Especial
TSN nº 15, 2023. ISSN: 2530-8521
A LISBOA DE SANTO ANTÓNIO
The Lisbon of Saint Anthony
Isabel Dâmaso Santos
Universidade de Lisboa (Portugal)

RESUMEN

Portugal, e em particular a cidade de Lisboa, estão intimamente relacionados com a figura de Santo António, desde o seu nascimento, no século XII. Esta ligação reflete-se na designação pela qual o santo é conhecido em Portugal: Santo António de Lisboa. Tanto assim é que o património arquitetónico e cultural antoniano constitui um dos principais traços identitários da cidade de Lisboa, revelando-se como uma história viva da história de Santo António, da sua vida e da sua taumaturgia, que se reinventa constantemente de acordo com a evolução do culto antoniano, ao ritmo do desenvolvimento da sociedade. Esta particularidade da capital portuguesa demonstra a sua grande capacidade de conciliar tradição e modernidade, ao mesmo tempo que promove a existência de um imaginário próprio e único, no qual se destaca o significado simbólico que a imagem de Santo António envolve, considerada um dos ícones mais distintivos da identidade da cidade de Lisboa.

Palabras clave: Santo António, Lisboa, cultura, identidade, património,culto, devoção

ABSTRACT

Portugal, and in particular the city of Lisbon, has had a very close relationship with the figure of Saint Anthony, since his birth in the 12th Century. Such connection is reflected in the name by which the saint is known in Portugal: Saint Anthony of Lisbon. Saint Anthony’s architectural and cultural patrimony constitutes one of the main identifying characteristics of the city of Lisbon. It unveils as a living story of the history of Saint Anthony, of his life and of his thaumaturgy, that constantly reinvents itself based on the development of the cult expressed by society. This specific aspect of the Portuguese capital demonstrates its great capacity to combine tradition and modernity, as well as give rise to a unique popular imagery emphasizing the symbolic meaning of the image of Saint Anthony, considered one of the most distinctive icons of Lisbon’s identity.

Keywords: Saint Anthony, Lisbon, culture, identity, patrimony, cult, devotion
• Contenido •

A cidade de Lisboa vive uma relação muito íntima com a figura de Santo António desde o seu nascimento, facto que se reflete na designação pela qual o santo é identificado em Portugal: Santo António de Lisboa. No entanto, fora de Portugal, é mais conhecido como Santo António de Pádua, em referência ao local da sua morte, que ocorreu a 13 de junho de 1231. Ultrapassando esta dicotomia, Santo António é universalmente conhecido como «o santo de todo o mundo», conforme foi designado pelo Papa Leão XIII.

Santo António nasceu na cidade de Lisboa, no final do século XII, onde viveu os primeiros anos. Mais tarde, mudou-se para a cidade de Coimbra, onde se converteu ao franciscanismo. Em 1220, foi para Marrocos, onde permaneceu pouco tempo, pois alguns problemas de saúde determinaram o seu regresso a Lisboa. Forçado pela doença, Fernando empreendeu a viagem de regresso a Portugal, mas novamente seria surpreendido pelos acontecimentos: segundo a lenda, uma tremenda tempestade empurrou o navio para a ilha da Sicília, onde foi recebido num mosteiro de franciscanos.

Aí iniciou um caminho cheio de grandeza, chegando a conhecer o seu fundador. Contribuiu enormemente para o crescimento e renovação desta Ordem, que ainda procurava um lugar no panorama das instituições religiosas. Na verdade, foi em Itália, principalmente na região de Pádua (onde se encontram preservados os seus restos mortais) que Santo António se destacou em vida.

Não regressaria a Lisboa, mas podemos considerar que uma relação especial entre o santo e esta cidade teve início a 30 de maio de 1232, quando o Papa Gregório IX canonizou Santo António em Spoleto, Itália. Conta-se que, exatamente nesse momento, os sinos das igrejas de Lisboa começaram a tocar em uníssono, como sinal da preferência do santo pela sua cidade natal.

Com a notícia da canonização em Pádua e deste acontecimento extraordinário em Lisboa, estabeleceu-se o culto antoniano na cidade: foi-lhe dedicado o altar-mor da Sé, o templo onde fora batizado e onde iniciara os seus estudos, e deu-se início ao processo de edificação da igreja de Santo António, no local onde se julga que terá nascido, mesmo junto à Sé, em Lisboa. Este templo tornar-se-ia o mais emblemático lugar relacionado com o culto antoniano em Lisboa, garantindo os ofícios religiosos, nomeadamente no que toca às duas datas celebradas: 15 de fevereiro, em alusão à cerimónia da trasladação do corpo do santo, ocorrida em 1363, em Pádua, quando foi encontrada a sua língua incorrupta, que seria convertida em relíquia simbólica da santidade da sua palavra e da sua acção; e o dia da festa anual dedicada ao santo, a 13 de junho. A primeira data foi perdendo impacto à medida que a segunda foi ganhando popularidade e dimensão.

Inicialmente de natureza puramente religiosa, e acompanhando a difusão da Ordem Franciscana, o culto antoniano contou desde muito cedo com o apoio da monarquia portuguesa. Santo António rapidamente se tornou um santo tão popular que uma série de manifestações de carácter devocional começaram a realizar-se em sua homenagem, especialmente em Lisboa, que se assumiu como um lugar privilegiado por ter sido o local de nascimento de um santo tão milagroso.

A veracidade atestada das suas origens no bairro lisboeta de Alfama conferiu-lhe o estatuto de amigo íntimo dos outros vizinhos lisboetas, que começaram a atribuir-lhe a capacidade de os ajudar, confiando-lhe os seus problemas à espera de solução. Sentiam-se privilegiados por terem convivido com o santo e, segundo a crença, por isso ele poderia favorecê-los, concedendo-lhes graças. Julga-se que desde muito cedo, ou melhor, já na Idade Média, o santo era muito requisitado pelos lisboetas com todo o tipo de pedidos de ajuda. A piedade popular foi fazendo crescer a devoção por Santo António, vindo a atingir uma dimensão extraordinária que ultrapassa fronteiras e credos.

Como é compreensível, a cidade de Lisboa, enquanto berço, arroga-se uma relação particular com o santo. Tanto é assim que um dos traços identitários da cidade de Lisboa é o património arquitetónico e cultural antoniano, sob as suas diferentes formas de expressão: monumentos relacionados com a sua vida na cidade e outros construídos em sua honra; toponímia e expressões coloquiais com origem em momentos da vida e da taumaturgia do santo; rituais religiosos específicos; ritos de festas de rua que abrangem toda a cidade e algumas estruturas, tais como a Câmara Municipal, o Patriarcado, os comerciantes, as coletividades recreativas dos bairros, especificamente os «Casamentos» e as «Marchas» de Santo António. Na verdade, a figura de Santo António constitui um ícone cultural identitário da cidade de Lisboa, tendo em conta o património material e imaterial existente. De facto, o volume e a variedade de manifestações arquitetónicas, artísticas e devocionais, de natureza erudita e popular, alusivas à sua figura, constituem um riquíssimo acervo documental da arte e da cultura de Portugal, e de Lisboa em particular.

Comecemos pelos monumentos relacionados com a sua vida em Lisboa e que nos permitem recuperar a sua trajectória biográfica nesta cidade:

A arte pública dedica-lhe uma grande estátua de bronze, inaugurada a 4 de outubro de 1972, na Praça de Alvalade, eixo central de um bairro que tinha acabado de ser construído nessa altura. O escultor António Duarte quis destacar a vertente de pregador do santo, razão pela qual não acom panha a figura do Menino Jesus.

Por outro lado, abundam vestígios do nome do santo na toponímia da cidade, seja em ruas, praças, escadas/escadinhas, rotundas, etc., espalhadas por diferentes bairros: todos querem homenageá-lo e sentir-se mais protegidos.

O milagre que o santo terá operado quando veio a Lisboa para salvar o pai de ser injustamente enforcado deixa a sua marca na toponímia da cidade, que conta com a Rua do Milagre de Santo António, onde se acredita que o prodígio tenha ocorrido, no bairro de Alfama, perto do Castelo de São Jorge.

Em referência a este milagre, embora cada vez mais em desuso, ainda se pode ouvir a expressão coloquial parece que vai livrar o pai da forca, quando nos referimos a alguém que se move de forma muito rápida e com determinação, tal como se terá deslocado Santo António desde Pádua até Lisboa para salvar o seu pai.

A expressão estar a pregar aos peixes continua a ser utilizada para referir alguém que está a falar sem que haja quem o oiça com atenção, numa clara alusão ao que terá acontecido aquando do milagre do sermão do santo aos peixes em Rímini.

Torna-se bastante interessante observar a apropriação destes dois episódios milagrosos por parte da língua portuguesa coloquial, demonstrando a forte presença da figura do santo no âmbito quotidiano.

Enquanto protector, julga-se que o facto de os marinheiros, sobretudo os da região de Lisboa, confiarem as suas vidas a Santo António antes de partirem de viagem, bem como o costume de levarem uma imagem sua, pode encontrar origem numa certa identificação com o sofrimento que o santo terá vivido quando, enfermo, sobreviveu à forte tempestade que o levou a Itália.

Outra tradição muito popular é colocar uma imagem do santo, geralmente em forma de pequenos painéis de azulejos que são aplicados nas fachadas das casas, com a intenção de garantir a proteção das mesmas. Pensa-se que este costume terá começado após o terramoto, de acordo com muitos relatos de milagres de salvação atribuídos ao santo. Por esta altura, chegou a suplantar tanto a imagem de São Francisco de Borja, venerada como protetora contra terremotos, quanto a de São Marçal, conhecida como protetora contra incêndios.

Com efeito, a relação identitária entre o santo e a cidade de Lisboa seria reforçada em consequência do terramoto. Segundo a opinião dos lisboetas, os estragos causados pelo desastre, apesar de avultados, não corresponderam à magnitude do mes mo, milagre que se atribuiu à acção protec tora de Santo António. Assim, os moradores juntaram-se para fazer renascer a cidade das cinzas deixadas pelos muitos incêndios que surgiram em consequência do terramoto. Foram sobretudo as crianças do bairro de Alfama que assumiram a tarefa de pedir donativos à porta das igrejas que tinham ficado de pé. Tinham como objetivo angariar dinheiro para a reconstrução da igreja de Santo António, bastante destruída pelos efeitos da catástrofe, com excepção da lápide alusiva à fundação da igreja, da cripta e da imagem do santo, como já foi referido. As crianças aproveitavam as escadas e escadarias para montar «tronos», encimados pela imagem do santo, onde os moradores e visitantes podiam deixar as suas esmolas.

Nascia, assim, um costume tipicamente lisboeta que sobrevive ainda hoje e é atualmente motivo de um concurso anual promovido pela Câmara Municipal, através da EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural), que premeia os mais belos e simples «tronos», representativos desta tradição. É possível encontrar «tronos» em diferentes pontos dos bairros mais típicos da cidade, associados por vezes à decoração de montras de lojas durante o período das festas. Pertence a este organismo, sem dúvida, o enorme mérito de continuar a apoiar e desenvolver um conjunto de tradições relacionadas com Santo António e as festas em sua honra no dia 13 de junho, incorporando-as no quadro das festividades da cidade de Lisboa.

Há notícia de que no ano de 1318 já havia festas em Lisboa com animados bailes em honra a Santo António. No século XVII, encontrava-se já enraizado o costume de realizar representações teatrais e corridas de touros, para além de uma feira e arraiais.

Todas estas manifestações festivas foram interrompidas na sequência do terramoto de 1755, e retomadas pouco a pouco, ao ritmo dos trabalhos de recuperação da cidade. Em 1778, realizaram-se importantes festas em honra a Santo António com a finalidade de angariar dinheiro para a reconstrução da igreja do santo, bastante destruída pelos efeitos da catástrofe. Em 1787, o culto encontrava-se totalmente restabelecido e, a partir daí, os festejos foram sendo retomados em pleno e em crescendo ao longo do século XIX. O centenário do nascimento do santo, celebrado em 1895, representou um grande impulso do culto lisboeta.

Mas foi no século XX, a partir das comemorações da morte e da canonização de Santo António, em 1931 e 1932, respetivamente, que se desencadeou um conjunto de iniciativas que levaram ao reconhecimento do seu valor iconográfico como emblema nacional e à revalorização da sua figura do ponto de vista cultural. Note-se o seguinte:

Verifica-se que estamos perante um período de cerca de vinte anos que constitui um verdadeiro fenómeno de popularização da figura de Santo António, cujos resultados percebemos na actualidade, inclusivamente no domínio do turismo. Há que ter em conta a pertinência, a utilidade e a oportunidade das festas populares como iniciativa estratégica de animação turística da cidade, que atrai cada vez mais turistas desejosos de assistir e de participar nas diferentes actividades festivas, seja nos casamentos, nas marchas, nos arraiais ou na procissão, numa harmoniosa mescla entre o sagrado e o profano.

As cerimónias religiosas têm início treze dias antes da festa, com as trezenas que são rezadas na Igreja-Casa, e em muitos outros templos, como ritual de preparação para a festa. As cerimónias litúrgicas começam na Igreja-Casa de Santo António, com missas, celebrando-se às 12 horas a missa solene da festa, seguida da distribuição dos pães. O momento mais valorizado consiste na procissão que sai às 17 horas e que enche de devotos as ruas das imediações. Os moradores ornamentam as janelas e as varandas das casas com colchas e lançam pétalas de flores no momento em que passa a imagem do santo. Ao longo do percurso vão-se incorporando andores com outros quatros santos: São João, São Miguel, Santo Estêvão e Santiago, patronos das igrejas do bairro de Alfama. Nesta procissão participam diversas individualidades de relevo para a cidade, nomeadamente o Presidente da Câmara Municipal. No final, todos assistem ao Te Deum, a oração de Acção de Graças presidida pelo Arcebispo de Lisboa e realizada no adro da Sé.

Estas celebrações remetem para práticas anteriores que se perpetuaram no tempo. Há notícia de que no século XVIII, nas Vésperas de 13 de junho, toda a corte comparecia e a música era executada pelos músicos da Capela Real. O bodo era distribuído aos pobres, que consistia num lanche composto por diferentes pães e doces. A família real também recebia um ramo de cravos.

Atualmente, os ramos de cravos são vendidos nas ruas e quem os compra oferece-os ao santo como forma de gratidão pelos favores obtidos. Também perdura a tradição de abençoar e distribuir os pães, praticada em muitas partes do mundo. Em Lisboa, o lucro obtido com a venda simbólica destes pequenos pães reverte para a Obra da Imaculada Conceição e Santo António, que acolhe cerca de uma centena de crianças carenciadas.

Esta tradição, que se mantém em muitos santuários antonianos dispersos por todo o mundo, teve origem em Pádua, no século XIV, quando, segundo a lenda, uma mulher prometeu oferecer trigo aos pobres, em peso igual ao do seu filho, de vinte meses, se Santo António o salvasse. Por intercessão do santo, criança foi ressuscitada, depois de se encontrar afogada, após ter caído a um poço. Portanto, o milagre aconteceu e a mulher cumpriu a sua promessa. Em França, generalizou-se o costume de benzer o trigo, dado em quantidade igual ao peso da criança que se pretendia colocar sob a protecção de Santo António.

Às celebrações religiosas antecedem festividades de cariz mais popular. Com o início do mês de junho, a cidade de Lisboa começa a vestir-se de festa para celebrar o seu santo. As varandas cobrem-se de flores, principalmente de cravos, os recantos vão-se transformando em zonas de convívio, as ruas enchem-se de balões e são inundadas pelo cheiro a sardinha assada. No dia 12 de junho, realiza-se a cerimónia dos Casamentos de Santo António, promovida pela Câmara Municipal e organizada pela EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural) com o apoio de alguns comerciantes da capital. Esta iniciativa, que teve início em 1958, em virtude da fama casamenteira de Santo António, foi lançada pelo extinto jornal Diário Popular, mas foi interrompida em 1974, no contexto da Revolução, sendo posteriormente recuperada em 1997.

Trata-se de um casamento coletivo, em que se casam os dezasseis casais selecionados. Todos os candidatos são sujeitos a um processo de selecção, para o qual têm de apresentar candidatura, que podem fazer a partir do dia 14 de fevereiro, assinalado como o Dia dos Namorados, sendo obrigatório que pelo menos um dos membros do casal seja residente em Lisboa. O objetivo inicial era ajudar os jovens a começar uma vida juntos na cidade, favorecida por Santo António. Por esse motivo, todas as despesas relacionadas com a cerimónia ficam a cargo das empresas patrocinadoras. Esta tradição constitui um momento alto das emissões televisivas, que acompanham a par e passo, não só as celebrações, como todos os preparativos, dedicando a este assunto vários programas que antecedem a cerimónia de dia 12 de junho, para que se fique a conhecer melhor os casais eleitos e a sua história romântica.

Com o tempo, a tradição dos casamentos foi-se modernizando. Inicialmente designada «Noivas de Santo António», tinha lugar na Igreja de Santo António, sendo que atualmente a cerimónia religiosa decorre na Sé de Lisboa, e, nos últimos anos, estendeu-se ao Salão Nobre dos Paços do Concelho, para celebrar os casamentos civis, refletindo o espírito multicultural existente. Há cada vez mais casais com elementos de raças e origens diversas. Assim, esta tradição consegue atualmente contribuir também para a integração dos estrangeiros na realidade cultural da cidade e do país.

Seguindo a tradição, ao terminar a cerimónia oficial de casamento, as noivas de Santo António podem oferecer os seus ramos de flores ao santo, e à noite todos os casais costumam desfilar pela Avenida da Liberdade, durante o concurso das «marchas», que também integra o programa das festas de Lisboa.

A tradição das «marchas» pode ter as suas origens em antigos desfiles inspirados no Carnaval e nas marchas militares francesas destinadas a celebrar a tomada da Bastilha, designadas «Marche aux Flambeaux». A primeira edição das «marchas» em Lisboa realizou-se em 1932, ano em que se comemorou o Sétimo Centenário da canonização de Santo António, e a partir de 1934 foram incluídas no Programa das Festas de Lisboa, com o patrocínio da Câmara Municipal. O cinema contribuiu para a popularização desta tradição, principalmente através de dois filmes: A Canção de Lisboa (1933) e O Pátio das Cantigas (1941). No entanto, a sua realização foi interrompida em várias ocasiões, principalmente durante os anos setenta. Nos anos oitenta a «marcha» das crianças foi incluída como estratégia de revitalização. A organização das «marchas» foi recuperada nos anos noventa com regularidade e novo vigor, e vive atualmente um dos seus melhores momentos.

Estes desfiles são organizados pelas colectividades associativas dos bairros mais antigos e típicos da cidade. Estas sociedades recreativas têm um papel fundamental na vida dos moradores, como foco unificador das diferentes gerações, como rede de apoio social, como eixo de transmissão de valores culturais ou, ainda, como espaço de encontro, socialização e entretenimento. Esta fórmula festiva consegue reunir participantes de todas as idades numa mesma festa, fortalecendo os seus laços. Cada comunidade escolhe um tema relacionado com o quotidiano do bairro para criar uma melodia (letra e música) com a coreografia e figurinos correspondentes, que desfila pela Avenida da Liberdade, artéria estruturante da cidade, convertida em palco de uma disputa bem castiça entre as colectividades envolvidas. Pretende-se, assim, contribuir para intensificar a identidade do bairro, recorrendo frequentemente à imagem do santo e aos seus milagres. Trata-se da principal manifestação etnográfica da cidade e constitui um símbolo festivo, popular e urbano ao mesmo tempo. As «marchas» representam num contexto urbano a atmosfera do bairro, do grupo, dos vizinhos, das pessoas.

A este espectáculo organizado juntam-se os «arraiais» que se realizam, quase de forma espontânea, um pouco por todos os bairros de Lisboa. As ruas e ruelas são adornadas com lanternas e grinaldas de papel para decorar os espaços onde têm lugar animados bailes e retumbantes fogos de artifício. Antes, havia ainda a tradição de saltar as fogueiras, costume que se encontra em declínio por razões de segurança. Estas festas são condimentadas com requintados petiscos bastante típicos destas festividades: sardinha assada, com pão ou broa, e caldo verde, acompanhados de vinho tinto. É possível provar estas iguarias em cada recanto dos bairros mais antigos, em restaurantes de rua ou em bares improvisados.

Julga-se que estas manifestações populares tenham raízes em celebrações que remontam aos séculos XVII e XVIII, quando se festejavam as vésperas dos dias dos três santos populares — Santo António, São João e São Pedro — mas cujas origens mais remotas nos remetem para o processo de assimilação de cultos pagãos relacionados com o solstício de Verão e até com antigos rituais de fogo, implícitos no simbolismo das fogueiras nestes festejos.

Devido à tradição de comer sardinhas assadas nos arraiais da noite de 12 de junho, e ao longo dos dias que marcam esta época festiva, a figura da sardinha foi adquirindo ao longo dos últimos anos um lugar particular enquanto marca integrada nas Festas de Lisboa, com mais impacto desde 2003. A partir de 2011, a Câmara Municipal instituiu o concurso das sardinhas, que tem visto aumentar o número de candidaturas de ano para ano. Trata-se essencialmente de um concurso que põe à prova a criatividade em torno da imagem da sardinha, que surge muito associada a outros elementos tradicionais lisboetas, nomeadamente Santo António.

Por esta altura, são vendidos nas ruas pequenos vasos de manjericos, com cravos de papel e quadras populares escritas em pequenas bandeirolas. Todos os anos há concursos de quadras de Santo António, também organizados pela Câmara Municipal de Lisboa.

Até o escritor Fernando Pessoa escreveu quadras alusivas a esta tradição como, por exemplo, a seguinte:

O manjerico e a bandeira
Que há no cravo de papel —
Tudo isso enche a noite inteira,
Ó boca de sangue e mel.

Fernando Pessoa nasceu precisamente no dia 13 de junho (de 1888), dia de Santo António, motivo pelo qual recebeu o nome Fernando António, que junta os dois nomes do santo.

Para além das celebrações religiosas e das festividades populares mencionadas, não podemos deixar de referir uma infinidade de actividades e de espectáculos que integram o programa das Festas de Lisboa, enriquecendo as tradições portuguesas com novos contributos, seja com espetáculos de dança, fado, jazz e tango, por exemplo, seja com mostras de cinema, exposições de artistas variados ou espetáculos teatrais.

A verdade é que as festas populares dedicadas a Santo António sempre tiveram uma forte componente musical e de espetáculos. Um bom exemplo é a representação realizada a 11 de junho de 1934 do Auto de Santo Antônio, de Gustavo de Matos Sequeira. Trata-se de um texto dramático escrito a partir de um auto quinhentista com o mesmo título e composto por Afonso Álvares. Sequeira introduziu personagens para dar vida a episódios que retratam a evolução do culto antoniano. Incluiu, ainda, uma personagem feminina que é a personificação da cidade de Lisboa e que se apresenta a cantar com grande esplendor as suas maravilhas. Este texto foi representado algumas vezes, em espaços públicos, ao longo do século XX, graças ao trabalho da companhia Teatro do Povo.

Já no século XXI (em 2008), o GEFAC (Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra) apresentou o espetáculo Comédia do verdadeiro Santo António que libertou o pai da morte em Lisboa. O espetáculo, que decorreu no Largo da Rosa, praça do bairro lisboeta da Mouraria, por iniciativa da Associação Renovar a Mouraria, e que foi integrado no programa das Festas da Cidade, baseia-se num texto teatral popular mirandês e é o resultado de um intenso trabalho de recolha e investigação levado a cabo pelo referido grupo conimbricense. Em 2013, foi representada a peça Santo António, nos claustros da Sé de Lisboa em junho, pelo Grupo de Teatro A Barraca, com o apoio da Câmara Municipal.

Como fica demonstrado neste trabalho, as festividades em torno de Santo António que decorrem em Lisboa constituem um momento importante na vida da cidade e contribuem para delinear o seu perfil identitário na sociedade actual, razão pela qual foram incorporadas no programa oficial das Festas de Lisboa, organizado pela Câmara Municipal.

Estas festas consistem num conjunto significativo de expressões da cultura popular que, a par das cerimónias religiosas, envolvem um grande número de habitantes da cidade. Estas festividades, vividas maioritariamente na rua, exigem um grande esforço de organização por parte dos moradores, que colaboram de bom grado nesta festa colectiva, que atrai cada vez mais turistas todos os anos. Os moradores dos bairros vivem com grande intensidade essas festas que permitem preservar rituais ancestrais dentro do contexto urbano. Além disso, graças à sua celebração, garante-se a ritualidade festiva necessária na sociedade actual.

Outro aspeto fundamental é a capacidade que essas festas têm de ultrapassar a fraca sociabilidade da vida urbana moderna por meio de manifestações coletivas como as «marchas» ou os arraiais, por exemplo, que exigem formas comunitárias de organização e estimulam as relações de vizinhança. As festas tradicionais são readaptadas ao contexto urbano moderno, tornando-se expressões simbólicas heterogéneas.

Cabe à figura de Santo António o grande mérito de envolver a cidade nesta atmosfera festiva e única, conferindo-lhe uma identidade específica que contrasta com o inevitável processo de globalização da sociedade atual. Assiste-se a um movimento de dignificação dos fatores de diferenciação e reconhecimento de estruturas simbólicas que outorgam identidade exclusiva a cada lugar e que assentam na revalorização e reinvenção do passado, do património, da memória, das tradições, do folclore, do artesanato, da gastronomia, etc. Este processo desenvolve-se também através da fixação de ícones identitários identificadores, desenhados com uma auréola de modernidade, projetando uma imagem que associa a tradição ao presente, projectando uma visão de futuro.

Note-se o crescente envolvimento da orgânica e das estruturas municipais na dinamização de eventos festivos em torno da figura de Santo António e das festas que a sua imagem suscita, fazendo-as dilatar ao longo do mês de junho sob a designação de Festas de Lisboa.

Em suma, a cidade de Lisboa é um relato da história de Santo António, da sua vida, da sua taumaturgia, mas que se reinventa, acompanhando o desenvolvimento do culto e da sociedade. Constitui uma especificidade da cidade, capaz de conciliar tradição e modernidade, para além da homogeneidade indiferenciada e indiferente ao local, mas homogénea quanto ao significado simbólico que alcança como ícone identitário.

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