida no primeiro mês da nova RTP revolucionária, reflete sobre o papel dos media na construção da memória coletiva e das narrativas históricas.

Palavras chave

Televisão, Portugal, 25 abril, Democracia, Jornalismo, Memória

 

 

 

This text analyses how Portuguese television (RTP) changed during the transition to democracy by the military coup of April 25, 1974. It highlights the main characteristics of television during the last phase of the Estado Novo. It signals how the Marcelo Caetano (1968-1974) regime's subordination of information to propaganda coexisted with the modernity of various non-daily cultural programs. The mapping of key moments of television information that occurred in the first month of the new revolutionary RTP reflects the media's role in the construction of collective memory and historical narratives.

Keywords

Television, Portugal, 25 April, Democracy, Journalism, Memory


 

 

A RTP no período marcelista: entre a propaganda e o projeto cultural

 

Em 1974, a RTP era a única televisão existente em Portugal e a arma mais forte de propaganda da ditadura. Na última fase do regime, com Marcelo Caetano a presidir ao governo, após ter sido nomeado em 1968 pelo presidente da República, Américo Tomás, para substituir António de Oliveira Salazar, foi o centro nevrálgico da comunicação política marcelista. Este texto sintetiza as principais contiguidades e rupturas entre a televisão da ditaura e a televisão da democracia, recorrendo à análise e interpretação da programação que caracterizou o último ano do regime marcelista e os primeiros meses da televisão após a revolução de abril.

Salazar ocupou o poder desde 1926, primeiro como ministro das Finanças da ditadura militar que derrubou o regime liberal da I República (1910-1926), depois como presidente do Ministério e, a partir de 1933, com a aprovação da Constituição, como presidente do Conselho. As emissões regulares iniciaram-se em 1959 e por isso a televisão não é tão longeva como a mais longa ditadura da Europa ocidental, mas foi um seu aliado forte devido à censura e à clamorosa omissão de notícias sobre acontecimentos relevantes sempre que eram danosas para os interesses do regime. Francisco Rui Cádima (1996, 2014) considera que a RTP foi um aparelho — técnico e discursivo — determinante para a legitimação e a longevidade da ditadura. Cândido de Azevedo (1999), antigo colaborador do jornal República e da revista Seara Nova, participou na clandestinidade na luta contra o fascismo, foi refugiado político em França entre 1968 e 1974 e catalogou a RTP como uma «máquina de desinformação».

Mesmo num ambiente de relativa «invisibilidade», para usarmos a expressão de Francisco Rui Cádima ao referir-se à presença de Salazar na televisão, que contrastou com a «presencialidade» de Marcelo Caetano, desde o seu início que a RTP esteve sempre no centro da vida política portuguesa. A exoneração de Salazar é feita pelo presidente da República a partir do Palácio de Belém e o discurso transmitido em direto pela RTP[1] constitui um dos anúncios mais lúgubres na história da televisão. Américo Tomás refere a gravidade da doença de Salazar, que se encontra em estado de coma, multiplica os encómios à sua figura e não elogia Marcelo Caetano, limitando-se a nomeá-lo secamente como o novo presidente do Conselho de Ministros. Foi a primeira e única vez que usou os seus poderes, conferidos pelo nº 1 do artigo 81º da Constituição, e apenas, segundo o próprio, porque estavam «perdidas todas as esperanças de Salazar poder voltar a exercer, em plenitude, as funções do seu alto cargo».

Américo Tomás tornou-se presidente da República em 1958, depois de ter ocupado o cargo de ministro da Marinha durante 14 anos. O seu papel ao longo da ditadura está mal estudado, mas é consensual considerar que as relações com Marcelo Caetano foram marcadas por uma desconfiança inicial nunca superada. Via Marcelo Caetano como mentor de uma corrente reformista e modernizadora que pretendia para as colónias uma autonomia progressiva e participada e forçou o compromisso de não alterar a política ultramarina. Os historiadores Fernando Rosas e Pedro Aires Oliveira (2004) consideram que, entre outros fatores, a incapacidade de Marcelo Caetano ultrapassar o bloqueio reformista imposto pelos ultras, protegidos e encabeçados por Américo Tomás, acabou por ditar a «transição falhada» e impor a solução revolucionária.

A ação política de Marcelo Caetano veio a demonstrar um apego firme à manutenção da integridade da nação, incluindo os territórios ultramarinos. Este foi um dos pilares da sua retórica nas eleições legislativas de 1969, as primeiras realmente disputadas durante a ditadura. Apesar de todas as intimidações e constrangimentos, uma oposição diversificada em pelo menos 3 correntes ideológicas diferenciadas e organizadas — a CDE representando os comunistas, a CEUD representando os socialistas e a CEM representando os monárquicos — resolveu levar a campanha até ao fim e ir a votos.

A campanha eleitoral de 1969 é considerada a génese dos futuros partidos portugueses e o primeiro teste falhado de Marcelo Caetano para a esperada transição democrática. Apesar do partido único, a União Nacional, ter ganho em todos os distritos e isso poder ser lido como legitimador da figura de Marcelo Caetano, também revelou a fraude em que assentavam as eleições. Menos de 30 % da população portuguesa maior de 21 anos estava recenseada e desses apenas 18,4 % participaram no ato eleitoral, ou seja, pouco mais de 296.000 pessoas[2], um número ridiculamente pequeno que traduz o elevado grau de desinteresse e apolitismo da população portuguesa. Por outro lado, o caderno reinvindicativo dos opositores ficou explicitado num documento assinado pela Plataforma de Ação Comum[3], que abolia todos os tabus do regime, exigindo o estabelecimento das liberdades de expressão, informação, reunião e associação, a extinção da polícia política, a libertação dos presos políticos, a liberdade sindical, a reforma da previdência social, a reforma agrária, a democratização do ensino e a resolução política das guerras do ultramar, na base do reconhecimento dos direitos dos povos à autodeterminação.

A forma como decorreu a campanha não deixou dúvidas sobre a sua ilegalidade, já que o governo autorizou a perseguição aos movimentos da oposição, através de restrições à sua ação, interrupção das atividades pela polícia política e por legionários, prisões e espancamentos de ativistas e cerceamento do acesso aos meios de comunicação social. Apesar deste cenário, a RTP não foi totalmente blindada contra a propaganda da oposição democrática e existem nos arquivos várias peças emitidas no Telejornal que confirmam a vitalidade das conferências de imprensa e das sessões de esclarecimento da CDE e da CEUD. Para além da importância que tiveram na definição da futura paisagem partidária do país, este ato eleitoral marca o início da disputa política mediada pela televisão que, por um curtíssimo espaço de tempo, organizou um simulacro de debate plural. A experiência deste período representa uma aprendizagem importante para o que se irá seguir ao 25 de abril, quando explodem as parcialidades políticas e o consenso monolítico dá lugar ao conflito agónico.

Os telespetadores viram pela primeira vez declarados opositores, como Mário Soares, Francisco Pereira de Moura, José Magalhães Godinho, Mário de Sotto Mayor Cardia, Etelvina Lopes de Almeida, Maria Barroso, Lindley Cintra, Nuno Teotónio Pereira e outr@s falarem desassombradamente de democracia e de liberdade em salas apinhadas de gente e com faixas alusivas às várias lutas em curso (movimento estudantil, libertação dos presos políticos, fim da guerra colonial e da censura). Mas, evidentemente, havia limites, muito mais estreitos na televisão do que na imprensa, onde a campanha eleitoral foi efetivamente vivida com uma rara abertura. No dia 6 de outubro, o jornal Diário de Lisboa, um dos favoritos da burguesia liberal e instruída da capital, divulgou uma carta do cabeça de lista da CEUD em Lisboa (Mário Soares) desafiando o cabeça de lista da União Nacional no mesmo distrito (Melo e Castro, um dos aliados mais próximos de Marcelo Caetano), para um debate na televisão. Nunca aconteceu, mas constitui um tímido sinal de uma perceção crescente do papel da televisão enquanto ator político em momentos de disputa ideológica.

Enquanto a maioria dos jornais se entusiasmava com a vibração crescente do inédito debate político, a RTP foi deixando de exibir as peças filmadas nos comícios da oposição, nunca se referiu à violência exercida contra os seus dirigentes e simpatizantes, e reforçou as intervenções comentadas dos marcelistas, vários deles ocupando posições de relevo em jornais com uma linha editorial oficiosa, como João Coito e Fialho de Oliveira, respetivamente chefe de redação e repórter parlamentar no Diário de Notícias.

No dia 26 de outubro de 1969, os resultados eleitorais foram transmitidos numa emissão especial cujo frenesim simulava uma democraticidade inexistente: os locutores Henrique Mendes e Fialho Gouveia anunciam os números que vão chegando à sala de redação montada na secretaria de Estado da Informação e Turismo[4], repleta de jornalistas nacionais e estrangeiros. A pequena janela de oportunidade que se abriu para a oposição portuguesa neste período fechou-se abruptamente nos dias seguintes, marcados pelas prisões dos oposicionistas ligados aos socialistas, como Francisco Salgado Zenha, Jaime Gama e Raul Rego, e pelo exílio de Mário Soares. A RTP foi recapturada pela propaganda governamental e Marcelo Caetano assegurou-se que era controlada por figuras da sua confiança pessoal e política. O slogan eleitoral de Caetano evolução na continuidade — fez-se também sentir na RTP, com os lugares determinantes a serem ocupados por pessoas que garantiam que a redação do Telejornal não ousava ter uma voz, nem sequer para destacar os seus melhores desempenhos.

Em 1963, o desafio a este príncipio tinha custado o lugar ao jornalista Manuel Figueira, destituído do cargo de diretor da Divisão de Programas de Informação e Atualidades por ter coordenado um programa que assinalava as reportagens mais relevantes nos primeiros 5 anos de emissões regulares. O núcleo duro do regime não gostou de ver o presidente norte-americano John Kennedy elogiado na televisão, cuja eleição em 1960 figurava nessa escolha apesar de a sua administração se ter oposto à política colonial salazarista. Mas a maior afronta foi o programa ter sido anunciado como «o ponto de vista da redação», segundo Vasco Hogan Teves (1998).

Em 1969, a nomeação de Ramiro Valadão para presidente do Conselho de Administração, substituindo o anterior comissário político nomeado por Salazar, Manuel Maria Múrias, garantiu um Telejornal completamente alinhado com o regime e introduziu algumas novidades. Valadão afirmou em entrevistas posteriores (1996) terem sido ideias suas sugeridas tanto a Marcelo Caetano, no caso do programa Conversas em família, em que se dirigia diretamente ao povo português, explicando (e sobretudo louvando) a sua política[5]; como ao secretário de Estado da Informação, Moreira Baptista, que abriu várias vezes o Telejornal com textos opinativos (eufemisticamente chamados crónicas) de elogio ao governo.

No essencial, a redação do Telejornal pouco se alterou, mantendo-se circunscrita a cerca de 10 redatores, a maioria recrutados nos círculos culturais das juventudes (ou mocidades, como se dizia) da União Nacional, dirigidos por jornalistas experientes e de confiança, designadamente Vasco Hogan Teves e José Mensurado. Vasco Teves sobreviveu ao 25 de abril de 1974, apesar de ter sido afastado do Telejornal e transitado para o departamento de Relações Exteriores, uma espécie de «prateleira» para onde se enviavam os quadros caídos em desgraça. Ramiro Valadão e José Mensurado, muito mais antipáticos ao poder revolucionário pela sua declarada cumplicidade ideológica com o regime anterior, foram saneados e o primeiro foi preso e julgado, tendo sido condenado a 4 anos de prisão pelos crimes de abuso de confiança e burla[6].

Apesar do rígido controlo da informação, a visão de Marcelo Caetano e dos seus «proxies» para a televisão e para os media em geral deixou um legado importante para o projeto de televisão revolucionária que se instalou após o golpe militar de abril de 1974. Depois da anomia comunicativa de Salazar, que delegou no aparelho censório o controle da política de informação do Estado Novo, Marcelo Caetano compreendeu o poder da televisão e a necessidade de a instrumentalizar em benefício próprio. A construção da sua persona política fez-se pela apoximação retórica ao povo, que praticamente não teve existência política concreta durante o período salazarista após o fim das experiências culturais dinamizadas por António Ferro (via imprensa e cultura popular) e por Leitão de Barros (via cinema e artes plásticas), e foi relegado para a invisibilidade na televisão. Marcelo Caetano buscou legitimidade através da reinvenção da entidade povo, novamente convertido em sujeito político, embora destituído da possibilidade de uma intervenção real nos destinos do país. Em troca de popularidade, coordenou uma reforma que melhorou as condições de proteção dos trabalhadores rurais, reestruturou as Casas do Povo e chamou para o governo pessoas que tinham preocupações sociais progressistas.

As biografias de Marcelo Caetano referem habitualmente o seu papel no recrutamento de tecnocratas que modernizaram as áreas da política económica, industrial e externa, mas destacamos igualmente o médico Lopo Cancela de Abreu, ministro da Saúde e Assistência, e José Luís Nogueira de Brito, subsecretário de Estado do Trabalho e Previdência, que alargaram os cuidados de saúde primários a uma população praticamente privada de assistência, sobretudo nos meios rurais, e criaram as bases de um programa nacional de assistência social. Já na segunda fase do marcelismo, que se inicia com as eleições legislativas de 1973, num ambiente de crescente isolamento internacional devido à intransigência com a questão colonial e à diversificação e radicalização de redes transnacionais oposicionistas, é relevante a reforma na Educação protagonizada pelo ministro Veiga Simão, que criou em Portugal o ensino pré-escolar e os institutos politécnicos. A primeira medida facilitou às mulheres mães a entrada no mercado de trabalho, já que passaram a poder deixar os filhos num local seguro; a segunda abriu as portas da universidade a uma geração de jovens oriundos da classe média. As duas tiveram um efeito não previsto, que foi o aumento das lutas feministas e estudantis contra o regime, em resultado da politização crescente da população operária e estudantil.

A televisão do período marcelista dinamizou o repertório cultural e reativou a relação com os inteletuais, a maioria dos quais se tinha desligado do regime a partir do final da II Guerra Mundial. Na programação não diária, a RTP surpreende pela quantidade de inteletuais que passam a ter programas nunca antes autorizados, sendo que a maioria eram confessos não aliados e vários até oposicionistas (casos de Alexandre O’Neill, João Martins, Jorge Listopad, António Vitorino de Almeida, Francisco Tropa, Michel Giacometti, José Atalaya e outros). A mudança correspondeu a um desejo de diversificar a programação, tornando-a mais popular e, sobretudo, mais próxima das correntes culturais que corriam na sociedade portuguesa. A partir de 1969 surgem programas semanais dedicados à literatura, a vários estilos musicais, ao cinema, às artes plásticas, à ecologia, à tecnologia e ao humor que inovam do ponto de vista dos formatos, dos conteúdos e das linguagens.

A presença destes programas com uma filiação a intelectuais de esquerda, que puderam trabalhar e ganhar visibilidade pública apesar do apertado sistema censório, é um aparente paradoxo que, por um lado, remete para a complexidade das relações entre a política e os media na década de 70 do século XX e, por outro, ajuda a compreender a continuidade na programação após o 25 de abril de 1974. Quando as instalações no Lumiar, nome de código Mónaco, foram tomadas pelos militares revoltosos liderados pelo capitão Teófilo Bento, acompanhado do alferes Manuel Geraldes e do aspirante António Reis, a adesão dos jornalistas e dos restantes funcionários foi imediata. Em poucas horas, a RTP passou a combater ao lado do novo poder. A questão mais difícil, porém, era saber que televisão era necessária para servir a revolução.

 

 

A RTP no período revolucionário: informar, doutrinar e mobilizar

 

No documentário Os Olhos da Revolução[7], de Jacinto Godinho (2024), o então aspirante (miliciano) António Reis, mais tarde historiador, diz visivelmente emocionado ao jornalista belga Josy Dubié (que chegou a Portugal no dia 26 de abril para filmar a revolução): «Eu odiava aquela televisão. E por isso tomei-a com uma particular ferocidade».

A ferocidade correspondeu a um gozo particular, que contagiou todos e se manifesta logo no primeiro Telejornal após a tomada da RTP pelos militares. É uma emissão especial[8] que tem inicio às 18:40 do dia 25 de abril com a leitura do primeiro comunicado do MFA e termina na madrugada do dia 26 com a leitura, já em estúdio, do comunicado da Junta de Salvação Nacional (JSN), encabeçada pelo general Spínola. No inicio vemos os dois locutores de serviço — Fernando Balsinha e Fialho Gouveia — lerem com semblantes solenes os comunicados do MFA (Movimento das Forças Armadas, que concretizou a operação Fim de Regime), intercalados com excertos de música clássica. Cercada pelos militares, que não autorizaram a saída de uma equipa com receio que fosse hostil aos seus objetivos, a RTP quase falhou a cobertura do dia fundador da democracia portuguesa. Dizemos quase porque, pelas 16:00, os operadores de imagem João Rocha e José Manuel Tudela conseguem retirar as câmaras e vão para a rua filmar. Chegam a tempo de registar a rendição de Marcelo Caetano no Quartel do Carmo, pelas 18:30, e são essas as imagens em bruto que Fialho Gouveia começa a mostrar, falando de improviso e totalmente rendido aos militares que libertaram a RTP.

Nas instalações da televisão encontram-se já muitos jornalistas de outros órgãos de comunicação social, e o tom é de convivio fraterno e entusiasmo galopante. As imagens do Carmo são apresentadas como «imagens livres, não editadas», mas a investigação de Jacinto Godinho mostra como existiu alguma edição, retirando as cenas de pancadaria na rua e perseguição aos agentes da PIDE, que ocorreram nas ruas adjacentes à sede da polícia política em Lisboa. Alguém na RTP, cuja identidade é desconhecida, decidiu que não era conveniente mostrar ao país um povo enraivecido, cheio de desejo de vingança por décadas de perseguições e prisões injustas. O que vemos, e corresponde ao sentimento coletivo mais forte, é uma multidão exaltante, épica na sua alegria, que abraça os soldados e enche as ruas com gritos e palavras de apoio à revolução.

Esse primeiro e discreto gesto censório é premonitório das hesitações dos futuros governantes da televisão. Dentro de um quadro geral de abolição da censura aos media e restauração das liberdades, que serão sempre as conquista maiores de abril, existiram tentativas de controlar e direcionar a RTP para um projeto comunicacional subordinado a uma lógica política. Essa é uma das razões pelas quais consideramos que as rupturas coexistem com as continuidades, embora com diferentes intensidades em função dos vários períodos que se seguiram ao dia 25 de abril.

Outro exemplo de contiguidade que existe entre a televisão marcelista e vamos chamar-lhe a televisão spínolista, pois corresponde ao período em que o general lidera a JSN, até ao 30 de setembro de 1974, é o facto do último diretor de Informação (na prática, o chefe do Telejornal) do marcelismo, Vasco Hogan Teves, ser também o primeiro diretor de informação da JSN. Vasco Teves e Miguel Araújo (antigo diretor de programas) coordenaram a gigantesca operação de cobertura televisiva das manifestações do Dia do Trabalhador, celebrado a 1 de maio em todas as capitais de distrito portuguesas. Com o profissionalismo e a experiência adquirida, conseguiram gerir uma logística complicada, num dia em que os militares, sobretudo os mais conservadores, temiam que existisse descontrolo nas ruas. Vasco Teves conta em entrevista, com a bonomia de um sobrevivente de 93 anos, que a equipa militar lhe deu todos os meios necessários, incluindo helicópteros para transportarem os filmes dos locais onde se organizaram manifestações, o que significa no país inteiro: «Tínhamos uma linha especial de telefone na redação ligada aos militares e era só pedir que os transportes apareciam»[9].

Algumas das manifestações foram filmadas pelos operadores de câmara do Exército porque os recursos da RTP eram insuficientes para chegarem a todo o lado. Outro dado curioso, igualmente referido por Vasco Teves, é que nenhum dos redatores do Telejornal se recusou a cumprir a missão, mesmo os convictos salazaristas que, por causa dessa filiação ideológica, foram afastados no final de maio de 1974. No dia 1 de maio, aguentaram estoicamente a onda jubilosa das massas populares que encheram as ruas de bandeiras vermelhas.

Foi o reconhecimento pelo bom serviço prestado à revolução que poupou Vasco Teves às suspensões de serviço iniciadas no dia 2 de maio (Rezola e Marques Gomes, 2014), embora fosse retirado do centro da ação que era o Telejornal e remetido para funções mais institucionais na Direção de Relações Exteriores. Os saneamentos atingem as chefias da maioria dos departamentos, incluindo as áreas técnicas, a programação e a informação. São também suspensos alguns locutores que, mesmo não tendo responsabilidades editoriais, eram vistos como os rostos do antigo regime. É o caso de Henrique Mendes, uma espécie de «senhor televisão» que, pela sua presença constante nos telejornais, nas cerimónias públicas, no Festival da Canção, nas galas e nas viagens das comitivas oficiais, simbolizava um fio com o passado que os militares quiseram cortar.

A segunda contiguidade que liga a administração militar à anterior governação é uma tomada de consciência do poder da televisão. Apesar da revolução ter sido mediada desde o inicio pelos media, começando pela leitura das senhas-canção através da Rádio Renascença e da instalação do «posto de comando do MFA» no Rádio Clube Português, onde foram lidos os primeiros comunicados, os capitães de abril não tinham um plano para os media. Existiram contatos com alguns jornalistas, designadamente Álvaro Guerra, ligado ao Partido Socialista (PS), que soube antecipadamente do inicio das operações e preveniu um grupo de amigos cineastas[10] que sairam de madrugada para filmarem as movimentações militares. Mas foram estabelecidos através de relações informais de amizade.

Uma vez concretizada a queda do regime, houve uma necessidade imediata de institucionalizar a gestão da RTP. Analisando as «estratégias liberais e dirigistas» aplicadas aos media neste período, Mário Mesquita (1998) descreve a televisão como «o nó górdio do sistema de comunicação social». Continuava a ser o centro nevrálgico do sistema mediático mas os novos desafios vieram complexificar a relação entre a televisão e o poder. A programação da televisão e a forma de a gerir tornam-se uma preocupação política. Entre 1974 e 1976 são inúmeras as comissões administrativas encarregues de adequar a televisão ao programa do MFA e conter as pressões de vária ordem e origem que tentam condicioná-la. A primeira acontece em 16 de maio de 1974, na dependência direta da JSN, composta pelo capitão de fragata Guilherme Conceição e Silva, pelo tenente coronel Costa Brás e pelo major Duarte Ferreira. As suas intenções são apresentadas em entrevista realizada pelo jornalista Luis Filipe Costa[11] e o tratamento amigável — «o nosso comandante» — revela a cumplicidade instalada entre os dois campos profissionais. Os militares estão ali para garantir o pluralismo e a isenção da televisão, que deverá ser «inventada» por um grupo de personalidades civis convidadas a fecharem-se numa sala «até sair fumo branco como na eleição do Papa», ironiza Conceição e Silva.

Esse periodo corresponde ao festivo maio de 1974, em que a alegria invadiu a RTP e quebrou os códigos sobre os modos de fazer televisão em Portugal. É um mês de fruição da nova condição dos repórteres de televisão, que descobrem o poder das perguntas livres, o prazer da reportagem nas ruas, a centralidade dos debates organizados em estúdio e a importância de dar as notícias sobre uma realidade dinâmica e complexa. Luis Filipe Costa é o jornalista mais inventivo da nova televisão. Vindo do Rádio Clube Português, onde já tinha conquistado uma fama tremenda pela sua voz quente e por ter introduzidos os noticiários de hora em hora e revolucionado a linguagem da informação radiofónica — por exemplo, fazendo cair os artigos e os verbos para encurtar as frases, eliminando os títulos honoríficos e os excessivos formalismos atribuídos aos políticos — é o primeiro a ousar experimentar as possibilidades oferecidas ao jornalismo televisivo pelo fim dos protocolos visuais impostos pela ditadura.

O programa TV7[12], um espaço semanal de informação que já existia e que é transmitido no dia 28 de abril de 1974, é exemplar dessa mudança. Apresentado por Luis Filipe Costa e por uma jovem locutora que irá tornar-se uma das protagonistas femininas do jornalismo pós-revolução, Maria Margarida, desenrola-se no cenário de um estúdio com reposteiros escuros e uma comprida mesa, mas subverte todas as restantes expetativas. Os convidados estavam todos impedidos de entrar na televisão da ditadura pelas suas posições antifascistas — desde Carlos Carvalhas e Urbano Tavares Rodrigues, militantes do PCP (Partido Comunista Português), Maria Lamas (a escritora feminista condenada ao exílio por Salazar), Baptista-Bastos (escritor e jornalista n’ O Século), Vitor Wengorovious (advogado ligado à causa da libertação dos presos políticos) e Reinaldo Nascimento, de 26 anos, representante da classe operária revolucionária.

Luis Filipe Costa entrega o microfone aos convidados para serem eles a fazerem as perguntas, Baptista Bastos emociona-se e chora ao recordar como deu a notícia da revolução vitoriosa ao seu amigo Manuel da Fonseca, escritor comunista impedido de trabalhar durante a ditadura, que sobrevivia escrevendo sob pseudónimo em jornais amigos. Maria Lamas encerra o programa depois de um longo silêncio em que medita sobre a pergunta que lhe é feita — o que quer dizer aos portugueses neste momento? — e ninguém parece incomodar-se com a demora na resposta, que chega, finalmente, luminosa: «Não é dificil uma pessoa sentir-se compelida a entusiasmar os outros!».

A televisão é nos primeiros dias um espaço de afetos e encontros, onde as histórias das pessoas silenciadas durante anos podem ser contadas e celebradas. Um dos mais comoventes documentos visuais é a reportagem da libertação dos presos políticos da prisão de Caxias[13], emitida no dia 27 de abril, da autoria do jornalista Jaime de Saint-Maurice, que entrevista históricos da luta antifascista, como Palma Inácio, Nuno Teotónio Pereira, José Manuel Tengarrinha, Manuel Serra e outros. É a primeira vez que na televisão portuguesa se fala das torturas praticadas pela PIDE, da dureza das penas e da ilegalidade dos julgamentos realizados pelos tribunais plenários, onde os juízes eram complacentes com os agentes e intimidavam os detidos e os seus advogados de defesa. São testemunhos rápidos, feitos em plena vivência emocional da saída iminente da prisão, nalguns casos após vários anos de detenção, com os familiares e os amigos no exterior à espera do reencontro. Comprovam a força telúrica da televisão, capaz de criar vibrações novas, provocando abalos simbólicos e epistemológicos. Será também por estas linhas fraturadas que se irá escrever a futura narrativa da história portuguesa sobre o seu passado ditadorial recente.

 

 

Conclusão

 

A televisão age sobre o tempo e cria historicidade, isto é, constrói a forma como inscrevemos a história na memória. Maurice Halbwachs (1950) salientou como a memória é coletiva — raramente nos lembramos sozinhos — e comunicativa, isto é, expressa subjetividades e sinaliza pertenças identitárias, existindo na interação com os outros. Este é um traço evidente na memória coletiva do 25 de Abril, em grande medida construída através de laboriosa montagem de farrapos jornalísticos e mediáticos, que perduram como os momentos fortes de uma cronologia longa, se considerarmos a complexidade do processo histórico que compreende as mudanças provocadas pelo 25 de abril.

Esta consciência é importante na revisitação da programação da RTP, que não se limitou a relatar os acontecimentos, mas participou na construção das narrativas sobre a revolução. Tendo em conta o carácter inacabado do projeto holístico que animou o gesto dos capitães de abril, e a contínua reativação dos ideais de abril nas lutas do presente, a televisão interferiu decisivamente no presente vivido em 1974, mudou a perceção do passado ditatorial e continua a projetar o futuro.

O olhar sobre a RTP que apenas a vê sujeitada aos vários poderes políticos e militares não abarca a dimensão fundamental da relação entre os media e a política. Os media definem os enquadramentos socio-tecnológicos em que os acontecimentos são produzidos, circulam e são interpretados e resignificados. No caso do 25 de abril, as mudanças que ocorrem na RTP são simultaneamente a causa e a consequência desta premissa, exponenciada pela circunstância excecional da revolução sinalizar também a passagem da proto televisão para a televisão democrática. A súbita abundância de informação substitui décadas de escassez, complexificando e diversificando as relações entre os media e a política, mas também entre os diferentes media e os seus públicos. No babélico cenário pós-revolucionário, a televisão ocupou um espaço central, e também por isso os debates sobre a sua existência e vocação alcançaram uma enorme reverberação social.

Quisemos sublinhar neste texto a importância da herança comunicacional legada pelo regime de Marcelo Caetano, cujos traços são replicados e prolongados na RTP revolucionária. Entre estes, destaca-se a mobilização do povo como agente legitimador da ação política e jornalística, desta vez com uma genuína ocupação do espaço televisivo e não apenas como figurante passivo, como aconteceu no regime anterior. É ainda aprofundada a relação com os agentes culturais, em particular os cineastas, os músicos e os artistas plásticos, gerando uma qualidade criativa sem paralelo na história da televisão. Finalmente, concretiza-se plenamente aquilo que o regime marcelismo tinha apenas insinuado, isto é, a afirmação de uma voz de jornalista de televisão, e sobretudo de repórter de televisão, ainda amputada de dimensões inclusivas centrais — continua a ser uma cultura extremamente masculinizada — mas que procura avidamente recuperar o tempo perdido e sintonizar a RTP com as práticas internacionais do jornalismo televisivo moderno e democrático.

 

 

Fontes e bibliografia

 

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Halbwachs, Maurice. (1950). La memóire collective. Paris: Presses Universitaires de France.

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Cómo citar este artículo: Baptista, C. (2024). A televisão e a invenção da democracia em Portugal. TSN. Transatlantic Studies Network, (17), 122-129. https://doi.org/10.24310/tsn.17.2024.20716. Financiación: Financiado por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projeto refª: UIDB/05021/2020.



[1] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/americo-tomas-anuncia-exoneracao-de-salazar/

[2]Ver a síntese elaborada por Ricardo Revez sobre as eleições de 1969, acessível em https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/eleicoes-legislativas-1969.aspx

[3] Trata-se de um encontro nacional ocorrido no dia 15 de junho de 1969, em S. Pedro de Moel, que reuniu as principais linhas de pensamento político no combate à ditadura, visando estabelecer uma unidade de entendimento para as eleições de outubro desse ano.

[4] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/resultados-das-eleicoes-para-a-assembleia-nacional/

[5] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/retratos-de-uma-televisao-publica-parte-i/

[6] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/julgamento-de-ramiro-valadao/

[7] https://www.rtp.pt/play/p13273/os-olhos-da-revolucao

[8] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/noticiarios-sobre-a-revolucao-de-25-de-abril-de-1974/

[9] Entrevista pessoal realizada em setembro de 2024.

[10] Fernando Matos Silva foi um dos que aguardou em casa até ouvir a canção Grândola, Vila Morena, de José Afonso, e depois saiu para filmar, tendo utilizado essas imagens no filme coletivo Caminhos da Liberdade (1974).

[11] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entrevista-a-comissao-do-mfa-encarregada-de-reestruturar-a-rtp/

[12] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/tv7-parte-i/

[13] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/libertacao-dos-presos-politicos/