O mundo em crise de Lucrecia Martel
El mundo en crisis de Lucrecia Martel
Crisis in Lucrecia Martel's World
Sebastião Guilherme Albano
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil
Resumo
Neste estudo fazemos uma análise de três filmes de Lucrecia Martel à luz das noções de crise, heterotopia e cronografia. Ainda tentamos, também, descrever algumas figuras hegemônicas em sua obra, como a elipse, por exemplo, no intuito de problematizar o estilo da autora. O resultado leva a crer que Lucrecia Martel retarda os significados com o fim de enfatizar um sentido preponderante ao final da película. O que queremos dizer é que a autora lança mão de figuras retóricas, entre outras (heterotopia, cronografia, elipse), a fim de gerar efeitos textuais muito vinculados a uma situação de crise, impressão que cresce ao longo dos filmes. Remontamos a essa impressão de uma situação de crise com o afã de elucidar determinadas passagens dos filmes, mesmas que mediante outra perspectiva poderiam levar a que passe despercebidamente para o espectador mais desavisado, dado que empobreceria a fruição. Portanto, realizamos um estudo retórico breve dos filmes da diretora argentina.
Abstract:
In the study we analyze three Lucrecia Martel films under the aegis of notions such as crisis, heterotopy and chronography. In addition we try to describe some hegemonic figures, such as the ellipse, in order to deal with the author style. The results point at that Lucrecia Martel delay the meaning in favor of a powerful sense which blooming in the end of the films. We meant, Martel make up some rethorical figures (heterotopia, chronography, and ellipse) in order to generate text effect very close, above all, to a crisis situation, an increased point of view during the films fruition. Our approach elucidate some films fragments, the ones that under the aegis of another point of view could impoverish the fruition. Therefore, we prefer to set up a brief rethoric study of Argentinian director in order to a better fruition.
Resumen:
En este estudio analizamos tres películas de Lucrecia Martel bajo la luz de las nociones de crisis, heterotopia y cronografía. Aún tratamos, también, de describir algunas figuras hegemónicas en su obra como la elipsis con el afán de problematizar es estilo de la autora. El resultado lleva a creer que Lucrecia Martel retarda los significados con la finalidad de enfatizar un sentido preponderante al final de las películas. Lo que se quiere decir es que la autora hace uso de algunas figuras retóricas o no (heterotopia, cronografía, elipsis) a fin de generar efectos textuales muy acotados, sobretodo, a una situación de crisis, impresión que aumenta a lo largo de las películas. Nos remontamos a esa impresión de una situación de crisis con el afán de elucidar determinados pasajes de las películas, los mismos que mediante otra perspectiva podrían llevar a que quedaran desapercibidos para el espectador más distraído, dado que empobrecería la fruición. Por tanto, realizamos un estudio retórico breve de las películas de la directora argentina. Para nosotros, world cinema es una especie de etiqueta atribuida a una calidad de películas de los últimos 30 o 40 años (Albano, 2016), como las de Lucrecia Martel, por ejemplo. Son películas realizadas en países en desarrollo que se incorporan en algún momento de su producción con el circuito internacional de los festivales. En efecto, en los cuatro largometrajes conocidos de Lucrecia Martel, La ciénaga (2001); La niña santa (2004); La mujer sin cabeza (2008); Zama (2017)[1] las marcas que abogan esa modalidad fílmica se presentan: la diégesis se concentra en una región tropical, por cierto un espacio poco recurrido cuando se trata de la cinematografía argentina, y que indica una fácil lectura poscolonial, lo que no es nuestra intención aquí. A despecho de que tampoco nos dedicaremos a destacar nada más que elementos de su método que concuerdan con el referido circuito de festivales, son insoslayables las características como la mezcla en el elenco de actores con no actores; la utilización de una sonoridad diegética y con significado, ruidos disonantes retirados del choque de objetos de escena o aun de fenómenos naturales, como los truenos, relámpagos y rayos de La ciénaga y La mujer sin cabeza; o la dirección de arte que junto con la fotografía destaca los colores rojos y verdes (como en algunas películas de Pedro Costa); o el protagonismo femenino; o la poca vocación para completar un ciclo narrativo, con tomas de fragmentos y secuencias abortadas, in media res y elípticas. Estos datos van a ser más o menos contemplados junto a una serie de cuestiones que conciernen tanto a la expresión como a la substancia de las películas, que no son polos opuestos en el examen fílmico. Aquí analizaremos solamente fragmentos de los tres primeros largometrajes, sin excluir completamente a Zama.
Palavras chave: Análise; Lucrecia Martel; Crise; Heterotopia; Cronografia
Palabras Clave: Análisis; Lucreia Martel; Crisis; Heterotopia; Cronografia
Keywords: Analyse; Lucrecia Martel; Crisis; Heterotopy; Cronography
1. Premissas
Num lance sábio, Dudley Andrew (2010, p.60) reorientou a periodização que a história tendia a elaborar para o cinema. À etapa antes considerada apenas como silente por profissionais que podiam ser consoantes a Sainte-Beuve (na história da literatura) e a Georges Sadoul, por comentar pomposos críticos ou teóricos reputados como impressionistas (sinônimo de superficiais?), Andrew renomeou de cosmopolitan em face da expansão súbita que teve o cinematógrafo como dispositivo de entretenimento ao longo do mundo em inícios do século XX, quando foi sincronizada a utilização de um mesmo aparelho técnico nos cinco continentes. Nada contra as tentativas anteriores, mas a atualização de Andrew foi bem-vinda. Em sua classificação, Lucrecia Martel, não obstante, estaria designada à fase do cinema global (global cinema), o que seria outro acerto, conquanto vamos considerá-la apenas como expoente do world cinema, ou cinema mundial, já toda uma categoria de análise fílmica que, por suposto, Andrew tem em boa conta (vide o título do artigo em que reelabora as etapas da história do cinema). Ocorre que para nós, world cinema é uma espécie de etiqueta atribuída a uma qualidade de filmes dos últimos 30 ou 40 anos (Albano, 2016), como os de Lucrecia Martel, por exemplo. São filmes realizados em países em desenvolvimento ou emergentes que coadunam em algum momento de sua produção ou carreira com o circuito internacional dos festivais. Com efeito, nos quatro longas-metragens conhecidos de Lucrecia Martel O Pântano (La ciénega, 2001); A menina santa (La niña santa, 2004); A mulher sem cabeça (La mujer sin cabeza, 2008); Zama (2017)[2] as marcas que advogam essa modalidade fílmica se apresentam: a diegese se concentra em uma região subtropical, por certo um espaço pouco recorrido quando se trata da cinematografia argentina, e que enseja uma fácil leitura pós-colonial, o que não é nossa intenção aqui. A despeito de que tampouco nos dedicaremos a pontuar apenas elementos de seu método que concordam com o referido circuito de festivais, são incontornáveis as características como a mescla no elenco de atores com não atores; a utilização de uma sonoridade diegética e com significado, não músicas apenas, mas ruídos dissonantes retirados do choque ou roce dos objetos de cena ou mesmo de fenômenos naturais, como os trovões, relâmpagos e raios de O pântano e A mulher sem cabeça; ou a direção de arte que junto com a fotografia salienta as cores vermelha e verde (como em alguns filmes de Pedro Costa); ou o protagonismo feminino; ou a pouca vocação para completar um ciclo narrativo, com tomadas de fragmentos e sequências truncadas, in media res e elípticas (em Rabgil, 2007, há uma seção inteira dedicada a esses predicados de Lucrecia Martel. Também ver Page, 2013). Melhor, tais dados serão mais ou menos contemplados junto com uma série de questões que concernem tanto à expressão quanto à substância das películas, que não são polos opostos no exame fílmico. Aqui analisaremos tão só fragmentos dos três primeiros longas, sem contudo excluir de todo Zama.
No atual estudo vamos granjear esforços para construir um panorama em que os filmes de Lucrecia Martel sejam observados sob a lente de três noções, a saber, a crise, a heterotopia (crise e heterotopia) e a cronografia. As duas primeiras contam com uma herança de pensadores de vulto e tão só a última foi cunhada por mim. No que concerne à crise, em que pese sabermos que autores como Marx, Durkheim, Gramsci, Arendt, Foucault, por exemplo, nos podiam iluminar, tomamos a primeira acepção do Dicionário de Ciências Sociais (1986):
O fenômeno das crises tem sido relacionado na literatura sociológica com o fenômeno da desintegração do sistema de valores; como por exemplo tem-se o processo de urbanização e o aparecimento das massas (Silva; Neto; Veiga, 1986, p. 284).
No que se refere às heterotopias Foucault diz:
Há igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias; e acredito que entre as utopias e estes posicionamentos absolutamente outros, as heterotopias, haveria, sem dúvida, uma espécie de experiência mista [...] (Foucault, 2009, p.415).
A respeito das cronografias estabelecemos ser uma incursão figural do narrador à cronologia narrativa, no caso de Martel daquele alguém que a câmera pode incorporar ("[...] aunque la cámera no sea ningún personaje en particular, la cámera es alguien[...]", Page, 2013, p. 79), mas também a montagem, que, em seus filmes, finge deter o fluxo da informação de modo a que, em primeira instância, permaneça quase sempre incompleta, elíptica, insinuando com certa astúcia que deve ser o fruidor do filme quem atribua significado ao que está acompanhando com o olhar, uma vez que a câmera e a montagem parecem subtrair e retardar a consecução do significado, se ele existir, a fim de manter alguns dados em suspensão.
Em muitas ocasiões, no entanto, auguram desorientar um pouco a verossimilhança e, mesmo assim, mais que insinuam uma intelecção, pois em geral, salvo os finais, sobra espaço tanto para apreciar como para racionalizar diante de mecanismos de narração que a poética de Martel organiza. Contando com o fato de que sejam elipses, talvez suas principais figuras, podem e ganham significado a qualquer momento ao longo do filme, e o espectador sabe disso. Reiteramos, malgrado isso de fato ocorra, isto é, haja momentos mortos à primeira vista ou sem sentido em seus filmes, em boa parte das vezes não há dúvidas da audiência acerca do ocorrido (como referido, salvo nos finais: a queda de Luciano -Sebastián Montagna- da escada, muito embora haja sido insinuada antes quando a mãe lhe diz que não suba ali, mas ao final não sabemos se faleceu ou não; ou no caso de La niña santa, com Josefina -Julieta Zylberberg- e Amalia -Maria Alché- boiando na piscina; ou em Zama, com dom Diego de Zama -Daniel Gimenez Cacho- sendo levado sem mãos a algum lugar, aonde irá?); mas as demais informações são inclusive antes intuídas, ao menos essa é a estratégia, pelo espectador que pela câmera/narrador, que às vezes nos diz mostrar sem saber. De outro lado, em outras escamoteia dados, passagens inteiras do curso da vida dos personagens que compõem a história que estamos assistindo.
2. Crise e heterotopia
As noções de crise e heterotopia pontuam não só um evento de ruptura geopolítica que o world cinema tende a desvelar suscitando uma crise dos lugares. Nos filmes de Martel agregue-se ao fato de retratarem uma paisagem pouco habitual no cinema argentino, em termos geográficos, o norte do país, ademais de desatar uma crise moral generalizada, com boa parte dos personagens envolvidos com mentiras até certo ponto graves induzindo-nos à impressão de uma degeneração de uma espécie de classe social. Essa conclusão se deve à apresentação constante de tópicos relativos a decisões comportamentais acerca das quais os personagens desenvolvem um pensamento e o traduzem em palavras ou ações. A definição de heterotopia abrange, na ficção em geral, tanto lugares naturais, geográficos (em La ciénaga, o sítio La mandrágora, o norte do país etc.), quanto aqueles espaços criados pelo engenho humano para concorrer com outros discursos que compõem a rede textual em que estamos intrincados (em La ciénaga a empregada é chamada de "China carnavalera", uma ofensa racista). São, portanto, proposições tanto físicas como são tópicos morais, atinentes às opções de comportamento que cada personagem toma, como referido (o mundo de Lucrecia). E há muitos momentos assim em todos os seus filmes. Veremos algumas manifestações pontuais em seus longas, a saber:
1. O Pântano (La ciénaga):
A) Quando Mecha (Graciela Borges) cai embriagada ninguém da piscina, senhores e senhoras como ela, se levanta para auxiliá-la. São os adolescentes que o fazem.
B) Momi (Sofia Bertolloto) e Isabel (Andrea Lopez) parecem ter um namoro iniciático.
C) Os corpos estão sempre em contato: muitos abraços e beijos entre irmãos e amigos.
D) Isabel diz a Momi que ela está há quatro dias sem tomar banho.
E) A maneira como Mecha trata Isabel (Andrea Lopez), com demonstrações de um racismo típico do século XIX.
F) Como José (Juan Cruz Bordeu) trata Mercedes (Silvia Bayle), com cinismo, torcendo para que ela não vá ao campo visitá-los.
G) José e seus flertes com sua irmã Verónica (Leonora Balcarce).
H) Mecha e seu esposo Gregorio (Martín Adjemian) em quase todas as cenas estão com copos na mão. Em todas estão embriagados.
2. A menina santa (La niña santa):
A) No hotel Helena (Mercedes Morán) não atende nunca as ligações de seu ex-esposo.
B) Amalia vive em constante tensão entre religiosidade/lubricidade.
C) Amalia mente a Josefina que o doutor Jano (Carlos Belloso) a tocou no hotel.
D) O shampoo do hotel que resseca o cabelo Helena dá de presente à mãe de Josefina (Mónica Villa).
E) A mãe de Josefina diz a ela, mas na presença de Amalia, que morar em um hotel não é saudável.
F) Josefina para se salvar de uma bronca da mãe porque estava na cama com um amigo ou primo decide contar tudo, inventando bastante, a respeito do doutor Jano e Amalia a sua mãe.
G) Amalia e Josefina se beijam na boca.
3) A mulher sem cabeça (La mujer sin cabeza):
A) Verónica mantém relações com seu cunhado Juan Manuel (Daniel Genovo).
B) Mesmo Verónica (Maria Onetto) tendo certeza de que atropelou um cachorro, anuiu ao conluio de forças oficiais que borraram todas as pistas do dia em que atropelou o animal.
C) A sobrinha de Verónica, Candita (Inés Efrón), lésbica, está o tempo todo, quando não há ninguém, em busca de um beijo ou abraço de Verónica, sua tia.
D) A tia Lala (Maria Vaner) chama um rapaz que vê em um vídeo de jeitoso, ou seja, insinua uma homossexualidade. Chama umas meninas de lésbicas também.
E) O filho da empregada assusta a tia Lala com barulhos estranhos quando ela está deitada.
4. Zama:
A) Zama tem um filho com uma indígena.
B) Zama fica vários anos em seu posto, talvez como nenhum outro funcionário da coroa que pleiteie um traslado.
C) O governador não quer redigir uma carta para ele antes de ele fazer um relatório acerca de um livro que ainda não leu.
D) O governador diz que matou Vicuña Porto (Matheus Nachtergaele), mas não o fez.
E) Vicuña Porto parece se fazer passar por Gaspar Toledo antes de cometer os abusos de Vicuña Porto.
F) Vicuña ou Gaspar diz que não existe o Vicuña que todos mitificam, que é tão só uma lenda. Mas ele encarna a lenda.
3. Cronografia
Como mencionado, aqui vamos tentar verificar como alguns eventos fílmicos que se querem sem sentido ganham uma forma cognitiva e significativa para a história ou a diegese ao longo do filme. Isto é, a despeito de que Martel tenha o vezo de deixar lacunas semânticas intelectivas, insufladas por suas modalidades de enquadramento e de montagem (chamemos de montagem de subtração), sinalizaremos a figura da elipse como um tropo propiciado por esses elementos, digamos, sintáticos dos filmes (reduziremos a elipse a boa quantidade de metáforas, catacreses, metonímias e sinédoques entre outros). Como referido, em seus filmes há uma constante formal ou um dispositivo de expressão, em especial nos dois primeiros e Zama, cuja função é retardar a compreensão de determinados elementos da trama, mediante o fornecimento de índices que antecipam, mas detém a ação interna, uma vez que devemos esperar para que certos momentos, anteriores, ganhem seu significado posteriormente no filme, quase como em uma narrativa linear, quase. Helena Beristáin descreve a elipse como: "Figura de construcción que se produce al omitir expresiones que la gramática y la lógica exigen pero de las que es posible prescindir para captar el sentido. Este se sobrentiende a partir del contexto" (1997, p 163). Mediante as elipses Martel não deixa o sentido sobrentendido, ou subtendido, tão somente o atrasa ou os antecipa, causando efeitos sincrônicos e anacrônicos na cronologia do filme e sem a precisão de lançar mão de esquemas como as prolepses ou as analepses. Vamos apontar alguns desses momentos nos três primeiros filmes da diretora:
1. O Pântano (La ciénaga):
A) Ao início, quando Mecha se levanta para colocar vinho no copo dos convidados, seus passos e sua mão trêmula já antecipam algo, pois está embriagada. Logo depois, ela leva um tombo e fere o colo com pedaços de vidro.
B) Mercedes (Silvia Bayle) olha muito para o espaço do pátio onde vai colocar uma trepadeira e de onde mais tarde seu filho vai cair.
C) Luciano fica na mira das espingardas quando vai ver a vaca afogada no pântano. Ouvem-se dois disparos fora de campo.
D)A brincadeira de pique esconde com Luciano e suas irmãs também antecipa o acontecimento trágico do final quando o menino cai da escada. As meninas matam o garoto no pique esconde.
E) A mesma situação ocorre quando ele, Luciano, mais adiante prende a respiração de brincadeira com sua irmã, Mariana. Adianta o efeito de sua queda no espectador, que começa a crer que alguma coisa acontecerá com Luchi, e acontece.
2. A menina santa (La niña santa):
A) Na aula de catecismo, as meninas começam a ouvir o som do teremim que vem da rua. A primeira incursão de Jano sobre Amalia ocorre justamente quando ambos ouvem e assistem a um músico tocando o teremim na porta de uma loja.
B) Na primeira vez que aparece a piscina, um homem diz que a água estava 34 graus. Helena acreditou ser Amalia quem falou e perguntou "o quê?", mas ela não tinha dito nada. Aí começa a construção da linha narrativa da "consulta pública" como finalização do congresso. Helena tem uma enfermidade leve de audição e o doutor Jano notou.
C) O doutor Vesalio (Arturo Goetz) deixa o congresso devido a que uma moça do laboratório que parece financiar o evento vai embora, depois de uma noite com ele. Deve-se lembrar que desde o princípio Vesalio deixa pistas de que gosta de tratar bem às mulheres, tanto que tem um perfume na mala para presentear a qualquer mulher que ele visse e se interessasse no congresso. E o entrega à promotora do laboratório.
D) Na segunda metade do filme, a promotora chama Vesalio para conversar, mas não se sabe ao certo o que vai dizer. Entretando, Freddy (Alejandro Urdapilleta), o irmão de Helena, logo lhes diz que houve um problema de assédio com um dos médicos. Jano pensa e dá pistas de que poderia ser com ele, confundindo as conclusões de Freddy e achando que estão falando dele com Amalia, quando em verdade falam de Vesalio com a promotora.
E) O doutor Jano é apresentado a Helena e ela disse que já havia ouvido sua conferência. Mas em realidade tinha assistido a do doutor Vesalio. Reiteramos: quando contam a história do assédio, Jano acredita ser dele próprio que estão falando e não de Vesalio.
F) Desde o princípio, Josefina (Julieta Zilberberg) diz a Amália que a professora de catecismo tem um caso com um homem muito mais velho. Na seguinte sequência ocorre a primeira investida de Jano a Amália, quando ouvem o teremim na rua e ele encosta na menina.
3. A mulher sem cabeça (La mujer sin cabeza):
A) Marcos traz para casa um animal (cabrito, alce?) de caça e o põe em cima da pia da cozinha e quando Verónica o vê leva um pequeno susto, mas prossegue fazendo o café que o marido lhe pediu.
B) Em várias ocasiões Verónica diz que matou alguém na pista do canal, mesmo depois que Marcos a leva ali e veem o cachorro morto atropelado por ela, deixando entre parênteses se ela recobrou seus sentidos e sua consciência plenamente ou se será um trauma que deverá carregar para a vida toda.
C) Josefina, Candita e Verónica veem um acidente no canal. Os bombeiros acreditam que haja alguém ou algum animal preso nos canos ou nas bocas de lobo, que estão atrapalhando a passagem da água. Isso também pode suscitar dúvidas em Verónica.
4. Considerações
Lucrecia Martel faz uso de uma série de figuras, para além da elipse, a fim de enriquecer o repertório que oferta em suas películas. Se empreendermos uma leitura delas mediante as palavras de John R. Searle (1995) e de Homi K. Bhabha (1998), o filósofo da linguagem, encontramos novas lógicas de mimese e verossimilhança e, portanto, de potência para a fruição na economia narrativa de seus filmes, isto é, salientam-se dados surpreendentes de negociação entre o narrador e a audiência. Por exemplo, Searle e Bhabha dizem que
[...] notoriamente, nem todos os casos de significação são tão simples: em alusões, insinuações, ironias e metáforas - para mencionar uns poucos exemplos- a significação da emissão do falante e a significação da sentença divergem sob vários aspectos (Searle, 1995, p. 47).
Mais adiante prossegue:
[...] o falante comunica ao ouvinte mais do que realmente diz, contando com a informação de base, linguística e não linguística, que compartilhariam, e também com as capacidades gerais de racionalidade e inferência que teve o ouvinte (Searle, 1995, p.50).
E Bhabha reitera:
Sua representação é sempre espacialmente fendida - é a representação que ela torna presente algo que está ausente- e temporalmente adiada: é a representação de um tempo que está em outro lugar, uma repetição (Bhabha, 1998, p.85).
A fim de dar conta dessas sutilezas, em que o narrador sabe mais do que a audiência ou quando sabe menos, suscitando a vivacidade temporal no filmes de Lucercia Martel, vamos transcrever dois momentos de La niña santa em que Freddy diz a Helena, que conversa com Jano, que aconteceu alguma coisa com o doutor Vesalio e a promotora de vendas do laboratório. Da segunda vez Jano se sente confuso e tende a tomar as ações que Freddy enumera de Vesalio como se fossem suas, com dois lapsos muito discretos, por certo, em uma circunstância que estabelece simetria retórica ou poética com a situação de Helena quando foi fazer o teste fonoaudiológico na cabine e trocou as letras "b" e "n" por "r" (bezo por rezo e nulo por rulo) confirmando sua síndrome. Ocorrem assim:
1ª vez. Helena, Josefina e Amalia estão tomando café da manhã e Freddy se aproxima:
Helena: -¿Qué pasó?
Freddy: -No sé. Hay un inconveniente con una chica y con un médico.
Helena: -Ah, me parecía. Con razón.
2ª vez. Freddy é chamado à outra mesa, e Helena vê Jano chegando ao restaurante e a saudando de longe. Vai até a sua mesa para lhe mostrar umas fotos. Freddy vai à mesa deles e diz:
Freddy: -Doctor, hay um problemita. El doctor Vesalio se retira del congreso. Me dejó esos papeles para que se los de a usted. Son los estudios que hicieron a Helenita, para que usted o el doctor Cuesta hagan la representación, el cierre.
Jano: - ¿Cómo?
Freddy: -Este muchacho, con lo inteligente que es, parece que salió anoche con una de las promotoras. Y bueno, acaba de llegar recién, de vuelta, hace veinte minutos. El laboratorio reemplazó a la chica, la echaron. El doctor Vesalio hizo un escándalo. Dice que se va. Está comprometiendo su carrera.
Jano: - ¿Mi carrera?
Freddy: - No, no, no, la carrera de él. Es una eminencia en lo suyo, pero muy tentado. En todos los congresos hace lo mismo, no se puede resistir.
Helena: - ¿Quién?
Freddy: - El doctor Vesalio. ?Por qué no le dice que se quede? A usted lo va a escuchar.
Jano: - Pero apenas lo conozco al doctor Vesalio.
Freddy: - Ah, yo pensé que eran muy amigos, como comparten la habitación.
Jano: - No. Fue por una noche nada más. Por problemas del hotel. Con permiso.
Há uma terceira vez em que o mesmo conteúdo é colocado à baila, mas desta feita é efetivamente de Jano e Amalia que estão falando. Ocorre quando a esposa e a filha de Jano, indo se sentar à frente da sala para ver bem a representação, lhe dizem que um médico tocou a menina de cabelo castanho que estava na piscina. Jano sabe que estão falando dele.
Essas coincidências e pequenas deturpações que ocorrem ao longo de La niña santa também estão presentes em La ciénaga, La mujer... e em Zama, aparecendo como uma constante figura narrativa, que reduziremos a elipse, que, como dissemos, Lucrecia utiliza demasiado para tensionar a temporalidade das tramas. O fato é que em seus filmes, ademais dos diálogos, as tomadas de fragmentos e a montagem são definitivos fatores de construção desses significados nos filmes. Inclusive classificamos a montagem como montagem de subtração devido a que em não poucas ocasiões interrompem o período narrativo e nos levam a outra sequência, deixando a primeira em aberto ou em suspensão, como a subtrair partes inteiras da trama.
Não obstante isso, a direção de arte é também um fator determinante para que saibamos, em La ciénega, por exemplo, que se trata de uma família às raias da disfunção completa, uma vez que os móveis são antigos e mau cuidados, as camas nunca estão feitas, há roupas jogadas pela casa inteira, lâmpadas queimadas, empregados fustigados e que decidem deixar a família. Por certo, deste mesmo filme emerge uma sensação de abandono sobrenatural da família, que parece estar sob o efeito de alguma força que lhes impede de seguir sua vida sem sobressaltos: Joaquim (Diego Baenas) sofre um acidente e fica sem a visão de um olho; José se envolve em uma briga e se fere; la Mecha se fere; Luciano se fere várias vezes e ao final cai da escada; Momi não muda de roupa há quatro dias e ainda por cima entra na piscina cuja água está muito suja e etc. Acresça-se a isso a necessidade de estarem sempre acompanhados os personagens, em espécie de cumplicidade para além do companheirismo ou do parentesco, juntos na cama, no jardim, na montanha, na rua. Em La niña... ocorre a mesma coisa. Os móveis do hotel são igualmente antigos e sempre há alguma roupa nas cadeiras, ao menos no espaço em que Helena, Amalia e Freddy vivem. Há cenas em que os três dormem juntos e, além disso, Amalia e Josefina são muito apegadas uma a outra e inclusive se beijam na boca. Preponderam as cores vermelha e verde. Nos três primeiros filmes, automóveis, mobília e vestuário incrementam muito a sensação de que a história se passa em outro tempo.
Já em La mujer sin cabeza há uma espécie de direção de arte mais higiênica, digamos, em ambientes clean, ainda com a chegada de Marcos na cozinha com o animal morto em caça. Há hospitais, clínicas, escolas, hotéis, lugares que presumem profilaxia, e a casa de Verónica também é muito limpa. Não se deve esquecer que neste filme há um movimento subterrâneo de promoção do esquecimento e, como uma metáfora, a limpeza que a polícia faz dos passos de Verónica no dia do acidente, que inclusive encobre uma traição de Verónica com Juan Manuel, é comparável à limpeza dos ambientes e a tantas outras limpezas sofridas pela memoria coletiva argentina, em especial a partir do fim da última ditadura militar, em 1983. Também há a preponderância das mesmas cores verde e vermelha.
5. Finais
Com efeito em La ciénaga a direção de arte nos dá a impressão de decomposição familiar, muito próxima a sensação causada no filme A taste of honey (Tony Richardson, 1961), afora a proximidade com literatos nacionais como Silvina Ocampo e Julio Cortázar, igualmente despojados, especialmente este último. Ademais, assim como em La ciénaga tudo em La niña santa nos leva a antecipar um final trágico para o doutor Jano, sendo o doutor Vesalio uma espécie de alter ego daquele. Deve-se recordar que no primeiro dia do congresso, Vesalio e Jano dormiram no mesmo quarto, fazendo talvez as vezes de um preceptor, de um irmão mais velho na educação sentimental do mais novo, Jano. Os filmes de Lucrecia Martel estão plenos dessas pequenas simetrias.
Acerca das elipses narrativas tão mencionadas, que desorientam um pouco a trama, se por um lado ratificam essa noção de desarraigo, de destempero emocional, por outro percebemos que são de muitas maneiras os efeitos, na substância, dos dispositivos de expressão traduzidos pelas tomadas parciais e pela montagem de subtração referida, fazendo com que a narrativa de Martel apareça como uma rede complexa de avanços curtos e trôpegos a uma conclusão mediante índices. Uma das elipses muito nítidas é a chegada da família do doutor Jano. Somente sabemos que a esposa já está no hotel com os filhos porque Jano se aproxima do mais novo e vê, à beira da piscina, que uma abelha picou o rosto do menino. Em Zama, por exemplo, temos pouca informação do motivo por que dom Diego de Zama deixou o assentamento onde estava para seguir em busca de Vicuña Porto. Lucrecia manobra os materiais e embaralha um pouco a narrativa e, como consequência, a atenção de quem frui a película, e essa é mesmo uma figura constante de seus filmes. Mas não é apenas isso que desintegra a apreciação, a intelecção ou a cognição. Aspectos como as relações familiares precaríssimas, algumas com incesto intuído, e a direção de arte que confere aos objetos da mise en scène uma impressão de sujeira, de descuido, desalinho, irracionalidade, de atemporalidade e pouca atenção aos padrões de asseio físico e moral também estão entre eles.
Referências
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Searle, J. R. (1995). Espressão e significado. Estudos da teoria dos atos de fala (trad. de Ana Cecília G.A. de Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia). São Paulo: Martins Fontes.
[1] a) La ciénega, 2001. Produção: Lita Stantic e outros. Roteiro e direção: Lucrecia Martel. Direção de fotografia: Hugo Colace. Montagem: Santiago Ricci. Direção de arte: Graciela Oderigo. Direção de som: Herve Guyader. Elenco: Martín Adjemian; Diego Baenas; Leonora Balcarce; Silvia Bayle; Graciela Borges; Sofia Bortolotto; Juan CruzBordeu; Andrea Lopez.
b) La niña santa, 2004. Produção: Lita Stantic e outros. Roteiro e direção: Lucrecia Martel. Direção de fotografia: Felix Monti. Montagem: Santiago Ricci. Direção de arte: Graciela Oderigo. Direção de som: Marcos de Aguirre. Elenco: Mercedes Morán; Carlos Belloso; Alejandro Urdapilleta; Maria Arché; Julieta Zylberberg; Monica Villa; Marta Lubos; Arturo Goetz.
c) La mujer sin cabeza, 2008. Produção: El Deseo e outros. Roteiro e direção: Lucrecia Martel. Direção de fotografia: Bárbara Álvarez. Montagem: Miguel Schverdfinger. Direção de arte: Maria Eugenia Sueiro. Direção de som: Guido Berenblum. Elenco: Maria Onetto; Claudia Cantero; César Bordón; Daniel Genoud; Guillermo Arenga; Inés Efrán; Pia Uribelarrea; Maria Vaner; Andrea Verdón.
d) Zama, 2017. Produção: Vania Catani e outros. Roteiro e direção: Lucrecia Martel. Direção de fotografia: Rui Poças. Montagem: Miguel Schverdfinger; Karen Harley. Direção de arte: Renata Pinheiro. Diretor de som: Guido Berenblum. Elenco: Daniel Gimenez Cacho; Lola Dueñas; Matheus Nachtergaele; Gustavo Bohm; Mariana Nunez.
[2] a) La ciénega, 2001. Produção: Lita Stantic e outros. Roteiro e direção: Lucrecia Martel. Direção de fotografia: Hugo Colace. Montagem: Santiago Ricci. Direção de arte: Graciela Oderigo. Direção de som: Herve Guyader. Elenco: Martín Adjemian; Diego Baenas; Leonora Balcarce; Silvia Bayle; Graciela Borges; Sofia Bortolotto; Juan CruzBordeu; Andrea Lopez.
b) La niña santa, 2004. Produção: Lita Stantic e outros. Roteiro e direção: Lucrecia Martel. Direção de fotografia: Felix Monti. Montagem: Santiago Ricci. Direção de arte: Graciela Oderigo. Direção de som: Marcos de Aguirre. Elenco: Mercedes Morán; Carlos Belloso; Alejandro Urdapilleta; Maria Arché; Julieta Zylberberg; Monica Villa; Marta Lubos; Arturo Goetz.
c) La mujer sin cabeza, 2008. Produção: El Deseo e outros. Roteiro e direção: Lucrecia Martel. Direção de fotografia: Bárbara Álvarez. Montagem: Miguel Schverdfinger. Direção de arte: Maria Eugenia Sueiro. Direção de som: Guido Berenblum. Elenco: Maria Onetto; Claudia Cantero; César Bordón; Daniel Genoud; Guillermo Arenga; Inés Efrán; Pia Uribelarrea; Maria Vaner; Andrea Verdón.
d) Zama, 2017. Produção: Vania Catani e outros. Roteiro e direção: Lucrecia Martel. Direção de fotografia: Rui Poças. Montagem: Miguel Schverdfinger; Karen Harley. Direção de arte: Renata Pinheiro. Diretor de som: Guido Berenblum. Elenco: Daniel Gimenez Cacho; Lola Dueñas; Matheus Nachtergaele; Gustavo Bohm; Mariana Nunez.