Sobre cabezas eu te dizia que era uma tragédia não shakespeariana, uma comédia não buñuelesca, um filme meu, livre, a política latino-americana vista segundo Borges, um filme não recuperável pela direita, nem utilizável pela esquerda […] e, escreveu Muñoz Suay (um dos produtores), o filme já tem uma utilidade no cinema espanhol. (Rocha apud Bentes, 1997, p. 372).
Glauber Rocha teve uma carreira consolidada na década de 1960. Fez um curta-metragem em 1959, O pátio (1959), aos 20 anos. Três anos depois estreava em direção de longas-metragens com Barravento (1962). Seguiram a este outros três importantes trabalhos de Glauber, Deus e o diabo na terra do sol (1964), Terra em transe (1967) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), conhecido na Europa como Antônio das mortes. Este período é marcado ainda pela produção de dois curtas documentários: Amazonas, Amazonas (1965) e Maranhão 66 (1966). Ambos encomendados por jovens governadores do norte e nordeste do Brasil após o sucesso de Deus e o diabo na terra do sol em Cannes.
Nesta primeira fase da carreira do cineasta, fica clara a veia política de seu trabalho fílmico, ligado ao movimento antropofágico brasileiro intitulado tropicalismo, que, dito de forma muito resumida, tinha por proposta evidenciar as tradições e heranças culturais locais, em fusão com os elementos de mundialização advindos da cultura de massas e dos meios de comunicação. No meio cinematográfico surge o Cinema Novo no Brasil, um conjunto de jovens realizadores que buscavam os traços de um cinema brasileiro que surgisse das questões nacionais e de uma estética urgida nos referentes locais em diálogo com o cinema mundial. Nesse contexto vem à tona uma produção profícua de um cinema autoral, que coloca em relevo as temáticas e problemas próprios da realidade brasileira, subdesenvolvida e colonizada. Esses filmes produzidos no contexto do Cinema Novo da década de 1960 ganham relevo internacional, obtendo ingresso em muitos festivais e festejados pela crítica especializada, sobretudo, mas não só, na França.
Glauber Rocha torna-se o mais destacado dos realizadores, não só pela qualidade e pertinência de seus filmes para a época, mas pela sua ampla atuação em escrita de ensaios sobre o Cinema Novo e sua obra, além de participação em festivais, conferências e entrevistas, que concedeu ao longo da carreira. Glauber era incansável em sua jornada em direção a um cinema político sem amarras, contado a partir da realidade e do olhar latino-americanos.
Sua antologia escrita está publicada na obra Revolução do Cinema Novo (2004), em que se pode perceber toda a grandiosidade e profusão do seu pensamento artístico, filosófico e político. Entre a primeira fase de sua obra, realizada no Brasil na década de 1960, e a segunda fase realizada no estrangeiro na década de 1970, dá-se a conhecer duas facetas bem distintas da totalidade da obra do diretor. Há dois manifestos publicados por Glauber, a Eztetyka da fome, escrito em 1965, e Eztetyka do sonho, de 1971, que refletem de forma muito assertiva as mudanças estilísticas e motivações estéticas e políticas de Glauber na primeira e segunda fase de seu trabalho. O primeiro, de sucesso e reconhecimento, o segundo de críticas e ocaso.
Na Eztetyka da fome, Glauber afirma sua perspectiva a respeito da percepção da Europa sobre o Cinema Novo: «Aí reside a trágica originalidade do cinema novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome é nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida» (Rocha, 2004, p. 65). Glauber diz que o movimento do Cinema Novo «para o europeu é um estranho surrealismo» (idem, p. 66). No manifesto o autor traz ainda a ideia que a mais nobre expressão da fome é a violência, e que ao Cinema Novo se realizar na «política da fome», sofre de «todas as fraquezas consequentes de sua existência».
O sucesso de crítica do Cinema Novo e sobretudo dos primeiros quatro longas-metragens do cineasta baiano se baseia justamente na crueza política e estética das desigualdades de classe e no universo político latino-americano, marcado pelo populismo e ditaduras, apresentado como trágico em pinceladas barrocas, mestiças e surrealistas. A violência não é gratuita nos filmes de Glauber, menos ainda os motivos que a suscita. Cada gesto de violência é devidamente ralentado e escrutinado pelo olho como modo de vicejar o real vivido, para planejar, no plano estético e artístico, a revolução dos povos oprimidos e das nações subdesenvolvidas. Projeto utópico, e por isso mesmo nunca alcançável ou operacionalizável, a não ser como ideia, enquanto arte, na escrita intelectual e na construção poética da imagem e som em movimentos, erradios, quânticos, alegóricos, ritualizados.
Como leitor de Frantz Fanon, filósofo e psiquiatra martinicano, a estética da fome de Glauber reivindica a violência como forma legitima de se rebelar contra a dominação das classes opressoras sobre as classes e frações de classe e etnias subalternizadas pelo processo histórico.
Fanon adota a violência como um dos instrumentos principais no combate ao colonialismo e ao racismo, não apenas como forma de resistência física à intervenção do colonizador, mas sobretudo pelo seu significado simbólico de uma revolta associada à identidade negra e do colonizado. (Junior, 2019, p. 21).
Todas essas questões são exemplarmente colocadas nos seus filmes, como em Barravento, as relações de exploração entre os donos dos meios de produção e a comunidade de pescadores, em Deus e o diabo na terra do sol e em O dragão da maldade contra o santo guerreiro, as relações entre fazendeiros latifundiários, denominados coronéis no nordeste do Brasil, e os campesinos, destituídos de direitos e de terras, vítimas da estrutura de extrema desigualdade e violência sociais, herança de uma época escravagista e colonial. Terra em transe apresenta a vitória da ditadura, a impotência da esquerda intelectual e a realidade distópica do Brasil após o golpe de 1964. Tudo isto colocado através de um teatro épico filmado, com tons surrealistas e tropicalistas, com símbolos e alegorias que buscavam em metáforas signos de uma história dos povos latino-americanos.
Após o acirramento da ditadura no Brasil com o AI-5, Ato Constitucional que endureceu as regras do estado de exceção, Glauber se viu sem espaço no Brasil, e com a fama pelo prêmio de melhor diretor no festival de Cannes de 1969 com O dragão da maldade contra o santo guerreiro, resolve alçar voo para sua experiência tricontinental. É sobre esta segunda fase da obra do cineasta, dada nos anos 1970 até 1980, que Cabezas cortadas se localiza, logo em seu primeiro ano de internacionalização.
Uma obra de arte revolucionária deveria não atuar de modo imediatamente político como também promover a especulação filosófica, criando uma estética do eterno movimento humano rumo à sua integração cósmica.
A existência descontinua de arte revolucionária no Terceiro Mundo se deve fundamentalmente às repressões do racionalismo. (Rocha, 2004, p. 249).
Glauber defende a partir de então que, em vez da violência, a única força capaz de superar a sede de poder e miséria que a tradição imperial e colonialista deixou para o Terceiro Mundo seria desestabilizar as forças reacionárias através do sonho, da irracionalidade, do delírio e da radicalização na ritualização do gesto fílmico, como expressão própria de tal ruptura estrutural descolonizante. Isto gerou certa deriva da carreira e da própria obra do cineasta, que sempre se viu em dificuldades financeiras e para realizar seus projetos.
Dentro dessa nossa perspectiva fílmica, Glauber vai empreender já em 1970 O leão de sete cabeças, filme franco-congolês, filmado na África, e Cabezas cortadas, feito em Catalunha (Espanha). Pode-se dizer que a linguagem se torna mais fragmentada, e que as relações se dão mais ao nível das ideias e das próprias imagens e sons do que de uma narrativa realista, apesar do cinema glauberiano sempre perscrutar o real. As questões políticas continuam no cerne da discussão, mas elas encontram cada vez mais ancoragem na dimensão onírica das imagens, naquilo que o próprio artista intitulou de cinema épico-didático. Neste sentido:
A política irrompe decodificada e transformada pela estética que, por sua vez, opõe-se a uma aproximação direta ou não mediada dos fenômenos sócio-históricos: ela recria personagens, mistura acontecimentos, fortalece certas qualidades, esvazia outras. (Cardoso, 2017, p. 238).
Tal política e arte revolucionárias, para Glauber, só poderiam advir das veias das massas populares, que tomadas pelo espírito reestruturante do espaço-tempo das religiões e culturas populares, poderiam assumir sua própria condição de sujeitos de sua história. Então, o universo místico popular, a música, assim como a dança e os cantos do povo sempre foram nos filmes de Glauber uma emanação dos ideais e dos gestos revolucionários, em estado puro. Em Cabezas cortadas tal intenção é latente.
Cabezas cortadas representou o lance mais ousado, o gesto de maior alcance do cineasta tricontinental, não apenas porque Glauber filmou na Europa e fez citações ao contexto da Espanha franquista, mas porque «devorou» referências, mergulhou nas tradições da cultura europeia e aproximou universos distintos, embaralhando os sinais. (Idem, p. 244).
Cabezas cortadas apresenta os últimos dias de um ditador latino-americano. Como em toda obra de Glauber, há um exercício de autocitação. O ditador chama-se Diaz II, e o país é Eldorado, fictício país de Terra em transe. Neste, temos a figura de Diaz, que através de um golpe de estado tira do poder o líder populista Vieira. Clara alusão ao golpe militar de 1964. Tanto que o filme feito na Espanha em 1970 é considerado por alguns a continuação livre de Terra em transe. Creio que não seja este o caso, mas as referências às ditaduras na América Latina, tema central em Terra em transe, voltam em Cabezas cortadas, só que numa outra chave de leitura.
Dessa vez o rei está nu! Não é o momento da assunção ao poder, mas sua indefectível derrocada. A história mostra os últimos dias de Diaz II no exílio, em seu delírio em um castelo em ruínas. A narrativa não revela onde, e a mescla de elementos europeus e americanos promovem a profusão de referências. As relações entre espaço e tempo, realidade e devir, narrativa e fragmentação, são embaralhadas no filme, trabalhando sempre por indução ao campo do sensível.
A cena inicial (imagem 1) 1 é um plano fixo do castelo, sobem os letreiros dos créditos iniciais, com a trilha sonora de Allá en el rancho grande (Costello), música popular mexicana. A ideia enseja uma história circunscrita àquele espaço-tempo. Logo sabemos que a personagem principal do filme é o patético Diaz II, interpretado por Francisco Rabal, em sua jornada até o fim.
Cabezas cortadas narra de modo fragmentado e elíptico a história de Diaz II, um ex-ditador latino- americano exilado que vive num castelo em ruínas, depois de governar o país Eldorado por décadas. Neste castelo, ele é assombrado por uma força mítica, encarnada no Pastor, um personagem surgido nos arredores do castelo, que o persegue e, ao final, o aniquila. (Cardoso, 2017, p. 89).
Imagem 1. Cena inicial de Cabezas cortadas, ao estilo «era uma vez».
Logo após a abertura com o plano fixo no castelo, corta para Diaz II (imagem 2) em uma grande sala tentando uma ligação a longa distância. Logo, se sabe que está no exílio. Fala com o «amigo» Freddy para vender terras e plantações e construir um centro cultural com seu nome. Ao outro lado, no outro telefone, fala com Alba, primeiramente sobre questões sentimentais. Depois volta a Freddy e pede para este providenciar sua biografia e uma estátua sua em Eldorado. Volta a Alba e pergunta sobre o panteão de Beatriz, sempre num fluxo autorreferencial de comentários sobre si, mesmo ao falar dos outros. Há no discurso do ditador em exílio também muita nostalgia.
A segunda personagem que a trama apresenta é o Pastor (imagem 3). Nele reside grande intencionalidade daquilo que Glauber escrevera na Eztetyka do sonho e apresentara na Universidade de Columbia, em 1971. Primeiramente que nada deixa claro que ele é um pastor, não fosse a indicação dada no roteiro do filme: «Com uma foice, um Pastor cruza uma região deserta. Seca» (Senna, 1985, p. 387).
Imagem 2. Diaz II em longo plano sequência do começo do filme, no exílio e rumo ao fim.
Imagem 3. O Pastor, personagem redentora do povo oprimido em Cabezas cortadas.
Ele é a própria encarnação da justiça divina, o vingador dos povos oprimidos, além de milagreiro. Em uma de suas primeiras aparições cura um cego, que volta a enxergar. Noutro momento, sobre este mesmo homem, o Pastor dá-lhe a possibilidade de andar, pois era também aleijado. Ou seja, esse personagem simboliza forças míticas do popular, que ora cura as enfermidades do povo, oferecendo esperança, como também parte numa busca incansável pelo fim de Diaz II, que significa fim da tirania, da expropriação e da figura central do ditador, que já se encontra em seus últimos neste plano. Para Glauber da Estetyka do sonho, só um transe, como o de Terra em transe, mas realizado pela liberação das forças historicamente reprimidas das religiões e culturas populares, através de suas tradições e práticas, é que se pode encontrar a verdadeira revolução popular. Assim, Glauber expressa seu latente descontentamento com a direita, mas também com a esquerda, ambas orientadas por uma razão instrumentalizadora das forças e energias populares, o que evitaria ou diminuiria exponencialmente a pulsão revolucionária. «Os sistemas culturais atuantes, de direita e de esquerda, estão presos a uma razão conservadora» (Rocha, 2004, p. 249). A solução para Glauber, em sua materialidade fílmica, é trocar a fome e a violência pelo sonho, operar de forma que a desrazão tome conta da racionalidade e consiga agir sobre ela, sobre essa manutenção do contrato social e do statu quo, que se traduz em desigualdade social, desmando, violência, etc. Ou seja, é preciso negar a violência que em alguma medida poder através do onírico e do inconsciente fazer emergir a força popular que vai levar ao fim o capitalismo tal como ele se apresenta. «Na medida que a desrazão planeja as revoluções a razão planeja as repressões» (idem, p. 250). Só as forças populares em sua plena expressão na religião e na cultura tem o poder coletivo e subjetivo para empreender esse objetivo: derrocar o capitalismo como religião e promover o levante de uma religiosidade popular de matizes políticas e sociais que tenham por base o povo.
Se na Eztetyka da fome a vinculação era com a perspectiva revolucionária do psiquiatra Frantz Fanon de Os condenados da terra, na Eztetyka do sonho Glauber lança mão de uma perspectiva freudiana na estética de seus filmes, mesmo que isso não fique claro nas suas falas, mas apresentam-se imanentemente na materialidade fílmica de suas obras da década de 1970. Como nos mostra Rancière: «Contra esse positivismo, Freud incita o psicanalista a fazer aliança com a crença popular, com o velho acervo mitológico do significado dos sonhos» (Rancière, 2009, p. 44). O positivismo que fala Rancière tem muito a ver com a razão instrumental e do capitalismo como ideologia e natureza humana, estruturantes das relações de poder. «[…] Freud solicita à arte e à poesia que testemunhem positivamente em favor da racionalidade profunda da “fantasia” […]» (idem, p. 47). A partir de tais analogias fica evidente que o Glauber do Eztetyka do sonho tinha a mesma percepção acerca do poder do inconsciente e da fantasia sobre o real, a ponto de alterar sua essência ou desdobrar-se sobre ele, instaurando outras real-idades narrativas em sua obra. Este é o poder de seu cinema fragmentário do ponto de vista da forma, mas totalizante do ponto de vista da intencionalidade histórica, tentando reduzir a história ao significante, como ele mesmo disse em seus textos.
A partir de 1970, a proposta do cinema tricontinental se efetiva em filmes realizados em diferentes países —Congo, Espanha, Itália—, a questão agora, dentro do impulso totalizador, é representar a história contemporânea numa escala mais ampla do que a encontrada nos anos 1960. […] As figuras de opressão —ditadores, elites locais, oportunistas de vários tipos— exibem sua decomposição num mundo cheio de fantasmagorias, como o de Diaz (Cabezas cortadas). (Xavier, 2001, p. 125).
No triste fim da história de Diaz II de Cabezas cortadas, o ditador tem que se reaver com sua própria história, mas isto se dá como fluxo inconsciente, delírio e tragédia. Nesta última, a citação do Macbeth de Shakespeare aparece de forma canastrona, desconstruindo e reconstruindo os signos culturais europeus, incorporando-os. A citação é feita por Diaz II: «Uma história cheia de fúria e de glória, cantada por um idiota, e que nada significa». Assomando a isto a cultura cigana, o cancioneiro popular mexicano, a figura do Pastor e de Dulcineia, a pedra, o ovo, a foice, o mineiro, o indígena, etc., num embaralhamento das referências em jogo. No terço final do filme, em que encena seu funeral, Diaz II é interpelado pelos filhos bastardos que exigem herança, pelo Pastor que parece também ser seu filho, e pelos signos da cultura popular que em um momento anuncia algum tipo de festa fúnebre. Os gestos lentos e ritualizados do Pastor prenunciam a irreversibilidade do peso da força mística sobre os canalhas em nome do povo, como dão conta de uma recusa à violência realista frente ao destino distópico da realidade social, já crua em si mesma. Essa é a «politicidade do sonho», que é ao mesmo tempo estética, ética e política.
A festa das metáforas, das alegorias, dos símbolos, não é um carnaval da subjetividade; é a rejeição da análise racional de uma realidade deformada pela cultura europeia e asfixiada pelo imperialismo estado-unidense. Um cinema que se opõe às classificações da antropologia colonial. Sua verdadeira dimensão é a «magia irracional». (Rocha apud Cardoso, 2017, p. 118).
Neste sentido, Cabezas cortadas corresponde do ponto de vista da obra de Glauber a um ponto de inflexão com a «teoria» da Eztetyka do sonho, naquilo que em Rancière se conjumina com a «[…] ideia do sensível como inteligível confuso» (Rancière, 2009, p. 12); e em figurações de difíceis decodificações, imagens-sínteses complexas, «do choque e da confusão desses espaços resultam as imagens de sonho de uma revolução muitas vezes impossível de outro modo, mas viável no pensamento, nas palavras e no cinema» (Fonseca, 2017, p. 77). Uma outra característica da Eztetyka do sonho em Cabezas cortadas é a criação de um universo próprio cheio de citações. De Shakespeare a Buñuel, de Pasolini a mitologias populares cristãs. Por essa capacidade de citar sem se filiar, recuperamos a passagem da metodologia da imagem dialética em Benjamin, para quem o método dialético estava diretamente ligado à montagem cinematográfica, por uma verdadeira recuperação do sentido da história: «Este trabalho deve desenvolver ao máximo a arte de citar sem usar aspas. Sua teoria está intimamente ligada à montagem» (Benjamin, 2009, p. 500).
Assim, a restituição do todo narrativo se dá na montagem cinematográfica, mas também na montagem mental, no esforço dialético do espectador, na busca do sentido que ultrapasse a vontade narrativa, e encontre a vontade histórica. A Vontade de história, como diz Ismail Xavier (2001), ou a Eu-história, como alude Ivana Bentes (1997), em Glauber Rocha fragmenta a narrativa para encontrar a totalidade da História, nos símbolos, nas alegorias e na linguagem.
Porém, a aventura do cinema tricontinental de Glauber Rocha foi malogrado. O leão de sete cabeças e Cabezas cortadas foi mal recebido pela crítica, nos festivais, e termina o namoro do cineasta com a crítica especializada de cinema europeia, sobretudo a francesa. Associada a isso, a dificuldade em emplacar seus projetos e de conseguir trabalho levou Glauber a uma situação cada vez mais limite no contexto internacional. Porém, sua vontade de criar e produzir é infindável. Isto é evidenciado na sua grande troca de correspondências e tentativas de contato com os mais diversos interlocutores ao longo da década de 1970 (Bentes, 1997).
Por outro lado, é interessante destacar que, impressionantemente, o filme foi realizado na Espanha em plena ditadura franquista, sendo considerado de «interesse nacional» pela censura espanhola e representando a Espanha no Festival de San Sebastián de 1970. A despeito da má recepção pelo público e pela crítica europeia, Glauber Rocha defendia a atualidade da obra e o prenúncio da queda de Franco cinco anos depois. «Querido Ricardo, viva la muerte de Franco y viva Cabezas cortadas, que es la biografía audiovisual del inconsciente de Franco. Y viva tú y el gordo de Pedro, que la produjisteis. Y lo mejor es que fue el Estado el que la pagó. No tengo remordimientos de esta película, la vi otro día y es actual» (Paris, 13 de dezembro de 1975).
O esforço aqui empreendido sobre Cabezas cortadas não diz respeito a uma análise imanente da obra, como concebido como método em Ismail Xavier e operacionalizado enquanto análise em Maurício Cardoso (2017), em sua tese de doutorado. Caminhei aqui num diálogo entre a sociologia da arte e a política das imagens, ao usar algumas figurações apresentadas em Cabezas cortadas, com algumas reflexões advindas do próprio Glauber e dos seus comentadores. Ademais, sugeri uma aproximação da segunda fase do cinema do cineasta brasileiro, sobretudo sua produção internacional, que foi de 1970 a 1975, rumo a um inconsciente estético, tal como colocado por Rancière (2009) ao ler a influência da teoria psicanalítica nas artes do século XX.
Assim, entende-se as escolhas estéticas de Glauber Rocha ao realizar o filme em Espanha, e o contexto de sua luta e argumentação ante a crítica internacional e sua não submissão aos moldes do cinema de autor da época, instaurando uma defesa indelével do seu cinema como questionamento do imperialismo cultural estado-unidense e do reacionarismo cultural das direitas e esquerdas europeias e latino-americanas. Glauber se lançou em uma luta inglória contra as tentativas de cooptação das lutas revolucionárias, mesmo no campo da arte, pelas racionalidades apaziguadoras e paternalistas tanto da direita golpista quanto da esquerda populista ou intelectual.
Por fim, na materialidade fílmica de Cabezas cortadas fica clara a potência revolucionária da religiosidade popular propalada nos textos de Glauber, na figura do Pastor e seus gestos rituais e decisivos, em direção ao aniquilamento mítico e político de Diaz II, tirano e ditador isolado, enlouquecido e delirante frente ao fim que se aproxima, e que o levará à morte. Como continuidade poética de Terra em transe, as metáforas de Cabezas cortadas estabelecem menos ambivalências entre bem e mal, no entanto adensa a fragmentação da narrativa, a profusão e a abstração das ideias na antropofagia das referências cinematográficas, literárias e culturais, transformando Cabezas cortadas num quebra-cabeças de difícil montagem. Desse modo, Glauber Rocha corta a cabeça da razão instrumental e coloca a sua a prêmio, num exercício corajoso de seguir seu instinto, na proclamação benfazeja de uma (des)razão inefável por uma pulsão transformadora e revolucionária, para que se converta em sonho realizável das revoluções populares. Um cinema sem concessões, seja no plano mágico, estético ou político.
Benjamin, W. (2009): Passagens. São Paulo e Belo Horizonte: Imprensa Nacional, Editora da UFMG.
Bentes, I. (1997): Glauber Rocha. Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras.
Cardoso, M. (2017): O cinema tricontinental de Glauber Rocha: política, estética e revolução (1969-1975). São Paulo: LiberArs.
Fonseca, T. (2017): «Ficções do pensamento latino-americano: Borges, Glauber e outras cabeças cortadas», en Revista Outra Travessi, núm. 23, pp. 71-82. Programa de Pós-Graduação em Literatura (UFSC). Doi: https://doi.org/10.5007/2176-8552.2017n23p71
Junior, H. (2019): «Colonialismo e racismo, ontem e hoje. O cinema de Glauber Rocha se inspira no pensamento de Frantz Fanon», en M. Olaza, F. Arocena, E. Forero (orgs.): Sociología de la cultura, arte e interculturalidad, pp. 19-39. Buenos Aires: Editorial Teseu, http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20190813020456/Sociologia_de_la_cultura.pdf
Rancière, J. (2009): O inconsciente estético. São Paulo: Ed. 34.
Rocha, G. (2004): Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify.
Senna, O. (org.), 1985: Roteiros do Terceyro Mundo. Rio de Janeiro: Alhambra, Embrafilme.
Xavier, I. (2001): O cinema brasileiro moderno . São Paulo: Paz & Terra.
1 As imagens utilizadas neste artigo são frames de uma cópia do filme Cabezas cortadas, a partir de matriz gentilmente cedida pela Cinemateca Brasileira para o projeto de pesquisa de Duvaldo Bamonte (ECA-USP), em janeiro de 2002.