Monográfico. Sección I
TSN nº 16, 2024. ISSN: 2530-8521
TECNODISCURSOS SUBVERSIVOS. MILITANTISMO DIGITAL NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19
Subversive Tecnodicourses. The Digital Militantism in the Context of the Pandemic of Covid-19
Mariana Morales da Silva
UFSCar/Capes (Brasil)
https://orcid.org/0000-0002-0413-9558
Julia Lourenço Costa
CEDOCH-DL-USP (Brasil)
https://orcid.org/0000-0001-8571-8879

RESUMEN

No marco da pandemia do coronavírus surgiram diferentes ativismos atravessados pelo digital em uma relação de apoio/conflito com os meios massivos frente as medidas governamentais para controlar os surtos. Ao indagar sobre os novos modos de participação sociopolítica, o estudo focaliza uma prática de ativismo urbano colada à lógica do tecnodiscurso (Paveau, 2021a) para compreender o funcionamento de um discurso subversivo materializado em cartazes militantes com os dizeres #YoMeQuedoSinCasa (Barcelona, maio/2020). O caso é analisado em relação aos tecnodiscursos que este subverte: a propaganda governamental #QuedaTeEnCasa e a resposta massiva, #YoMeQuedoEnCasa, tecnodiscurso virtuoso (Paveau, 2015). Partindo da teoria da ressignificação (Paveau, 2021a) —sobre as práticas tecnodiscursivas de repetição subversiva pela web participativa— o estudo reflete sobre o militantismo do mundo híbrido (Castells, 2017) e analisa os aspectos pragmáticos, interacionais, enunciativos, semântico-axiológicos, discursivos, sociossemânticos e político-pragmáticos do discurso em questão. Conclui-se que o ativismo analisado está ancorado na tecnodiscursividade (Paveau, 2021b) para produzir um enunciado ressignificado com traços revolucionários, porque ao subverter o tecnodiscurso massivo, desnuda seu virtuosismo expondo uma ferida social de negligencia estatal e permite produzir tanto resistências como demandas de reparação.

Palabras clave: Pandemia da covid-19, ativismo digital, tecnodiscurso, ressignificação, discurso subversivo

ABSTRACT

In the framework of the coronavirus pandemic, aroused different activisms crossed by the digital in a relationship of support/conflict with the mass media in the face of government measures to control the outbreaks. When investigating the new modes of socio-political participation, the study focuses on a practice of urban activism attached to the logic of techno-discourse (Paveau, 2021a) to understand the functioning of a subversive discourse materialized in militant posters with the sayings #YoMeQuedoSinCasa (Barcelona, May/2020). The case was analyzed in relation to the techno-discourses that it subverts: the government propaganda #QuedaTeEnCasa and the massive response, #YoMeQuedoEnCasa, a virtuous techno-discourses (Paveau, 2015). Based on the theory of resignification (Paveau, 2021a) —about the technodiscursive practices of subversive repetition via web 2.0— the study reflects on the militantism of the hybrid world (Castells, 2017) and analyzes the aspects of pragmatic, interactional, enunciative, semantic-axiological, discursive, socio-semantic and political pragmatic of that discourse. It is concluded that the case of activism is anchored in techno-discourses (Paveau, 2021b) to produce a resignified discourse with revolutionary features, because by subverting massive techno-discourses, it strips its virtuosity, exposing a social wound of state negligence and allows it to produce both resistance and demands repair.

Keywords: Covid-19 pandemic, digital activism, techno-discourse, resignification, subversive discourse 
• Contenido •

Introdução

Peitos fartos, filhos fortes
Sonho semeando o mundo real
Toda gente cabe lá
Palestina, Shangri-lá.

Marisa Monte

No marco da pandemia do coronavírus, surgiram distintos ativismos ancorados nas redes sociais digitais, com maior ou menor articulação com o espaço urbano, estabelecendo relações ora de apoio ora de conflito com os meios massivos de comunicação frente aos episódios de surtos da covid-19 e medidas governamentais para a diminuição do número de contágios pelo vírus.

Nesse contexto, ao indagamos sobre os novos modos de participação sóciopolítica, o estudo visa compreender o funcionamento de um discurso subversivo no contexto da pandemia da covid-19. Para tanto, o presente estudo focaliza um caso da Espanha de ativismo urbano fortemente colado à lógica do tecnodiscurso (Paveau, 2021a e 2021b). Por meio de cartazes militantes com os dizeres #YoMeQuedoSinCasa 1, vistos no centro histórico da cidade de Barcelona, em maio de 2020, refletimos sobre a questão da ressignificação e o argumento da salamandra no militantismo digital (Paveau, Costa e Baronas, 2021).

Considerando a rede tecnodiscursiva que permite a existência da hashtag #YoMeQuedoSinCasa, reconstruímos um percurso que nos possibilita colocar o caso em análise na relação com os tecnodiscursos que subverte, quais sejam: a propaganda governamental do Ministério de Saúde do governo espanhol em sua versão televisiva e digital com os dizeres #QuedaTeEnCasa 2 e a resposta massiva, também parte da campanha governamental, #YoMeQuedoEnCasa 3, tecnodiscurso considerado virtuoso (Paveau, 2015).

Alicerçado na teoria de ressignificação (Paveau, 2021a), a qual busca dar conta de práticas tecnodiscursivas de repetição subversiva na web participativa, o estudo empreende um exercício analítico sobre o argumento da salamandra no militantismo do mundo híbrido (Castells, 2017). Tendo em vista, ao analisar o contradiscurso subversivo #yomequedosincasa por meio da teoria da ressignificação de Paveau, refletir sobre o caso de uma ferida linguageira não evidente do discurso primeiro, #yomequedoencasa e, assim expô-la para questionar o alcance de medidas protetivas a grupos vulnerabilizados no contexto da pandemia.

Nesse sentido, são analisados em profundidade os sete critérios que compõem a tipologia das práticas tecnodiscursivas de ressignificação proposta por Paveau (2021a), nos sentidos pragmático, interacional, enunciativo, semântico axiológico, discursivo, sócio semântico e pragmático político.

Por uma análise do discurso digital

Para tratar, então, da questão da ressignificação discursiva a partir do argumento da salamandra (Paveau, 2021a) no militantismo do mundo hibrido (Castells, 2017), recorremos à autora precursora da análise do discurso digital, Marie-Anne Paveau (2021b), pesquisadora francesa que tem se dedicado a investigar o funcionamento dos discursos nativos da web a partir de uma perspectiva ecológica, pela qual discurso, sujeito e máquina estão indissociavelmente integrados na produção dos tecnodiscursos ou discursos nativos da web.

É fato que as pesquisas sobre a comunicação digital têm proliferado no campo dos estudos das ciências humanas e das ciências sociais (Maingueneau, 2021). Afinal, «as ações e os efeitos do digital estão aí, o uso das tecnologias digitais, da internet e dos objetos conectados sendo progressivamente integrados a nossas existências» (Paveau, 2021b, p. 27) provocam um intenso atravessamento do digital nos espaços não-digitais ou pré-digitais, o que leva a uma hibridificação dos mundos (Castells, 2017) 4 de grande interesse para as pesquisas em ciências da linguagem. Porém, Maingueneau (2021) alerta para o fato de que ainda são poucas as pesquisas dedicadas à investigação do digital, que mobilizam a análise do discurso.

E ainda, quando as encontramos, de maneira geral, nas pesquisas das ciências da linguagem e, mais especificamente, da análise do discurso, o digital é explorado apenas como um suporte, um lugar outro onde os discursos se materializam. Dessa forma, ocorre uma marginalização da máquina, que nessa perspectiva é considerada como um componente extralinguístico, o que, segundo Paveau (2021b, p. 30), leva as pesquisas «a trabalhar com as formas necessariamente estereotipadas da língua», não considerando, assim, as particularidades e especificidades do digital como intrínseco aos discursos e sujeitos ali produzidos e, menos ainda, na relação de discursos que, pelas especificidades do digital, conseguem transitar entre o espaço não-digital ou pré-digital e o espaço digital.

Sendo assim, defendemos junto a outros colegas (Baronas, 2021; Costa, 2021) que cabe às ciências da linguagem se responsabilizar por essa demanda, uma vez que o discurso digital «coloca às ciências da linguagem, tais como praticadas até o momento, uma série de problemas que só podem ser resolvidos questionando os modelos conceituais» (Paveau, 2021b, p. 28).

É, então, pela perspectiva da análise do discurso digital, que segundo Baronas 5 a Linguística é questionada em sua esfera metodológica, teórica e epistemológica. Pois, segundo o investigador brasileiro, os discursos digitais impõem uma necessidade de atualização dos próprios métodos dessa ciência e coloca à prova seu arcabouço teórico para que, ao ser discutido, possa lidar de modo satisfatório com as novas discursividades.

Os discursos produzidos no espaço digital, da web, mais especificamente da web 2.0, devem, segundo Paveau, ser abordados como tecnodiscursos, nos quais o prefixo tecno- figura como uma

Opção teórica que modifica a episteme dominant e das ciências da linguagem. É também afirmar que os discursos digitais nativos não são de ordem puramente linguageira, que as determinações técnicas co-constroem as formas tecnolinguageiras e que as perspectivas logo e antropocêntricas devem ser descartadas em prol de uma perspectiva ecológica e integrativa, que reconhece o papel dos agentes não humanos nas produções linguageiras. (Paveau, 2021b, p. 31).

Os tecnodiscursos são, assim, os discursos nativos da web, aqueles que são produzidos no interior dos dispositivos técnicos. Dessa forma, a dimensão técnica é constitutiva desses discursos e, por isso, não se trata de um simples suporte para eles. Segundo a autora precursora da análise do discurso digital, a dimensão técnica infere inclusive sobre a forma como o discurso se organiza, haja vista que são

produzidos no interior dos dispositivos técnicos (os programas de escritura e de publicação) nos quais a dimensão técnica é constitutiva do discurso, não se reduzindo apenas a um simples suporte. Os tecnodiscursos são, indissociavelmente linguageiros e técnicos, duas faces que de tão imbricadas não permitem que a materialidade propriamente linguageira seja extraída das funcionalidades técnicas dos espaços conectados, sem que com isso, as análises sejam prejudicadas. (Paveau, 2021a, p. 19).

Assim, a autora atribui aos tecnodiscursos seis características:

  1. composição: além da combinação já mencionada do linguageiro e do técnico, que são indissociáveis, os tecnodiscursos podem se materializar na escrita, no som, na imagem fixa, animada ou compósita sincreticamente. Desse modo, como bem denominou Costa (2021), os tecnodiscursos apresentam uma «composição plurissemiótica»;
  2. são não linear: segundo a autora francesa, pela hipertextualidade, os tecnodiscursos compõem um «labirinto discursivo», pois eles incluem os mecanismos de acesso a outros discursos, como Costa (2021) exemplifica, pelo funcionamento de hiperlinks;
  3. ampliação: a capacidade de serem ampliados por meio das funções conversacionais e ferramentas de escrita colaborativa típicas da web. Alguns exemplos, como destaca Costa (2021), se dão pela inserção de comentários e compartilhamentos, ferramentas que, segundo Paveau (2021a), possibilitam desenvolver além dos conteúdos, os enunciados em si;
  4. relacionaridade: conforme a autora precursora da teoria, no espaço da web, as produções discursivas podem facilmente serem relacionadas umas com as outras e também com a máquina;
  5. investigabilidade: trata-se do que Costa (2021) sintetizou como «a capacidade de redocumentação». Segundo a pesquisadora francesa, Paveau (2021a), os tecnodiscursos, por terem seus metadatos internos inscritos na web, ou seja, por se inscreverem no código da web, compõem uma memória da rede e, por isso, podem ser pesquisados e redocumentados;
  6. imprevisibilidade: inerente a toda publicação. Os tecnodiscursos também perdem a sua parcela de autonomia, podendo escapar da previsibilidade pensada por seus produtores, pelos efeitos dos algoritmos e dos demais internautas.

É, então, por essa perspectiva notadamente ecológica, por meio da qual não se dissocia sujeito, discurso e máquina, que Paveau (2021a) indaga como, porque e quais recursos tecnodiscursivos são mobilizados pelos sujeitos para dizerem o que dizem. Buscando, pela teoria que desenvolve, compreender como é possível dar conta dos discursos que circulam na web, mais especificamente, na web 2.0, a qual está assentada na interação de vários agentes. A web das redes sociais digitais, do compartilhamento multimidiático e, por isso mesmo, denominada de web social ou participativa:

dita social, ou seja, que permite as interações entre os internautas por meio dos dispositivos tecnodiscursivos, como os comentários ou os compartilhamentos, que favorecem a circulação dos conteúdos. […] A web oferece, de fato, a possibilidade de numerosos usos relacionais a partir das disponibilidades e afordâncias que permitiram a emergência de práticas tecnodiscursivas. (Paveau, 2021a, p. 23).

Refletindo, então, sobre a perspectiva da análise do discurso digital proposta por Paveau, Maingueneau (2021) assinala no mínimo duas faces da web 2.0. De um lado, ela permite o compartilhamento do que o autor chama de «textos tradicionais», ou seja, produções assinadas por autores que são seus fiadores (Maingueneau, 2006). E por outro lado, ela também se apresenta como espaço onde circulam enunciados anônimos, sem controles e subordinações editorais. É por essa dupla possibilidade que a web 2.0 pode ser considerada como um campo político:

é muito menos evidente do que há alguns decênios, em que tudo acontecia entre o mundo político e as mídias tradicionais (imprensa escrita, televisão, rádio). Na realidade [da era da web 2.0] não existe mais essa divisão, tudo se encontra em interação constante com o universo digital inapreensível onde novos atores se expressam: não somente indivíduos «aleatórios», desconhecidos ou anônimos, mas atores coletivos de todas as espécies, que diluem as divisões políticas tradicionais. (Maingueneau, 2021, p. 13).

Segundo Maingueneau (2021), a web, como um campo político, opera como uma arena de disputa, na qual uma assimetria responde à outra. Em outros termos, o autor afirma que a investida massiva nas redes sociais digitais é uma das respostas ao fato de que os sujeitos são interditados de falar nos canais legítimos. Complementando esse raciocínio, Baronas (2021) comenta que na web 2.0 é «fácil e mais seguro republicar, inventar, parodiar, em uma palavra de Butler, reestabelecer os insultos no universo discursivo digital, subvertendo-os performativamente» (Baronas, 2021, p. 112). E, por último, ela também permite o fenômeno de «responder coletivamente» (Maingueneau, 2021).

Será nessa trilha que desenvolveremos o presen te estudo: compreender e analisar o funcionamento de um contradiscurso produzido por determinado grupo a partir de um discurso primeiro insultante. Trataremos, assim, de olhar a resposta que constitui a ressignificação, que, como primorosamente comentou Maingueneau, «consiste em não respondera agressão por meio de outra agressão, mas em refletir sobre ela e provocar sua exposição» (Maingueneau, 2021, p. 12).

Nesse sentido, embora Paveau (2021a) proponha uma teoria que visa dar conta de um trabalho do sujeito ofendido, subvertendo o discurso insultante a seu favor trazendo como exemplos casos calcados na relação com o discurso de ódio, ou seja, explicitamente ofensivos; nós, neste trabalho, investiremos sobre um caso de violência sutil, da ordem dos processos de invizibilização de grupos e sujeitos à margem do sistema.

Neste sentido, o caso eleito para este estudo, #YoMeQuedoSinCasa, resposta coletiva que interpretamos como subversiva a um discurso primeiro, #YoMeQuedoEnCasa, funciona com uma dupla perspicácia. Uma delas é, ao responder, engendrar uma reflexão sobre o discurso primeiro de violência simbólica, provocando assim, a exposição da ferida e da agressão antes não evidente (diferente dos casos de respostas a discurso de ódio nos quais a violência é evidente). E, a segunda perspicácia é que consegue questionar a hashtag massiva sem com isso cair nas tramas dos discursos negacionistas no contexto da pandemia da covid-19.

Ressignificação discursiva e o argumento da salamandra

Sabemos que a ressignificação, compreendida como um fenômeno de linguagem, já foi objeto de diversos estudos (Maingueneau, 2021). E que não é novidade que «pela linguagem mesma, o sujeito pode contorcer o sentido em outras direções, significando-o em outros discursos». (Dias, 2021, p. 115) seja nos espaços digitais ou nos espaços não digitais ou pré-digitais. Porém, Baronas (2021) alerta para o fato de que, embora a análise semântica muitas vezes seja suficiente para lidar com as mudanças de sentidos, quando tais mudanças integram dimensões técnicas, linguageiras, pragmáticas e políticas, tal abordagem mostra-se limitada.

Isso porque, quando pensamos a ressignificação como um processo que se dá no espaço digital — ou que mesmo em espaços não digitais traz marcas do discurso digital, considerando o hibridismo atualmente vivenciado —, são produzidos, conforme Dias (2021), outros modos de simbolização possíveis a partir das especificidades e particularidades do discurso digital.

Nesse sentido, é com base na análise de dados que circulam na web 2.0, que Paveau (2021a) propõe uma teorização da ressignificação discursiva, por meio da qual a pesquisadora busca dar conta dos contradiscursos de sujeitos ofendidos a partir de um primeiro discurso insultante, subvertendo o insulto ao seu favor, expondo tanto a ferida quanto o agressor e demandando reparação.

A ressignificação é, então, a «inversão ou a renegociação semântica e axiológica por recontextualização dos enunciados ofensivos (verbais, icônicos ou compósitos […] a partir de sua carga ofensiva, efetuada pelos sujeitos agredidos com efeito reparador» (Paveau, 2021a, p. 23). Trata-se de formas particulares de repetição subversiva e consiste fundamentalmente em uma atividade linguageira originada no sujeito ferido, e não no sujeito agressor.

É importante esclarecer que a autora pauta sua teorização no fenômeno dos contradiscursos feministas que respondem a práticas de ciberviolência calcadas no discurso de ódio. Considerando esse particular contexto, a autora se vale da metáfora da salamandra emprestada dos estudos de gênero na relação com a linguística, principalmente em Butler (1997).

Segundo Dias (2021), ao valer-se da imagem da salamandra como metáfora da ressignificação, a teoria é significada

pelo discurso da regeneração e não pela metáfora do renascimento, como poderia ser a Fênix mitológica. Ainda que bem menos imponente, no entanto, a salamandra tem a força de “regeneração decorrente de um ferimento”, marca no corpo da estrutura, mas capaz de produzir outros acontecimentos. Trata-se de uma regeneração do sentido pela palavra, mas também pela hashtag, pelas afordâncias da web. (Dias, 2021, p. 116).

Assim, a autora francesa compreende a ressignificação como um processo constituído de quatro etapas: 1) há uma ferida linguística, 2) ocorre uma reapropriação, 3) com inversão 4) e produção da ação. Sendo assim, a autora afirma que a prática de ressignificação é por excelência política, «porque ela produz efeitos sobre os posicionamentos dos sujeitos, interpelando-os a agir» (Paveau, 2021a, p. 25).

Em nosso caso, neste exercício que empreende mos aqui, como já mencionado, não pautamos nossas análises em um primeiro discurso típico de ciberviolência calcada no discurso de ódio. Falamos em mecanismos discursivos e tecnodiscursivos de marginalização e de invizibilização de sujeitos e grupos sociais rejeitados, esquecidos e/ou apagados na e pela sociedade. Compreendemos que, embora essas práticas façam parte de uma forma de violência, ao não estarem calcadas no discurso de ódio, muitas vezes performam como uma violência não explícita, ou seja, mais sutil e, por isso mesmo, mais facilmente naturalizadas e não questionadas. Nesse sentido, defendemos que nosso corpus constitui um material mais que interessante e rico de ser analisado, tão urgente quanto os contradiscursos apurados pela autora na formulação de sua teoria.

Do mesmo modo, com objetos de análise distintos, asseveramos que a ressignificação tal como é proposta por Paveau contribui para pensarmos a argumentação que sustenta um contradiscurso engendrado a partir de — e, então, na relação ecológica com — um enunciado ofensivo — seja a ofensa explícita ou não — reabilitando o seu poder de ação (Butler, 1997 apud Paveau, 2021a).

Outro ponto importante de ser destacado é que Paveau (2021a) tem como preocupação desenvolver a teorização da ressignificação de tal forma a convertê-la em uma noção possível de ser operada para a análise do discurso:

Essa teorização excede a própria prática de reapropriação das designações de pessoa e se desvencilha da abordagem lexical ou categorial frequentemente apresentada para exemplificar a ressignificação. Ela se abre para outras práticas e táticas discursivas, permitidas pelos universos discursivos digitais, mas não por eles apenas, envolvendo não somente os designativos, mas os discursos, os signos, as imagens, os sons. A ressignificação não é, portanto, apenas um processo semântico-pragmático, mas um dispositivo discursivo total, que envolve formas discursivas variadas e plurissemióticas. (Paveau, 2021a, p. 30).

Desse modo, a teorização proposta por ela é a teoria da ressignificação discursiva, fundada em um conjunto de práticas tecnodiscursivas em circulação na web 2.0. Segundo ela, tal fenômeno «fica mais evidente no digital. A partir das funcionalidades técnicas da máquina, os sujeitos encontram maior possibilidade de agir e dar visibilidade ao poder de resposta coletivo» (Paveau, 2021a, p. 20).

Relacionando a ressignificação às seis características que a autora atribui aos tecnodiscursos, segundo ela, podemos encontrar uma relação com o caráter de ampliação, de relacionalidade e de imprevisibilidade, principalmente.

O aspecto da ampliação se manifesta pelo efeito de ampliação da enunciação primeira, quando a ressignificação provoca uma retomada do discurso do outro. Já o aspecto da relacionalidade se dá pelo fato de que os enunciados digitais nativos da web, os tecnodiscursos, estão internamente conectados ou ainda por, na repetição subversiva, ficar fácil de relacionar o discurso primeiro, insultante, ao contradiscurso. E, finalmente, a imprevisibilidade, pois o discurso primeiro, ao circular na web, pode ter sua trajetória subvertida.

Paveau, então, estabelece 7 critérios linguístico-(tecno)discursivos da ressignificação entendida como processo discursivo-político (2021a, pp. 38-39). São eles:

  1. Critério pragmático: existe uma ferida linguageira provocada pelo insulto, estigmatização, ataque, etc., a respeito da identidade de uma pessoa ou grupo.
  2. Critério interacional: uma resposta ao enunciado ofensivo é produzida.
  3. Critério enunciativo: o sujeito agredido é a origem enunciativa da resposta, que ele retoma do enunciado ofensivo por conta própria como auto-categorização, ou ele provoca uma simples recontextualização.
  4. Critério semântico-axiológico: o enunciado resposta compreende uma inversão ou mudança semântica e/ou axiológica.
  5. Critério discursivo: o enunciado-resposta é produzido em contexto diferente do enunciado ofensivo, que é recontextualizado pela «abertura a contextos desconhecidos» (Butler, 2005, p. 234).
  6. Critério sócio-semântico: o uso recontextualizado do elemento liguageiro é julgado como aceitável e reconhecido como tal pelos sujeitos implicados, que formam um sujeito coletivo.
  7. Critério pragmático-político; o enunciado ressignificado é revolucionário, pois produz uma reparação e uma resistência, ampliando a coesão do sujeito militante (Kenert, 2010).

Tendo os sete critérios como base, podemos resumir a definição de ressignificação da seguinte forma. A ressignificação, entendida como uma prática linguageira, efetuada por um sujeito individual ou coletivo (3) que se sente ofendido por um discurso primeiro entendido (1) como insultante, opera como uma resposta (2) ao discurso primeiro por meio da auto-categorização ou recontextualização simples (3). A recontextualização engendra um retorno do enunciado considerado ofensivo (4) em um contexto alternativo (5) gerando um novo uso para o enunciado. Este novo uso (4) passa a ser aceito coletivamente (6) produzindo uma forma de resistência e demanda por reparação (7).

O contradiscurso #YoMeQuedoSinCasa e sua rede tecnodiscursiva

Como já mencionado, nosso estudo analisa um caso de ativismo urbano intrínseco à lógica do tecnodiscurso. Para tanto, focalizamos o caso da hash- tag #YoMeQuedoSinCasa, nos espaços não digitais e digitais, ou seja, tanto de fotos de nosso arquivo pessoal de cartazes vistos no centro histórico da cidade de Barcelona, em maio de 2020, quanto capturas de tela de publicações em redes sociais digitais, que ampliaram os espaços de circulação dos cartazes, além dos tecnodiscursos que a hashtag analisada subverte: #QuedaTeEnCasa e #YoMeQuedoEnCasa, hashtags pertencentes a propagandas de campanha governamental de conscientização e incentivo à prática de confinamento durante a primeira onda da pandemia na Espanha.

Nosso delineamento temporal é relativamente curto, entre os meses de maio e de junho de 2020, considerando o momento chave de surgimento do contradiscurso, no início do desconfinamento da cidade de Barcelona, Espanha, até a reverberação da questão denunciada no contradiscurso nos meios de comunicação massivos.

Nosso corpus, então, é constituído por uma pequena coleção (Paveau, 2021a) de fotos e publicações em redes sociais digitais, recolhidas nos espaços digitais e não digitais ou pré-digitais. A coleta do corpus em espaços não digitais ocorreu no exercício de rastreamento ao voo, denominação que parte do conceito de « corpus ao voo», desenvolvido por Sophie Moirand:

expressões linguísticas coletadas pelo pesquisador durante suas leituras ou viagens pessoais, e o que ele ouve na rua, meios de transporte, lojas, salas de espera, etc., equipado com um caderno e lápis, um pequeno gravador de som ou seu celular para coletar, por exemplo, grafites que, adicionados a cartazes publicitários ou eleitorais, ajudam a desviar a mensagem original. (Moirand, 2018/2020, parágrafo 14, citado por Paveau, 2021a, pp. 40-41).

Já, nosso critério de seleção do material digital, está pautado nas características que Paveau (2021b) atribui aos tecnodiscursos, sendo elas principalmente: a composição , mescla do linguageiro e técnico, sobretudo, permitindo tanto a relacionaridade quanto a circulação do contradiscurso oriundo do espaço não digital (cartazes vistos no centro velho da cidade de Barcelona) para os espaços digitais (publicações nas redes sociais Twitter e Instagram); a relacionaridade , o que possibilita facilmente perceber a relação dos (tecno)discursos, #YoMeQuedoSinCasa e #YoMeQuedoEnCasa; a ampliação , que permitiu junto com a imprevisibilidade a construção de um enunciado subversivo a partir de um discurso primeiro (#YoMeQuedoEnCasa para #YoMeQuedoSinCasa).

É a combinação dessas características somadas à não linearidade e investigabilidade , que permitem a (re)construção de uma rede tecnodiscursiva do contradiscurso, a qual possibilita a existência mesma do tecnodiscurso subversivo considerado aqui como um «pequeno acontecimento discursivo documentado» (Paveau, 2021a, p. 42).

Assim, reconstruindo essa rede tecnodiscursiva, retomamos não um, mas dois tecnodiscursos anteriores: a hashtag #QuedaTeEnCasa, da propaganda que compõem a campanha governamental do Ministério de Saúde do governo espanhol, e a hashtag #YoMeQuedoEnCasa, resposta também parte da campanha governamental, que viralizou e se tornou uma hashtag massiva (imagem 1).

Imagem 1. Capturas de tela das campanhas difundidas em território espanhol promovendo o isolamento social por confinamento
domiciliar obrigatório durante a primeira onda do coronavirus na Europa. (Foto: arquivo pessoal)..

Imagem 1. Capturas de tela das campanhas difundidas em território espanhol promovendo o isolamento social por confinamento domiciliar obrigatório durante a primeira onda do coronavirus na Europa. (Foto: arquivo pessoal).

A imagem da esquerda, que traz a captura de tela de uma publicação da conta oficial do Twitter de SaludMadrid 6, foi recolhida de forma indireta via página web da RTVE 7 por meio da qual se divulgou em 12 de março de 2020 8 a campanha governamental em formato de vídeo. A propaganda mostra profissionais da saúde incentivando a população ao confinamento obrigatório com a hashtag #QuedaTeEnCasa, tendo em vista conscientizar a população sobre a necessidade da medida restritiva. A segunda imagem 9, traz a captura de tela de outra propaganda pertencente ao mesmo conjunto da campanha anterior, porém neste caso, com uma resposta forjada à primeiríssima hashtag, gerando a hashtag #YoMeQuedoEnCasa, que logo viralizou nas redes sociais como forma de indicar a adesão e conscientização da necessidade de respeitar o confinamento, o qual foi obrigatório na Espanha.

Cerca de dois meses depois da divulgação da campanha #quedatencasa e #yomequedoencasa, encontramos com a hashtag subversiva, #YoMeQuedoSinCasa, que desvia o sentido da resposta massiva, #yomequedoencasa, denominada neste estudo como «discurso primeiro».

O material referente ao contradiscurso foi recolhido de nosso arquivo fotográfico pessoal durante uma caminhada no centro velho da cidade de Barcelona, realizada em maio de 2020, quando registramos os cartazes com os dizeres #YoMeQuedoSinCasa. Encontrou-se pequenas variações nos cartazes em relação à disposição de cores e variação na escrita. Os cartazes com os dizeres #YO ME QUEDO SIN CASA são compostos por três cores, branco, preto e vermelho, com alteração da localização das cores em cada cartaz e variações de redação, como #YO ME QUEDO SIN CASA, #YO ME QUEDO EN SIN CASA, #YO ME QUEDO EN CASA SIN CASA, como pode ser visto na pequena coleção a seguir (imagem 2).

Imagem 2. (Foto: arquivo pessoal)..

Imagem 2. (Foto: arquivo pessoal).

Esses discursos com cenografia (Maingueneau, 2006) de cartazes militante, com marcas de protesto feito a partir de uma denúncia, foram vistos, na região central de Barcelona, da Cidade Velha, Raval, Barrio Gótico e Born. Regiões turísticas, conhecidamente alvo de protestos em relação à crise de moradia devido à especulação imobiliária e fortemente caracterizadas pelo trabalho informal e moradia de milhares de trabalhadores não-declarados, em sua maioria, imigrantes e/ou refugiados.

Outra parte do corpus foi recolhido diretamente nas redes sociais digitais Instagram e Twitter pela busca da hashtag indicada nos cartazes, #yomequedosincasa. As buscas pela hashtag encontaram 76 publicações no Instagram e 22 no Twitter. Das 76 publicações recolhidas no Instagram, 11 não tinham relação com a temática. E das 22 publicações recolhidas do Twitter, apenas 2 não tinham relação. Totalizando 85 publicações pertinentes para o estudo em questão, uma quantidade relativamente pequena quando se pensa nos fenômenos digitais que possibilitam viralizações e massificações de hashtags.

Porém, entendemos que

trabalhar sobre pequenos corpora permite encontrar as formas linguageiras não necessariamente «frequentes», no sentido estatístico do termo, mas sim as formas «emergentes», reveladoras do tempo presente e que por conta disso são parte de um «arsenal argumentativo» (Angenot) em um momento da história de uma sociedade, um arsenal que carrega ele mesmo a História dessa sociedade. (Moirand, 2020, p. 51, citado por Paveau, 2021a, p. 44).

Assim, defendemos que o caso em questão traz marcas de grandes significações dignas de análise, haja vista que é profícuo «descrever formas discursivas raras ou ainda não estabilizadas, refletir acerca dos conceitos e as noções que intervêm nessa análise, bem como sobre as relações entre linguagem verbal e o mundo do corpus “ao voo” e de todos os “pequenos corpora”». (Moirand, 2020, p. 2, citado por Paveau, 2021a, p. 43).

Sendo assim, dos 85 resultados encontrados, elegemos uma publicação recolhida da rede social digital Twitter para ser utilizada como ilustração da circulação do discurso pré-digital (cartaz) com características de tecnografismo 10 (presença do símbolo de cerquilha #, que no espaço digital se converte em uma tag clicável) no espaço digital (imagem 3).

Imagem 3. Captura de tela de publicação no Twitter. (Foto: arquivo pessoal).

Imagem 3. Captura de tela de publicação no Twitter. (Foto: arquivo pessoal).

A publicação, postada em 21 de maio de 2021, foi selecionada pelo fato de que tanto a fotografia quanto o texto do Twitter trazem pontos pertinentes de análises. Como se pode ver pela captura de tela transformada em imagem, a publicação digital traz a foto de um cartaz de estilo lamb, de caráter militante denunciativo com os dizeres «#YO ME QUEDO EN CASA SIN CASA», colado na parede externa de um edifico de coloração bege/marrom, típicos do centro velho da cidade de Barcelona, Espanha.

O cartaz é escrito com marcas de linguagem do discurso digital, pela presença do símbolo da cerquilha tipicamente usada no espaço digital como hashtag, e traz os dizeres no idioma castelhano. O cartaz é composto de fundo branco, escrito nas cores preta e vermelha com margem destacada em preto com pequenos riscos vermelhos. Na imagem, o cartaz ocupa o foco central da fotografia e está alinhado no sentido vertical a duas placas oficiais de sinalização urbana, a placa com indicação do nome da rua (em catalão, idioma oficial na comunidade autônoma da Catalunha) ao topo e entrecortada pelos limites da fotografia, seguida, logo abaixo de uma placa remanescente da sinalização de tráfego de cavalos (na qual se pode ver o brasão da região, o desenho de um cavalo e um homem apontando para uma direção com o dizer «salida» 11 abaixo).

Há vários pontos interessantes de análise nesta imagem, mas a escolha por ela se deu especificamente por trazer a marca explícita do discurso primeiro, o qual é subvertido e assim, exposto como um discurso entendido como insultante, a saber: a hashtag #yomequedoencasa, escrito em preto no cartaz. Realizamos uma transcrição de modo a explicitar essa questão da relacionaridade (cuadro 1).

Cuadro 1

Transcrição
# YO ME
QUEDO
EN CASA

A foto é acompanhada, na postagem de Twitter, de texto escrito em francês transcrito e traduzido a seguir (cuadro 2).

Cuadro 2

Transcrição Tradução
A Barcelone, le hashtag #yomequedosincasa détourne l’injonction d’origine pour dénoncer la situation dramatique des travailleurs.euses non-déclaré.es de la restauration et de l’hôtellerie qui se retrouvent du jour au lendemain sans ressources ni aides de l’état. Em Barcelona, a hashtag #yomequedosincasa desvia o madato original para denunciar a situacão dramática dos.as trabalhadores.as não-declarados.as de restaurantes y hotéis que se reencontraram do dia para a noite sem recursos nem ajuda do estado.

O funcionamento do discurso subversivo

A partir, então, deste material, vamos testar em nossas análises os sete critérios linguísticos (tecno)discursivos da ressignificação proposta por Marie-Anne Paveau (2021a) sem, contudo, trabalhar sobre uma resposta a um discurso insultante assentado no discurso de ódio.

Pelo fato de estarmos trabalhando com uma resposta a um discurso primeiro, no qual não identificamos uma violência explícita, entendemos que a ferida não é evidente (critério pragmático). Assim, defendemos que sua exposição só ocorre na relação com o discurso resposta (critério interacional).

Sendo assim, para compreendermos o critério de número um, o critério pragmático, pelo qual temos que «existe uma ferida linguageira» (Paveau, 2021a, p. 39), é necessário analisar os critérios dois, três, quatro e cinco para, finalmente, voltarmos ao critério um. Tais critérios serão analisados, em um primeiro momento a partir de nosso corpus retirado da pequena coleção de fotografias dos cartazes com cenografia (Maingueneau, 2006) militante. Para, em seguida, analisarmos a continuação do critério cinco e os critérios seis e sete no corpus que circula no espaço digital, pela publicação do Twitter compartilhada a cima.

A ressignificação em espaço não digital

De todas as imagens de cartazes que compõem nosso corpus , escolhemos para análise a imagem do cartaz que traz a seguinte inscrição: #YO ME QUEDO EN CASA SIN CASA. Mesma imagem que pode ser vista na publicação de Twitter.

A escolha de um cartaz dentre o conjunto de nossa pequena coleção, deu-se pela existência, em uma mesma composição gráfico-visual, de dois discursos, a hashtag considerada o discurso que gera uma ferida linguageira e o seu contradiscurso. A saber: #yomequedoencasa, que chamaremos de hashtag 1 (#1) e o contradiscurso, que se converterá também em uma hashtag, #yomequedosincasa, a qual chamaremos de hashtag 2 (#2) ou discurso resposta.

Nesse sentido, entendemos que temos um discurso primeiro, #yomequedoencasa, que, pelo critério interacional (critério de número 2), foi contestado pelo efeito da marca gráfica sobre o seguimento «en casa», causando um efeito de correção com uma nova escritura, «sin casa», inscrita em vermelho no cartaz.

Desta maneira, pode-se dizer que no mesmo seguimento textual, há a presença de dois discursos em oposição, que são co-construídos no cartaz pelo critério interacional (critério de número 2), trazendo a marca explícita do discurso primeiro agora contestado e ressignificado em ambiente não digital. Sendo assim, aqui opera o critério de número cinco, denominado por Paveau (2021a) de critério discursivo, pelo qual a autora afirma que «o enunciado-resposta é produzido em contexto diferente do enunciado ofensivo» (Paveau, 2021a, p. 39).

É dizer, o discurso primeiro trata-se de um tecnodiscurso, uma hashtag de circulação massiva nos espaços digitais, veiculado na campanha governamental tanto em redes sociais digitais como em canais de telecomunicação. Pelo critério interacional, uma resposta ao discurso primeiro é produzida (critério 2), porém em um contexto diferente (critério 5), ou seja, o contradiscurso não é produzido nas redes sociais digitais nem na televisão. Sua produção se dá no espaço não digital da rua, no espaço público, por meio de uma outra materialidade, a de cartazes estilo lamb com cenografia (Maingueneau, 2006) militante, colados em muros e paredes de edifícios do centro velho de Barcelona. Lugar que, antes da pandemia, caracterizava-se por uma intensa circulação de pessoas ao longo de todo o ano, que com o acontecimento mundial, foi transformado radicalmente.

Entendemos que a marca gráfica que sugere um efeito de rasura/correção e, consequentemente demanda uma reparação, permite também explicitar a origem da ressignificação. Possibilitando, assim, de forma mais assertiva, resgatar tanto o discurso primeiro contestado como o contexto sócio-político do cartaz. Pela presença da hashtag de circulação massiva, a #1, #yomequedoencasa, inscrita e «corrigida» no cartaz, o interlocutor contextualiza a produção do discurso militante no contexto da pandemia da covid-19, mais especificamente nas questões relativas ao período de isolamento social por confinamento.

Elaboramos o quadro a seguir para analisar os dois discursos, em relação interacional, pelo critério semântico-axiológico, de número 4 (cuadro 3).

Cuadro 3

# 1 # 2
Sujeito # YO # YO
Ação ME QUEDO ME QUEDO
Compl. EN CASA A. A. de lugar (físico) Agente Sujeito com (auto)valoração positiva SIN CASA A. A. de modo (condição) Vitima Sujeito que resiste

Como pode ser visto, os dois discursos possuem um «yo» 12 como sujeito e a ação relativa a esse «yo» é indicada por «me quedo» 13. Deste modo, a inversão semântico-axiológica se dá no complemento. No caso da #1, o complemento «en casa» 14 funciona como adjunto adnominal de lugar, remeten- do a um espaço físico, «casa». Já o complemento do contradiscurso, «sin casa» 15, funciona como adjunto adnominal de modo, ou seja, refere-se a uma condi- ção do «yo», não necessariamente sem uma casa em sentido literal (embora não exclua a possibilidade desse sentido), mas também em sentido figurado, ou seja, em condição de vulnerabilidade.

É interessante destacar que a inversão semântico-axiológica, provocada pela rasura do complemento do discurso primeiro «corrigido» no contradiscurso, altera o sentido da ação do sujeito. Sendo assim, «me quedo» na #1 figuraria como ação de uma imobilidade, uma permanência em um lugar. Porém, não em um sentido passivo de uma não-ação, mas de uma ação com valoração positiva pela obediência civil. Nesse sentido, podemos dizer que a hashtag #yomequedoencasa funciona como um discurso pelo qual um «yo» enuncia a si mesmo com uma autoapresentação com valoração positiva, construindo assim um ethos 16 (Maingueneau, 2020) de bom cidadão a partir de um discurso virtuoso 17 (Paveau, 2015).

Deste modo, interpretamos que, pela #1, o ato de ficar em casa figura em um sentido eufórico, no contexto da pandemia da covid-19, como uma ação eleita pelo indivíduo como ato de responsabilidade para com o coletivo. Quando, em realidade, a escolha de ficar ou não em casa, legalmente, não existia dado o caráter obrigatório da política de confinamento 18.

Fato este que faz com que o «yo» da hashtag #1 componha um coletivo dos sujeitos obrigados a permanecer em casa, mas que concordam com tal medida e contribuem, tanto por sua ação como pela disseminação da hashtag, com a propaganda educativa de conscientização da necessidade de obediência a tal norma.

Nesse sentido, embora tenhamos uma enunciação «yoica», ou seja, centrada no «eu», reforçada pela autoapresentação com autovaloração positiva que constrói um ethos de bom cidadão, podemos afirmar que o sujeito que enuncia na hashtag 1, #yomequedoencasa, trata-se de um sujeito coletivo. Em outros termos, a hashtag do discurso primeiro designa uma comunidade discursiva graças ao funcionamento do tecnografismo que permite ao seguimento linguageiro que é precedido do signo # transformar-se em uma tag clicável.

Segundo Paveau, a hashtag:

é um seguimento linguageiro precedido do signo #, utilizado originalmente na rede de microblog Twitter, mas adaptado em outras plataformas, como o Facebook principalmente. Essa associação transforma o segmento numa tag clicável que é inserida manualmente num tweet e permite acessar um fio que agrupa o conjunto dos enunciados que contém a hashtag. (Paveau, 2021b, p. 223).

Conforme Costa (2021) a hashtag além de permitir a formação de uma rede de discursos, passa a conformar uma comunidade discursiva, ou seja, «locutores que demarcam posicionamentos específicos» (Costa, 2021, p. 78) haja vista que, retomando Maingueneau e Charaudeau (2008), Costa afirma que a «noção de comunidade discursiva é solidária à de formação discursiva» (Maingueneau e Charaudeau, 2008, p. 108, citado por Costa, 2021, p. 78).

Interpretamos que é nesse ponto que reside a ferida linguageira, do critério pragmático, de número 1. A formulação discursiva da hashtag, #yomequedoencasa, e sua circulação massiva, inscrevem-se em uma formação discursiva (Pêcheux, Haroche, Henry, 2020) que naturaliza apenas uma condição humana durante o confinamento. Qual seja: a formação social que abrange os sujeitos que têm dadas as condições de estarem em uma casa respeitando em segurança a política de confinamento.

Já o contradiscurso, ao denunciar esse apagamento de outras realidades na campanha governamental, passa a visibilizá-las. Haja vista que, ao produzir uma inversão semântico-axiológica (critério de número 4), deflagra a condição de um sujeito sem opção e alternativa de escolha, rompendo com a falsa ilusão provocada pelo discurso primeiro, #yomequedoencasa.

Nesse sentido, a inversão semântico-axiológico é subversiva pois denuncia que algo falha no discurso massivo dominante.

Compreendemos que a falha se dá pelo efeito de homogeneização, engendrado tanto pelo uso da tinta preta, típica da escrita padrão, no cartaz, como pela repetição massiva da hashtag #yomequedoencasa, nas redes sociais digitais, replicada milhares de vezes provocando uma saturação de sentidos e uniformização dos sujeitos. Em outras palavras, a massiva replicação do discurso primeiro não favorece o questionamento sobre as questões socioeconômicas implicadas no confinamento para o controle dos contágios por coronavírus.

Assim, embora o trecho «yo me quedo» coincida nos dois discursos (coincidente, inclusive como inscrição no cartaz), provocando um efeito inicial que parece colar o «yo» do discurso primeiro ao «yo» do contradiscurso; é pelo efeito de «correção» dos complementos, ou seja, pelo efeito do critério 4 — pelo qual o sentido da ação é desviado —, que podemos afirmar que ocorre a separação dos sujeitos de cada discurso. «YO»s que figuram em formações sociais distintas e, então, pertencem a comunidades discursivas opostas inscritos em formações discursivas em conflito 19.

A distinção das formações sociais é reforçada pelo efeito do grande X vermelho que rasura não apenas a partícula «en» subvertida, no contradiscurso, pela partícula «sin», como ocorre em outros cartazes de nossa coleção. Na imagem do cartaz eleita para nossas análises, é interessante notar que o efeito de rasura se dá em todo o complemento «en casa» (escrito em cor preta), que passa a ser substituído no contradiscurso pela inscrição «sin casa» (escrita em cor vermelha).

Nesse sentido, temos que o termo «casa» aparece duas vezes no cartaz, fazendo com que o significante não coincida em escrita e, consequentemente, não coincida em sua significação. Com isso, podemos dizer que há a presença de dois imaginários distintos para o termo «casa», reavivando o debate sobre as diferentes condições de moradia na cidade de Barcelona 20, o que reforça a existência de duas formações sociais distintas separadas pela desigualdade social.

Assim, defendemos que o sujeito do contradiscurso ao deflagrar a denúncia, pela qual evidencia sua condição de vítima, por mais que pareça contraditório, ele não está se vitimando. É pela ressignificação engendrada no contradiscurso, na resposta ao discurso massivo, que esse «yo» «se queda» (que esse «eu» «fica») em sentido de resistência. Um sujeito que existe, persiste e resiste apesar das condições precárias que circundam sua permanência.

Analisando, assim, os critérios dois, três, quatro e cinco, interacional, enunciativo, semântico-axiológico e discursivo, respectivamente, a ferida linguageira (critério pragmático, de número um) é, finalmente exposta, fazendo com que o contradiscurso leve seus interlocutores a desnaturalizar o discurso massivo. Trata-se em suma, do que Maingueneau (2021) muito bem assinalou sobre a ressignificação, que consiste, segundo ele, em não atacar o sujeito produtor da ferida linguageira com uma agressão, mas sim engendrar uma reflexão que, por sua vez, provoca a exposição da ferida.

É no sentido de não provocar outra agressão que interpretamos a ausência do agente responsável pela ferida no contradiscurso, o qual somente aparece explicitamente com as possibilidades de ampliação do espaço da web 2.0. No texto de uma publicação do Twitter, o qual divulga uma imagem do cartaz e, assim, difunde o discurso subversivo no espaço digital, agora como legitimo tecnodiscurso, ou seja, como uma hashtag clicável.

A ampliação da ressignificação no espaço digital

Na publicação do Twitter, vemos a difusão da imagem do cartaz associada com um texto por meio do qual transforma a inscrição pré-digital do cartaz em um tecnodiscurso. Entendemos que a escrita original do cartaz, que traz o signo # — o qual faz alusão a um tecnografismo — precedendo o seguimento textual, convoca seus interlocutores do espaço urbano à participação pelas afordâncias da web 2.0. Haja vista que, «computadores, tablets e celulares “atados” ao corpo são, afinal, partícipes do processo discursivo, como continuum da própria existência contemporânea» (Paveau, 2021a, pp. 20-21). Pelo funcionamento característico da hibridificação dos mundos (Castells, 2017), descrito por Paveau, interlocutores do cartaz provocam um retorno ao espaço do discurso primeiro contestado, o digital, da web 2.0, na e pela qual somente assim o contradiscurso poderá funcionar como uma legítima hashtag.

É, então, no espaço digital, por meio das possibilidades de composição e ampliação inerentes aos tecnodiscursos, que a publicação produz um segundo movimento do critério de número 5, o critério discursivo. O discurso resposta, produzido originalmente em contexto urbano é recontextualizado com comentário (res)significante em contexto diferente do qual foi produzido. Deste modo, o contradiscurso passa a circular também no espaço digital como hashtag clicável, adquirindo assim as características e possibilidades atribuídas por Paveau (2021a) ao tecnodiscurso: composição, ampliação, relacionaridade e imprevisibilidade, principalmente.

Nesse sentido, o que antes era apenas da ordem do linguageiro #YO ME QUEDO SIN CASA, adquire forma compósita que mescla linguageiro e técnico, transformando-se na hashtag #yomequedosincasa, convertendo o contradiscurso em uma tag clicável. Essa transformação possibilita tanto a retomada de uma rede tecnodiscursiva quanto a formação de uma comunidade discursiva compostas por sujeitos que se identificam com o «yo» da hashtag ou que são empáticos à causa deste «yo», representado performaticamente no cartaz militante.

Pela investigabilidade inerente ao tecnodiscurso, retomamos as 85 publicações recolhidas em nosso corpus . Este dado nos permite identificar um movimento de aceitação coletiva em relação ao contradiscurso. Assim, pelo critério de número seis, o critério sociossemântico, temos que «o uso recontextualizado do elemento linguageiro é julgado como aceitável e reconhecido como tal pelos sujeitos implicados, que formam um sujeito coletivo» (Paveau, 2021a, p. 39), o qual estamos chamando aqui de comunidade discursiva.

Considerando a composição e a capacidade de ampliação do tecnodiscurso, temos que a publicação do Twitter ao difundir o contradiscurso no espaço digital, especifica a denúncia por meio do comentário que acompanha a fotografia. Em outros termos, temos que, a publicação do Twitter permite não somente a simples republicação do cartaz em contexto diferente, mas sua recontextualização pela divulgação da imagem de fotografia digital junto com um texto que traz um comentário sobre o contradiscurso, o qual nos apresenta novos indícios sobre a causa em questão. A seguir, retomamos o comentário da publicação digital:

Em Barcelona, a hashtag #yomequedosincasa desvia o mandato original para denunciar a situação dramáticas dos/as trabalhadores/as não-declarados de restaurantes e hotéis que se reencontraram do dia para a noite sem recursos nem ajuda do estado.

Paveau (2021a) comenta que a característica de ampliação possibilitada pelos tecnodiscursos podem, via comentários, produzir o conteúdo em si. Neste sentido, entendemos que o comentário que acompanha a imagem da publicação, graças à imprevisibilidade dos tecnodiscursos, amplia a denúncia desferida nos cartazes.

Nota-se, pelo texto do comentário da publicação, que o «yo» da hashtag resposta, #yomequedosincasa, passa a figurar como «elas/eles», as trabalhadoras e trabalhadores do setor ligado ao turismo (indício a partir da qualificação «de restaurantes e hotéis»), os quais em muitos casos não figuram como trabalhadores declarados perante o estado («não-declarados/as»). A partir do comentário, temos agora a possibilidade de identificar com maior precisão o sujeito coletivo da ressignificação. Um sujeito coletivo que forma um grupo social identificado por ter sido gravemente afetado durante a pandemia. Sujeitos estes que segundo o comentário, «se reencontraram do dia para a noite sem recursos nem ajuda do estado» pelo fato de estarem à margem do sistema.

Destas observações, destacamos o deslizamento de «yo», ou seja, do «eu», para «elas/eles». Interpretamos que esse deslizamento reforça o critério sociossemântico, pelo qual a resposta é julgada como aceitável coletivamente não somente pelos «sujeitos implicados» como afirma Paveau (2021a), mas também por sujeitos empáticos à causa do grupo social representado pelo «yo» do contradiscurso. É, então, com essa noção de coletivo que trabalhamos a ideia de comunidade discursiva (Maingueneau, 2006) formada em torno de uma hashtag. A noção de comunidade discursiva ao ser solidaria à noção de formação discursiva não implica o pertencimento à mesma formação social, mas sim, à mesma formação discursiva, a qual é solidária à causa de dita formação social.

É pela capacidade de ampliação do tecnodiscurso que temos duas novas possibilidades. De um lado, caracterizar e especificar mais precisamente tanto o sujeito coletivo como sua causa enunciados no contradiscurso e na hashtag #yomequedosincasa. Por outro lado, explicitar o sujeito social responsável pela ofensa, neste caso por negligência: o estado.

Para fins didáticos, construímos o quadro a seguir a partir do texto do comentário da publicação (cuadro 4).

Cuadro 4

hashtag mandato situação trabalhadores/as estado
Ações desvia para denunciar Reencontraram-se
Qualificações especificadores #yomequedosincasa De origem dramática Não-declarados/as De restaurantes e hotéis Recursos ajudas (—) sem/nem
agente paciente factual Vítima/oprimido opressor

É interessante notar que a hashtag-resposta, #yomequedosincasa, passa, no comentário da publicação, a funcionar como um ator social em si com direito a ação, «desvia», «para denunciar». Fato este que evidencia as novas possibilidades de participação social e figura assim como uma entidade própria não atada à vontade de seu produtor pelo efeito de imprevisibilidade dos tecnodiscursos.

No comentário, o «yo» da hashtag-resposta, ao figurar como «elas/eles», é representado na posição de vítima («se reencontram do dia para a noite sem recursos nem ajuda») corroborada por «situação dramática». Efeito que leva a apontar para um sujeito que deve ser responsabilizado e atuar para reparar tal situação. Pelo comentário é entendido que este sujeito é o Estado, o qual figura, no comentário da publicação, com caráter que indica opressão. Opressão esta que se materializa no texto da publicação, pelo efeito de sentido de omissão, indicado pela ausência de ação (verbo) vinculada a «estado» e reforçado pela negação inscrita nos termos «sem» e «nem», relativos aos termos «recursos» e «ajuda», deflagrando uma ausência de políticas públicas protetivas a grupos sociais mais afetados e prejudicados pela pandemia.

Por essa pista discursiva, é possível retomar os possíveis sentidos para o termo «casa», analisado no contradiscurso no apartado anterior. Já havíamos indicado que não necessariamente o significante «casa» remetia a um significado literal, mas que podia remeter a um sentido figurado, por exemplo, de ausência de proteção estatal, «sem casa».

Nesse sentido, entendemos que a ressignificação produzida tanto no espaço digital como não-digital é revolucionária, pois, pelo critério de número sete, critério pragmático-político, produz uma demanda por reparação e uma resistência «ampliando a coesão do sujeito militante» (Paveau, 2021a). Ou seja, pela ressignificação, o sujeito militante ofendido (3) produz um contradiscurso pela hashtag #yomequedosincasa (2) em resposta a um enunciado com ferida linguageira não evidente (1), estabelecendo uma reflexão e exposição do discurso primeiro, #yomequedoencasa (4) em contextos alternativos como os cartazes militantes e a hashtag de resistência (5), que ao ser aceita coletivamente, aumenta a coesão do grupo social em situação de negligência estatal (6) demandando uma reparação e marcando um movimento de resistência (7).

Desdobramentos

Dois meses depois dos cartezes com os dizeres #YO ME QUEDO SIN CASA serem vistos no centro velho da cidade de Barcelona, e cerca de 1 mês e meio depois do início da circulação da hashtag militante #yomequesincasa na web 2.0, o jornal La Vanguardia, publica em 01 de junho de 2020, noticia intitulada «El grupo Emergencia Ciutat Vella exige abordar la agudizacion de la pobreza» 21, a qual compartilhamos a seguir, tendo em vista destacar a incidência dos critérios de número três e sete, respectivamente, critério enunciativo e critério pragmático-político:

La plataforma Emergencia en Ciutat Vella ha exigido a las administraciones públicas que aborden la «espectacular agudización de la pobreza estructural y las carencias sociales» que ha causado la pandemia del coronavirus «en todos los barrios» de este distrito de Barcelona.
La plataforma ha presentado este miércoles un manifiesto en el que alerta de que «mucha gente que vivía de trabajos precarios y se ha quedado sin trabajo» y de que «el colapso total de la economía ligada al turismo vierte a la absoluta indigencia a miles de personas», por lo que exige que «este grave problema humano sea abordado de una manera inmediata y eficaz por las administraciones públicas».
Las primeras entidades que han firmado el manifiesto son Anarcoveganos del Raval, ANC-Ciutat Vella, Asociación de Vecinos Casco Antiguo, CDR Casc Antic, Consell Local per a la República-Ciutat Vella, Fundació Arrels, Òmnium Cultural-Ciutat Vella y la Xarxa Veinal del Gòtic.
La plataforma propone una «ampliación notoria» de los recursos humanos y económicos de los servicios de asistencia social municipales «a corto plazo» y «reformular las políticas de impulso económico y comercio de los barrios» para «disminuir la dependencia económica del turismo de Ciutat Vella».
Además, Emergencia en Ciutat Vella ha propuesto una primera lista de medidas entre las que destacan la de convertir en plazas estructura- les de la ciudad de Barcelona las más de 600 plazas de alojamiento de emergencia abiertas durante el estado de alarma para personas sin hogar.
Proponen también crear, por lo menos, un espacio de alojamiento de baja exigencia en cada uno de los barrios del distrito y prorrogar la estancia en pisos tutelados de los jóvenes no acompañados que cumplen 18 años durante el 2020 hasta final de año 22.

No dia seguinte da publicação on-line da notícia no jornal La Vanguardia, em 02 de junho de 2020, o telejornal 3/24, do canal de telecomunicação TV3 da Catalunha, veicula uma entrevista com o presidente da Fundação Arrels sobre a questão da «agudização da pobreza» e o problema social de aumento vertiginoso do número de pessoas sem moradia, que passaram a viver nas ruas do centro velho da cidade de Barcelona. Abaixo, disponibilizamos fotografias que registram trechos significativos da reportagem televisiva (imagem 4).

Imagem 4. Fotografias de transmissão televisiva. (Foto: arquivo pessoal).

Imagem 4. Fotografias de transmissão televisiva. (Foto: arquivo pessoal).

Nas imagens acima, capturadas por meio de fotografia de aparelho celular, é possível identificar o momento em que o presidente da Fundação Arrels concede uma entrevista ao canal. Nas imagens, do lado esquerdo vemos a imagem do entrevistado, porta-voz, nesta instancia, da causa descrita no jornal La Vanguardia. E, do lado direito, é possível identificar uma fila de pessoas recebendo alguma forma mínima de assistência e, na outra, uma rua típica do centro velho de Barcelona durante o período da noite, na qual se pode notar a presença de pessoas dormindo no chão. Abaixo das imagens pode-se ler:

Cada cop, més persones dormen als carrers de Barcelona. / El confinament ha agreujat la situació dels sensesostre. / Son 1.200 persones, um 80 % més qune fa 10 ays 23.

Como já vimos analisando, a ressignificação engendrada a partir do argumento da salamandra, permitiu ao sujeito coletivo representado na hashtag #yomequedosincasa, o qual se sente ferido por um discurso institucional — acompanhado de uma política governamental —, produzir um discurso revolucionário ao retomar e subverter o discur- so primeiro que traz a ferida linguageira, marcando uma resistência e exigindo uma reparação. Vemos assim a composição de uma rede (tecno)discursiva que possibilita uma maior coesão do sujeito coletivo, identificado pela reportagem do jornal La Vanguardia como um coletivo (Plataforma Emergia en Ciutat Vella) formado por oito entidades sociais em prol da causa deflagrada na denúncia do discurso presente nos cartazes militantes e na hashtag de resistência analisada neste estudo.

O fato da questão ter ganhado visibilidade nos jornais e telejornais com possibilidade de construção de outras frentes de diálogo como a construção da plataforma, a divulgação do manifesto e a apresentação de propostas com uma série de medidas emergenciais, permite-nos vislumbrar as possibilidades do critério de número sete, pragmático-político, sobre a demanda por reparação. Além disso, permite identificar uma maior precisão o sujeito coletivo do discurso revolucionário, especificado como grupos sociais organizados, que por meio de diversas estratégias conseguiram lançar uma luz a esses sujeitos invisibilizados identificados na hashtag #yomequedosincasa.

Considerações finais

Conclui-se que a prática discursiva de ativismo materializada nos dizeres #YoMeQuedoSinCasa ancora-se na tecnodiscursividade (Paveau, 2021b) para produzir um enunciado ressignificado com traços revolucionários, pois ao subverter o tecnodiscurso massivo #YoMeQuedoEnCasa, desnuda sua virtuosidade expondo uma ferida social de negligência estatal e permite produzir tanto uma resistência quanto uma demanda por reparação.

Interpretamos que a hashtag subversiva ou de resistência questiona o alcance das medidas assistencialista a grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade agravada pela pandemia e pela falta de medidas protetivas governamentais para superar os períodos de confinamento obrigatório. Interessou-nos particularmente esse sinuoso, sutil e perspicaz movimento salamandrico engendrado pela tomada da palavra. Como afirmou Dias (2021), «Somos, de certa forma, um pouco salamandra, na medida em que […] somos capazes de nos regenerar como sujeitos à hostilidade pela tomada da palavra como dispositivo discursivo da ressignificação» (Dias, 2021, p. 115).

O argumento da salamandra, no caso da hashtag #yomequedosincasa, alcançou questionar o discurso massivo, provocando uma reflexão sobre ele e, assim, expos a ferida linguageira não evidente sem, com isso, provocar uma nova ferida. Ou seja, a engenhosidade deste (tecno)discurso subversivo reside na capacidade de questionar um discurso virtuoso em prol do combate à pandemia que, ao mesmo tempo, fere por apagar sujeitos à margem do sistema, os grupos sociais mais vulnerados sem que, com isso, integre a rede de discursos negacionistas. Em outros termos, sem questionar a necessidade vital do confinamento, mas sim, reforçar a necessidade também vital de medidas protetivas a grupos mais afetados. Produzindo, assim, uma resposta além de perspicaz, extremamente complexa.

Compreendemos, com este trabalho, que a teoria da ressignificação assentada no argumento da salamandra proposta por Marie-Anne Paveau (2021a) também funciona a partir de dados diferentes dos quais as hipóteses teóricas foram a princípio formuladas. Buscamos demonstrar que o dispositivo teórico-metodológico da ressignificação funciona também a partir de feridas linguageiras não evidentes. O que, a nosso ver, exige um outro esforço de análise, mobilizando a rede (tecno)discursiva que compõem a (tecno)memória de uma questão social tão profunda como a aqui debatida.

Fontes e bibliografia

Baronas, Roberto Leiser (2021): «Ressignificação: do cedilha intruso a dispositivos tecnodiscursivos culturais de memória e resistência», em Paveau, M. Costa, J. L. Baronas, R. L. (orgs.): Ressignificação em contexto digital . São Carlos: EDUFSCar, pp. 99-114.

Castells, Manuel (2017): Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar.

Costa, Julia Lourenço (2021): «#EleNão: a hashtag salamandra nos entremeios da política brasileira», em M.-A. Paveau, J. L. Costa, R. L. Baronas (orgs.): Ressignificação em contexto digital. São Carlos: EDUFSCar, pp. 59-98.

Dias, Cristiane (2021): «Ressignificação: a pele do acontecimento», em M.-A. Paveau, J. L. Costa, R. L. Baronas (orgs.): Ressignificação em contexto digital. São Carlos: EDUFSCar, pp. 115-120.

Haroche, Claudine; Pêcheux, Michel; Henry, Paul (2020): «A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem, discurso», em R. L. Baronas (org.): Análise de discurso: apontamentos para uma história da noção-conceito de formação discursiva. Araraquara: Letraria, pp. 17-39.

Maingueneau, Dominique (2006): Cenas da enunciação. Curitiba: Criar Edições.

Maingueneau, Dominique (2020): Variações sobre o ethos. São Paulo: Parábola.

Maingueneau, Dominique (2021): «Das razões para ler ressignificação em contexto digital», em M.-A. Paveau, J. L. Costa, R. L. Baronas (orgs.): Ressignificação em contexto digital. São Carlos: EDUFSCar, pp. 9-14.

Paveau, Marie-Anne (2015): Linguagem e moral: uma ética das virtudes discursivas. Campinas: Editora da Unicamp.

Paveau, Marie-Anne (2021a): «A ressignificação na web social: princípios teórico-metodológicos», em M.-A. Paveau, J. L. Costa, R. L. Baronas (orgs.): Ressignificação em contexto digital. São Carlos: EDUFSCar, pp. 19-58.

Paveau, Marie-Anne (2021b): Análise do discurso digital: dicionário das formas e das práticas. Campinas: Pontes Editora.

Paveau, M.; Costa, J. L.; Baronas, R. L. (orgs.), 2021: Ressignificação em contexto digital. São Carlos: EDUFSCar.


1  Tradução livre: #EuFicoSemCasa.

2  Tradução livre: #FiqueEmCasa.

3  Tradução livre: #EuFicoEmCasa.

4  Pode ser visto em Castells, 2017, p. 26: «Em nossa sociedade, o espaço público dos movimentos sociais é construído como espaço híbrido entre as redes sociais da internet e o espaço urbano ocupado: conectando o ciberespaço com o espaço urbano numa interação implacável e construindo, tecnológica e culturalmente, comunidades instantâneas com prática transformadora».

5  Notas pessoais realizadas durante disciplina ACIEPE-UFSCar, ministradas pela professora Dra. Julia Lourenço Costa, professor Dr. Roberto Leiser Baronas, professora. Dra. Mariana Barros no ano 2020, sobre discurso digital e práticas tecnodiscursivas.

6  «Madrid Salud es um Organismo Autónomo del Ayuntamiento de Madrid creado em 2005 para la gestión de las políticas municipales em matéria de Salud Pública» (disponível em madridsalud.es; acesso em 23/05/2020).

7  RTVE: Radiotelevisión Espanola. É uma empresa pública estatal que assumiu a gestão indireta do serviço público de rádio e televisão espanhol.

8  O confinamento obrigatório na Espanha foi decretado em 13 de março de 2020, um dia após o lançamento oficial da campanha.

9  Essa segunda imagem traz a campanha em versão municipal de um dos municípios pertencentes à região autônoma de Madrid. É importante lembrar que no início da pandemia da covid-19, a Espanha decretou estado de alarma, o que implicava que todas as regiões autônomas estavam sob jurisprudência do governo espanhol localizado em Madrid. Assim, as campanhas que partiram de Madrid, foram fortemente veiculadas em todo o território espanhol.

10  Tecnografismo: «uma produção semiótica que associa texto e imagem num compósito nativo da web» (Paveau, 2021b, p. 305).

11  Tradução: saída.

12  Tradução: eu.

13  Tradução: fico.

14  Tradução: em casa.

15  Tradução: sem casa.

16  Sobre o conceito de ethos: «o destinatário constrói uma representação do locutor por meio daquilo que ele diz e sua maneira de dizer. […] Ao tomar a palavra, o que um locutor faz, então, é pôr em risco sua imagem e tentar orientar, mais ou menos conscientemente e em um sentido que lhe seja favorável, a interpretação e a avaliação dos signos que envia ao destinatário» (Maingueneau, 2020, p. 9). E anda, «Na realidade, esse ethos discursivo põe em interação um ethos mostrado, decorrente da maneira de falar, e um ethos dito, aquilo que o locutor diz de si mesmo enquanto enuncia» (Maingueneau, 2020, p. 11).

17  «Definirei discurso virtuoso como discurso ajustado aos valores vigentes na realidade complexa e instável dos agentes e de seus ambientes. Esse ajuste diz respeito a três elementos: os agentes e suas relações (o que pode ser descrito por meio da noção de decência, extraída de A. Margalit), o mundo (a realidade e suas representações) e o conjunto das produções verbais que constituem a memória discursiva das sociedades (discurso, pré-discursos, linhagens discursivas). Esses elementos formam um sistema ao mesmo tempo discursivo, cognitivo e ético, no qual estão profundamente imbricados (sempre no sentido putnamiano do termo) » (Paveau, 2015: 214).

18  Ver: https://www.elmundo.es/espana/2020/03/13/5e6b4e2921efa06a0b8b4671.html. Acesso em: 30/03/2020.

19  Sobre os conceitos de posições de classe, formação ideológica e formação discursiva, temos que: «Cada formação ideológica constitui desse modo um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem “individuais” e nem “universais”, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas em relação às outras […] as formações ideológicas assim definidas comportam necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas» (Haroche, Pêcheux, Henry, 2020, p. 34).

20  Ver: «Confinar-se em Espanha: 87 metros quadrados de diferença entre bairros ricos e pobres». Disponível em: https://elpais.com/espana/catalunya/2020-04-18/confinarse-en-barcelona-87-metros-cuadrados-de-diferencia-entre-barrios-ricos-y-pobres.html. Acesso em: 23/05/2020.

21  Disponível em: https://www.lavanguardia.com/vida/20200701/482047183351/el-grupo-emergencia-ciutat-vella-exige-abordar-la-agudizacion-de-la-pobreza.html. Acesso em: 02/06/2020.

22 Tradução livre: A plataforma Emergencia en Ciutat Vella exigiu das administrações públicas que abordem a «espetacular agudização da pobreza estrutural e as carências sociais» que causou a pandemia do coronavírus «em todos os bairros» desse setor de Barcelona.
A plataforma apresentou, nesta quarta-feira, um manifesto pelo qual alerta que «muita gente que vivia de trabalhos precários, ficaram sem trabalho» e que «o colapso total da economia ligada ao turismo desborda à absoluta indigência, milhares de pessoas», pelo qual exige que «este grave problema humano seja abordado de uma maneira imediata e eficaz pelas administrações públicas».
As primeiras entidades que assinaram o manifesto são Anarcoveganos del Raval, ANC-Ciutat Vella, Asociación de Vecinos Casco Antiguo, CDR Casc Antic, Consell Local per a la República-Ciutat Vella, Fundació Arrels, Òmnium Cultural-Ciutat Vella e a Xarxa Veinal del Gòtic.
A plataforma propõe uma «ampliação notória» dos recursos humanos e econômicos dos serviços de assistência social municipais «a curto prazo» e «reformular as políticas de impulso econômico e comércio dos bairros» para «diminuir a dependência econômica do turismo da Cidade Velha».
Além disso, Emergencia en Ciutat Vella propôs uma primeira lista de medidas entre as quais destacam a de converter em lugares estruturais da cidade de Barcelona, os mais de 600 lugares de alojamento de emergência abertos durante o estado de alarme para pessoas sem casa/lar.
Propõem também criar, pelo menos, um espaço de alojamento de baixa exigência em cada um dos bairros do distrito e prorrogar até o fim do ano a estadia dos jovens não acompanhados que completam 18 anos durante 2020 em apartamentos tutelados.

23  Em uma tradução livre, temos que: «Cada vez mais pessoas dormem nas ruas de Barcelona», «O confinamento agravou a situação dos sem casa» e «São 1.200 pessoas, um 80 % a mais que há 10 anos».

TSN nº16, 2024. ISSN: 2530-8521