O golpe de Estado (1964) no Brasil visto por um cinejornal soviético

El golpe de Estado (1964) en Brasil desde una mirada soviética

Coup D’État in Brazil (1964) seen from a Soviet newsreel

Marcos Napolitano

Universidade de São Paulo, Brasil

napoli@usp.br 

 

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão histórica e teórica sobre a relação entre registros visuais e construção da memória de um evento político, analisando o caso específico do Golpe de Estado de 1964 no Brasil que derrubou o presidente de centro-esquerda João Goulart e se tornou um importante evento da Guerra Fria na América Latina. Este evento, que inaugurou 20 anos de ditadura militar no Brasil, foi registrado em imagens que se tornaram matrizes da memória social, nas quais predominam figurações da derrota e da ausência de resistência popular diante das tropas golpistas. A partir de uma sequência de um cinejornal exibido na União Soviética em 1964, entretanto, pudemos tomar contato com imagens raras de um protesto popular contra os golpistas, ocorrido no Rio de Janeiro. Estes registros nos ajudam a problematizar a memória construída e seus suportes visuais, sugerindo a possibilidade de uma outra história visual e política do Golpe de 1964.

 

Abstract

This article proposes a historical and theoretical reflection on the links between visual records and the construction of the memory of a political event, analyzing the specific case of the 1964 Coup d'État in Brazil that overthrew the center-left president João Goulart and became an important Cold War event in Latin America. This event, which inaugurated 20 years of military dictatorship in Brazil, was recorded in images that became matrices of social memory, in which there is a dominant figuration of defeat and the absence of popular resistance to the coup troops. However, from a fragment of a Soviet newsreel, I analyze rare images of a mass protest against the ongoing coup d'État. These records help us to problematize the predominant memory and its visual supports, suggesting the possibility of another visual and political history of the 1964 Coup.

 

Resumen

Este artículo propone una reflexión histórica y teórica sobre la relación entre los registros visuales y la construcción de la memoria de un evento político, analizando el caso específico del golpe de Estado de 1964 en Brasil que derrocó al presidente de centro izquierda João Goulart y se convirtió en un importante evento de la Guerra Fría en América Latina. Este evento, que inauguró 20 años de dictadura militar en Brasil, se grabó en imágenes que se convirtieron en matrices de memoria social, en las que predominaban las figuraciones de derrota y la ausencia de resistencia popular a las tropas golpistas. Sin embargo, a partir de una secuencia transmitida de un noticiero soviético de 1964, pudimos ponernos en contacto con imágenes raras de una protesta popular contra los estafadores en Río de Janeiro. Estos registros nos ayudan a problematizar la memoria construida y sus soportes visuales, lo que sugiere la posibilidad de otra historia visual y política del Golpe de 1964. En la historia contemporánea, el registro de eventos históricos, su articulación dentro de una narrativa de significado histórico y su fijación como agenda de memoria social no pueden separarse de su lugar en la cultura audiovisual. Si en la era de la televisión y el cine como soportes privilegiados para la experiencia audiovisual este principio ya era muy fuerte, las redes sociales e Internet mejoraron aún más, en otros formatos y lenguajes, la relación entre imagen, audiovisual y percepción de la realidad social.

Lo que vemos en las retrospectivas visuales acerca del evento ocurrido en 1964, en películas documentales y materias periodísticas más conocidas, son "imágenes canónicas" del golpe de Estado que expresan las imágenes de la derrota y la capitulación sin resistencia del gobierno reformista y la izquierda que lo apoyó. El golpe se visualiza como un desfile de vehículos blindados en las calles, tropas de marcha, conmemoraciones de movimientos civiles de la derecha, ataques a símbolos y personajes de la izquierda (como la imagen de la depredación del edificio de la Unión Nacional de Estudiantes en Río de Janeiro, quemado por las milicias de derecha). Las calles parecen vacías de manifestaciones contra el golpe de Estado, y las raras veces que se muestran masas populares, las tropas militares las están ahuyentando. Además, las imágenes canónicas en torno al golpe nos muestran imágenes de liderazgo político, derrotado o victorioso. En resumen, las imágenes canónicas de la coyuntura política de 1964 reiteradas en piezas visuales periodísticos y documentales casi siempre contrastan la fuerte presencia de las masas populares y trabajadoras en las calles antes del golpe, apoyando al gobierno reformista de izquierda con las imágenes de una acción golpista aséptica que derrocó a un gobierno sin encontrar reacción popular. A partir de algunas premisas historiográficas y teóricas, tengo la intención de analizar un fragmento de imagen audiovisual sobre el golpe de estado de 1964, llevado al público por noticiero soviético, titulado Foreign Newsreels 919, producido por el Central Studio for Documentary Film (CSDF - Центральная студия докуменфальньавентальньавентальньатания). Es un registro de manifestantes populares reunidos en la ciudad de Río de Janeiro en abril de 1964, contenidos por la policía y las tropas militares. Además de analizar el significado histórico de las imágenes, trataré de mapear la producción y circulación de las imágenes que constituyen esta sección del noticiero, articulando el registro primario, el montaje periodístico y su apropiación en tiempos y espacios distintos, con múltiples significados político-ideológicos, incluida la tensión que causan tales imágenes en la batalla de la memoria sobre los significados del golpe de 1964.

 

Palavras-chave: História e Cinema; Cinejornais; Brasil; URSS; Golpe de Estado: Brasil; Guerra Fria; história visual.

Keywords: History and Cinema; Newsreel; Brazil; Soviet Union; Coup d’État; Cold War; Visual History.

Palabras clave: historia y cine; noticieros; Brasil; URSS; golpe de estado; Guerra Fría; historia visual.

 

1. Introdução

Na história contemporânea, o registro dos eventos históricos, sua articulação dentro de uma narrativa de sentido histórico e sua fixação como pauta de memória social não podem ser separados do lugar que eles ocupam na cultura audiovisual. Se na era da TV e do cinema, tomados como suportes privilegiados para a experiência audiovisual do século XX, esse princípio já era muito contundente, as redes sociais e a internet potencializaram ainda mais, sob outros formatos e linguagens, a relação entre imagem, audiovisual e percepção da realidade social. As condições de registro e circulação pelas várias mídias de comunicação incidem diretamente nas condições de apropriação social dos eventos históricos, embora não devam se confundir com estes, epistemologicamente falando. Sem prejuízo da análise histórica mais clássica, que dê conta das implicações do evento no plano institucional e societário e sua expressão de movimentos estruturais menos visíveis como fenômeno visual e sensível, o registro dos eventos dentro de uma narrativa verbal, iconográfica ou audiovisual, tem um poder de impacto sobre construções de sentido e influência sobre outros eventos sociais e históricos.

Obviamente, não existe um “grau zero” do fato ou evento histórico, posto que todo evento já nasce como narrativa de uma experiência de ação no mundo (Arendt, 2014). Reconhecer isto não significa sucumbir à tentação pós-moderna de diluir completamente o evento nas suas representações e narrativas. O papel do historiador debruçado sobre estes tipos de eventos é refletir, precisamente, sobre os diversos graus de “factuidade” de um evento, buscando entrecruzar várias fontes que permitam tensionar tanto a tentação positivista de estabelecer o fato puro, empírico e verdadeiro, quanto de dilui-lo nas representações e sobrerrepresentações (“pastiches”) de fatos, personagens e processos históricos.

A partir destas premissas, proposta deste artigo é analisar um fragmento de imagem audiovisual sobre o golpe de 1964, veiculada por um cinejornal soviético, intitulado Foreign Newsreels (Edição 919, 1964), produzido pelo Estúdio Central para o Filme Documentário (CSDF - Центральная студия

документальных фильмов, ЦСДФ)[1]. Trata-se de um registro de manifestantes populares reunidos na cidade do Rio de Janeiro, no contexto do golpe de Estado de 1964, contidos pela tropa policial e militar. Ao longo do artigo tentarei mapear o sentido e a circulação das imagens que constituem o trecho do cinejornal, articulando a lógica de registro e montagem jornalística aos seus múltiplos significados político-ideológicos, incluindo o tensionamento que tais imagens provocam na batalha da memória sobre os significados do golpe de 1964.

Buscando um exercício de análise detalhada que “interrogue” as imagens em questão, tentarei evidenciar aspectos pouco visíveis no estoque de imagens canônicas (e hegemônicas na memória) que circulam no Brasil sobre o Golpe civil-militar de 1964, como a recorrente visão sobre a ausência de resistência popular nas ruas à derrubada do presidente de centro-esquerda João Goulart. A memória da “derrota sem luta”, em certa medida, ganhou expressão visual em fotografias e registros audiovisuais, muito frequentemente reproduzidas na imprensa escrita e em documentários de cinema e de televisão, além da imprensa escrita e seus balanços sobre o golpe e o regime, que dialogam com a historiografia e com a memória social, lhes textura e materialidade iconográfica e audiovisual[2].

O Golpe de 1964, como evento da história política, tem uma historiografia consolidada, apresentando um debate com posições teóricas bem demarcadas. Não nos deteremos neste ponto para não fugir ao foco deste artigo, mas vale ressaltar que desde sua eclosão, o Golpe foi amplamente discutido por analistas de todas as vertentes e filiações ideológicas e historiográficas, incluindo muitos jornalistas e acadêmicos. Em um primeiro momento, predominou o debate que viu no Golpe a expressão do esgotamento estrutural de um modelo político e econômico calcado no nacional-desenvolvimentismo e no estilo “populista” de fazer política, que abriu caminho para o projeto de modernização autoritária e excludente (Ianni, 1975). Entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, afirmou-se uma vigorosa literatura sobre a conspiração da direita que levou os militares ao poder, seja com envolvimento direto do governo dos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria (Bandeira, 2010), seja pela ação conspiratória do empresariado transnacional para defender seus interesses no Brasil (Dreifuss, 2006). A partir do começo dos anos 1990, a vertente institucionalista da ciência política se afirmou no debate, explicando o Golpe brasileiro pela radicalização dos atores políticos e sociais, e pela consequente crise institucional que minou as bases da vida política entre 1963 e 1964, entendida por estes autores como equação neutra de ação institucional resultante de “escolhas racionais” (Figueiredo, 1993).

No plano da memória social, questão que mais nos interessa para este artigo, o Golpe de Estado de 1964 ainda é tema de conflitos e análises díspares, embora os setores hegemônicos da sociedade brasileira, como as principais instituições da imprensa e do sistema político, artístico e intelectual, tenham construído alguns consensos hegemônicos em torno do tema. Para as correntes de esquerda e centro esquerda (trabalhistas, comunistas, socialistas), o Golpe representou uma ação repressiva contra os movimentos sociais e contra as demandas por democracia que se expressavam na luta pelas “Reformas de Base”, conjunto de medidas reformistas e distributivistas propostas pelo presidente João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro, em 1962. Na memória liberal, cujo epicentro são as entidades civis ligadas às profissões liberais e à imprensa, o Golpe de 1964 tem um lugar mais ambíguo na história do Brasil. Mesmo condenado como opção política indesejável, é frequentemente explicado e justificado como reação ao “desgoverno”, à crise econômica, à corrupção, à demagogia e ao radicalismo das esquerdas que estiveram no poder entre 1961 e 1964. Esquerdistas e liberais, de todo modo, compartilham a imagem de uma derrota fragorosa e surpreendente do governo de centro-esquerda e seus aliados na sociedade, sem reação significativa, que capitularam sem lutar diante da rebelião militar e do golpe político das direitas civis articulado a partir do Congresso Nacional entre 31 de março e 11 de abril de 1964, ou seja, entre a rebelião militar contra o governo João Goulart e a “eleição”  indireta do general Castelo Branco, líder dos militares conspiradores (Napolitano, 2014; Ribeiro, 2014).

Como todo grande evento histórico, o processo golpista foi amplamente filmado e fotografado, constituindo um estoque de imagens que lhe deram visibilidade e ajudaram a corporificar uma determinada memória social. Entretanto, há uma lacuna documental e historiográfica na análise dos registros audiovisuais deste importante evento, com implicações para as apropriações e para a constituição das memorias sobre o período. O que se vê nas matérias visuais, documentários e retrospectivas jornalísticas são “imagens canônicas”[3] do Golpe de Estado que reiteram as imagens da derrota sem resistência e da capitulação do governo reformista e das esquerdas que o apoiavam. O Golpe, enquanto evento audiovisual, é frequentemente mostrado como um desfile de tanques nas ruas, marcha de tropas militares do Exército Brasileiro, comemorações dos movimentos civis da direita, ataques a símbolos e personagens da esquerda (como a poderosa imagem do prédio da União Nacional dos Estudantes, no Rio de Janeiro, sendo depredado e queimado por milícias paramilitares de direita). Nestas imagens canônicas, as ruas, via de regraestão vazias de manifestações de resistência contra o Golpe, e nas raras vezes que se mostram massas populares, elas estão sendo escorraçadas por tropas militares. No mais, se mostram, sobretudo, as lideranças políticas, derrotadas ou vitoriosas. Em resumo, as imagens canônicas da conjuntura política de 1964 reiteradas em matérias visuais jornalísticas e documentários históricos, quase sempre contrastam a forte presença das massas populares e trabalhadoras nas ruas abundantes em registros visuais e audiovisuais tomados antes do golpe, apoiando o governo reformista de esquerda, e consagram uma ação militar asséptica que derrubou um governo sem encontrar reação popular.

Neste artigo, não temos a pretensão de responder às perguntas que perturbam o debate brasileiro há mais de 50 anos. Tampouco, estou propondo algum tipo de análise contrafactual, idealizando as virtudes de uma possível reação popular das bases sociais das esquerdas aos golpistas que teria “desaparecido” da História por uma mera operação de ocultamento ideológico dos fatos. É plausível que mesmo mobilizada, qualquer reação popular ou das organizações de esquerda seriam derrotadas, dada a correlação de forças à época, amplamente favorável às direitas. Mas, independentemente do processo político referencial e suas possíveis interpretações, o aspecto central na análise aqui proposta é pensar como o golpe de 1964 foi fixado em imagens e quais suas implicações para a memória e para a crítica da memória que se tornou hegemônica sobre o período (Napolitano, 2015). Entre 1974 e 1984, o distanciamento das classes médias e de setores liberais em relação ao regime militar se aprofundou, com os militares desgastados por conta das denúncias de violações contra os Direitos Humanos, pelo excesso de intervenção estatal na economia e pelo fim do ciclo de crescimento econômico. Neste período, a imagem da “sociedade vítima” e “resistente” ao autoritarismo acabou por se fixar, institucionalizando-se como paradigma narrativo na imprensa, nas Universidades, no sistema escolar e no sistema artístico, e, finalmente, nas políticas reparadoras de Estado (Rollemberg, 2014; Napolitano, 2015). Só mais recentemente, com a vitória eleitoral da extrema-direita, em 2018, este paradigma narrativo e esta memória enquadrada passaram a ser questionadas, mas ainda sem força, coerência ou prestígio para desenquadrar a memória crítica à ditadura.

Apesar da disseminação da visão de uma “sociedade resistente” contra a ditadura ter se fixado, ainda assim, as multidões resistentes estão praticamente ausentes dos registros consagrados em torno do golpe de Estado de 1964 e dos seus usos posteriores em documentários e retrospectivas. As imagens canônicas o apresentam como um evento sem participação das massas, com amplas implicações para a construção da memória social sobre este evento e sobre a ditadura militar brasileira como um todo.  Neste sentido, os registros visuais da capitulação e da derrota, corroboram a perplexidade da esquerda da época que parecia caminhar “do lado certo da história”, mas foi surpreendentemente golpeada pela direita ardilosa e articulada com a burocracia militar e com importantes grupos políticos civis, sem ser defendida pelas massas trabalhadoras que supostamente representava.  Nas imagens históricas de época que mais circulam em formato visual e audiovisual sobre o período do regime militar brasileiro, as multidões nas ruas só estão presentes na cena política em alguns momentos específicos: nos protestos estudantis de 1968, no ciclo de greves operárias de 1979-1980, e na campanha pelas eleições diretas, no começo de 1984. Estas imagens de multidões em protesto ajudaram a fixar uma memória da “resistência” contra a ditadura, mas que teria sido posterior ao golpe que instalou os militares no poder.

A pergunta do observador crítico é: o que teria acontecido com aquelas massas tão atuantes no contexto do governo João Goulart nos dias do Golpe de Estado que o derrubaram? Por que elas não defenderam um governo que, supostamente, representava suas demandas por direitos sociais e políticos? O que nos interessa aqui é como as apropriações das imagens audiovisuais dialogaram com a imagem canônica de um Golpe militar sem resistência popular. Neste ponto, o cinejornal soviético aqui analisado aponta para um outro registro da histórica, dando protagonismo às massas de trabalhadores que resistem e protestam contra os golpistas.

 

2. Material de análise e Marco teórico-metodológico

Os cinejornais, telejornais e imagens documentais em movimento (footages, e mais recentemente os videoamadores) ganharam importancia como gêneros de circulação social ao longo do século XX e XXI. Estes registros têm forte impacto na fixação dos eventos dentro de uma narrativa histórica e como pauta de memória social, que não devem ser analisadas como mero espelho do fato referencial, e sim como um sintoma de uma realidade multifacetada, aberta a um tempo histórico plural (Didi-Huberman, 1998). Em outras palavras, o próprio conceito de evento histórico relativo aos últimos 60 anos, ao menos, não pode ser mais pensado sem sua contraface em termos de narrativa visual e, particularmente, audiovisual, tornando virtualmente inseparável o fato, do seu registro visual (Polydoro, 2015). Cinejornais e telejornais vão além do mero registro de dados e acontecimentos sociais de impacto. O registro do dado bruto e sensível, anterior mesmo ao estatuto de “fato”, é sua primeira camada, a que chamamos de “registro do real”, registro bruto do acontecimento em primeira instância. Na sequência imediata à operação de registro do real, as primeiras edições e veiculações do material editado, já em formato a ser exibido ao público, contém em si uma organização temporal básica calcada na busca de causas e efeitos para explicar o evento retratado. Esta segunda operação, que chamarei de “organização do fato social”, já propõe um sentido causal para os acontecimentos organizados sob o ponto de vista da notícia (“o que, quando, quem, como”). Ao registro e ao fato social, se acrescenta uma terceira camada de sentido, propriamente histórico, a que chamarei de “evento”, categoria que vai além, dialeticamente falando, do “dado” e do “fato”. Passados os primeiros dias de veiculação de uma notícia impactante, a própria mídia jornalística procura sintetizá-lo e explicá-lo a partir de sentidos mais profundos, ideológicos e valorativos (Napolitano, 1999). É nesta terceira fase da operação jornalística que o evento se comunica com os processos mais eficazes de construção da memória social e da experiência histórica de longa duração.  A depuração das imagens em circulação, suas condições de guarda e acesso em arquivos, também influenciam na fixação de imagens icônicas sobre os eventos, sendo apropriadas e reapropriadas muitas vezes, sempre sob o risco de serem naturalizadas na memória como “expressão” genuína do evento histórico como se não existissem mais mediações entre o dado referencial e sua imagem.

O cinejornal, gênero audiovisual que constitui o material que será analisado a seguir, é um registro em curta-metragem, seriado, composto por segmentos justapostos de notícias (com foco na conjuntura do momento) e com certa padronização na duração, podendo variar entre 5 e 10 minutos. Com o surgimento do filme sonoro, o cinejornal passou a ser apresentado pela voz over do narrador, que explicava e reforçava um certo sentido que se poderia depreender das imagens. De periodicidade variada (semanal ou quinzenal), os cinejornais eram exibidos antes dos longas nas sessões cinematográficas (Archangelo, 2015: 13). Trata-se, de um formato híbrido por excelência, que alia imprensa escrita e registro audiovisual.

O cinejornal Foreign Newsreels 919 tem a duração total de 9 minutos e 12 segundos, e o Brasil (governo João Goulart e Golpe de Estado) é o tema de dois segmentos, com 5:53 de duração, sem áudio em russo e sem texto de locução disponível na internet ou acessível em arquivo. Os 7 segmentos desta edição do cinejornal abordam vários eventos pelo mundo: a abertura de uma rua com o nome do presidente John Kennedy, assassinado no final do ano anterior, em Paris; uma greve de empregados de rádio e de televisão na Itália; a descoberta de uma múmia de 1800 anos; distúrbios raciais em Birmingham, Alabama e Atlanta, nos Estados Unidos.  O texto oficial no site do arquivo russo on line intitula os seus 7 segmentos da seguinte maneira:

Temporary description:  France: opening of the street to them. Kennedy / Germany*: Strike of employees of radio and television / 1800 year old mummy. / USA. Demonstrations in Birmingham. USA / Racial demonstrations in Atlanta. USA. Clashes with the ku Klux Klan in Atlanta. / The coup in Brazil. / Goulart.

Trata-se, portanto, de uma pauta que articula o conceito de “notícia” ao de “fato histórico”, com foco no conflito político social no lado “capitalista” do mundo. Se no passado, as narrativas escritas e orais eram determinantes para a afirmação de um evento histórico digno do nome, na segunda metade do século XX, a narrativa visual e audiovisual assumiu um papel importante, já estudada no campo da história imediata (Nora, 1972; Veron, 1980). Ao lado de notícias que poderiam ser classificadas como curiosidades, como a inauguração de uma praça ou a descoberta de uma múmia, o cinejornal soviético registra cenas dignas da posteridade das lutas sociais, nos planos classista ou racial, bem como um evento dos mais importantes no contexto da Guerra Fria, que foi o Golpe de Estado no Brasil.

A linguagem do cinejornal apresenta semelhanças e diferenças em relação ao telejornalismo. Se a televisão implica em registro e edição em vídeo, tomado mais como fluxo de imagens editadas, o cinejornal pode ser visto como obra constituída a partir de uma narrativa audiovisual clássica. A economia interna dos cinejornais, enquanto organização de imagens a partir das pautas selecionadas, também varia. A noção de “segmento” nos cinejornais é particularmente importante para analisar uma edição, enquanto nos telejornais a sequência de telerreportagens ou locuções do âncora sem imagens registradas do evento narrado implicam em outro tipo de sequência interna. Vale lembrar que neste caso, “segmento” se define por um bloco temático narrativo específico dentro de uma determinada edição de um cinejornal. No cinejornal Foreign Newsreels 919, a sequência dos segmentos é organizada em um crescendo de dramaticidade e densidade histórica, começando pela amenidade da inauguração de uma praça até uma minibiografia do líder terceiro-mundista derrubado por um golpe de Estado, passando por cenas de violência contra as massas trabalhadores na Europa, Estados Unidos e Brasil.

O uso destes materiais como documentos históricos, entretanto, apresentam desafios que vão muito além de questões e sutilezas metodológicas. Ao contrário do que está informada na sinopse oficial do arquivo russo, a informação sobre a greve na Itália é anunciada como se tivesse ocorrido na Alemanha, talvez pelo fato do trecho ser narrado em alemão. Este detalhe, que envolve o registro, a guarda do material e a produção de uma informação arquivística posterior, revela a dificuldade de se trabalhar com este material tomado como fonte histórica. Provavelmente, trata-se de um registro de cinejornal alemão sobre uma greve na Itália, que foi anotado equivocadamente no momento da divulgação das imagens online. Além das lacunas informativas, técnicas, da perda dos textos de locução e do áudio, muitas vezes as informações oficiais das instituições de guarda podem induzir ao erro de quem as analisa.

O segmento 6 do Foreign Newsreels 919, de duração total de 2:45, é o trecho que mais importa para este artigo. Este segmento veicula um conjunto de imagens sobre o golpe de Estado no Brasil, registrando tanto uma aglomeração popular quanto a movimentação de tropas em um ambiente urbano. Sem áudio em português ou em russo, este trecho veicula imagens pouco usuais sobre os dias cruciais do golpe em marcha, à medida que seu foco narrativo está centrado na multidão de anônimos que se agita na região da Cinelândia, na cidade do Rio de Janeiro.

Em um primeiro momento, levando-se em conta apenas as imagens disponíveis, não fica claro contra o que a multidão protesta, nem se ela protesta ou saúda as tropas em movimento. Há uma clara polissemia das imagens que, sem suporte textual ou documental, pode ser lida e apropriada de muitas maneiras. Nos primeiros segundos, é enquadrado um prédio (F1 e F2). Na sequência, o foco das imagens muda para a relação visivelmente tensa entre a multidão e a tropa, alternando os enquadramentos (F3). Mas ao 1:21, revela-se que a tropa se utiliza de força para dispersar a multidão que protesta. Deste momento até o fim do segmento, parece haver escaramuças entre dois grupos de populares, a favor e contra o golpe, e entre estes últimos e a tropa militar. Em algumas sequências, se pode ver pessoas anônimas de maneira mais detalhada, manifestando-se por gestos ou palavras-de-ordem que não podem ser ouvidas pela falta do áudio correspondente.

Um aspecto que chama a atenção no material aqui analisado, tendo em vista a lógica dos cinejornais e as pautas predominantes do gênero, é a ausência de autoridades e figuras públicas conhecidas, desviando este segmento em análise da tradicional “liturgia do poder” centrada na superexposição das autoridades e lideranças políticas no processo histórico (Archangelo, 2015). Trata-se de um registro de massas e pessoas anônimas, distribuídas entre populares e tropa. Pela fotogenia dos rostos, era patente que se tratava de pessoas oriundas das classes populares e de grupos de trabalhadores (F3), embora se notasse uma ou outra figura que, pelos trajes e tipos físicos, poderiam ser oriundas da classe média. Os closes e planos médios, normalmente reservados às autoridades, lideranças políticas e celebridades, dão lugar aos cidadãos comuns em um momento dramático e crucial da história brasileira e, por que não, da Guerra Fria como um todo (F4 e F5). Sem legendas ou locução, fica difícil identificar o sentido daquelas imagens, tomadas em si mesmas. Sobrava a dimensão de registro bruto, mas faltava a do fato e do evento, as três instâncias das imagens jornalísticas já comentadas.

Uma das dificuldades do material telejornalístico e cinejornalístico é que muitas fontes estão preservadas fora do contexto original de edição dentro de um telejornal ou cinejornal, o que implica em um trabalho quase arqueológico de recomposição do contexto comunicativo original. A plasticidade das imagens, ainda que documentais, faz com que sua leitura ou reapropriação fora do contexto de produção e veiculação originais ganhem novos contornos de sentido, muitas vezes contrário ao seu sentido originalmente pretendido pelo produtor. Seria plausível supor que o cinejornal soviético em análise claramente se apropriou de imagens produzidas por congêneres brasileiros, ilustrando esta peculiaridade teórico-metodológica, fundamental para o uso dos cinejornais como documentos históricos e peças de construção da memória social.

 

F1. Prédio do Clube Militar, Rio de Janeiro. F2. Detalhe da janela do Clube Militar. Acervo: Russian Archive of Documentary Films and Newsreels

 

 

F3. y F4. Multidão protestando na Cinelândia, Rio de Janeiro. Acervo: Russian Archive of Documentary Films and Newsreels

As inúmeras apropriações, reapropriações e circulações sociais destes materiais audiovisuais, brutos ou editados, constituem um campo de pesquisas muito fecundo para historiadores, especialmente abertos a uma polissemia de imagens (Xavier, 2009). Neste jogo de intercâmbios e apropriações entrecruzadas, podem surgir imagens desviantes das imagens canônicas de um evento. Assim, foi necessário um trabalho de análise “extra-fílmica”[4], a partir das interrogações que as próprias imagens suscitavam, para voltar a elas e extrair possíveis sentidos como fontes históricas: contra quem aquela massa protestava? Quais as origens e implicações imediatas daquele evento registrado em imagens?

 

F5. Mulher com cartaz de Getúlio Vargas em meio à multidão que protesta. Acervo: Russian Archive of Documentary Films and Newsreels

 

3. Análise do material: Interrogando as imagens e identificando seu olhar sobre o ‘evento histórico’

No primeiro contato com as imagens do cinejornal soviético ficava claro seu potencial narrativo alternativo e pelo sentido desviante em relação às imagens canônicas sobre o Golpe de Estado de 1964, centrada na ausência das massas em situação de protesto e resistência durante o processo golpista, conforme discutido anteriormente.  Em princípio, estas sequências nunca tinham sido veiculadas nos inúmeros documentários cinematográficos e retrospectivas televisuais mais conhecidos sobre o golpe de Estado.

Encontramos apenas algumas tomadas semelhantes em uma edição retrospectiva do Canal 100 produzida e exibida em meados dos anos 1980, ao fim do regime militar, um dos noticiários cinematográficos mais famosos do Brasil, como veremos adiante. Como já afirmado anteriormente, o que predomina nestas imagens canônicas é a movimentação de tropa, desfiles de tanques de guerra pelas ruas vazias, as imagens do presidente deposto, mas nada semelhante àquela multidão na rua sendo contida por uma tropa que parece hesitante.

A primeira tarefa de análise extra-fílmica, era identificar o local e a data exatos dos registros. Obviamente, se tratava de um protesto no contexto dos distúrbios e agitações políticas ligadas do Golpe de Estado que derrubou João Goulart. Era possível reconhecer que os eventos registrados ocorreram no Rio de Janeiro, mais especificamente na região da Cinelândia, área central da cidade. Também foi possível identificar aquelas imagens como ocorridas entre 31 de março e 4 de abril de 1964, período crucial daquele processo golpista, quando se consumou a derrota das esquerdas e sua retirada das ruas e do governo, com o triunfo da rebelião militar e do golpe político da direita (Napolitano, 2014).  

A pesquisa em arquivos da imprensa pode detalhar um pouco mais o evento referencial que está por trás das imagens do Foreign Newsreels 919, em que pese o fato dele não ter tido o mesmo destaque, nos jornais da época. A maior parte dos jornais brasileiros, aliás, veículos e atores da conspiração que derrubou João Goulart (Carvalho, 2010), enfatiza a tomada de poder pelos militares, “sem violência” e as manifestações de apoio aos golpistas, como se 1964 fosse uma festa cívica contra “subversivos, corruptos e comunistas”. Mas, em uma das páginas internas de um dos principais jornais da época, o Jornal do Brasil, encontramos os detalhes do evento veiculado pelo cinejornal soviético.

Com a manchete “Populares tentam agredir oficiais do Exército e depredam Clube Militar”[5], o JB detalha o episódio. Quando as movimentações militares contra João Goulart ainda estavam com resultado indefinido, sobretudo no Estado da Guanabara governado por Carlos Lacerda, um dos líderes da conspiração direitista, membros do Clube Militar distribuíam um manifesto na calçada em frente à sua sede, na região da Cinelândia. Precisamente, o edifício que se mostra no começo do cinejornal é a sede do Clube Militar, reduto da oficialidade que foi passada para a reserva, e que aderiu em peso à conspiração contra o governo reformista de Goulart. Conforme a matéria do JB, acuados pelos populares que defendiam o governo Goulart, os militares recuaram para a sede do Clube, cuja entrada foi depredada. A tropa de choque foi convocada, que junto com a chegada de um blindado do Exército, passaram a proteger o Clube e isolar a área. Mas a movimentação popular não arrefeceu. Um civil que defendia o golpe foi perseguido pelos manifestantes e refugiou-se no Clube Militar, que sofreu ameaça de invasão. Seguiu-se um tiroteio, efetuado pelos oficiais do Exército, resultado em 5 feridos e 2 mortos. A relação dos feridos é reveladora dos grupos que protestavam contra o golpe: dois estudantes, dois trabalhadores portuários, um advogado.

A Revista O Cruzeiro também comentou o episódio:

14 horas. É o sangue. A multidão tenta mais uma vez invadir e depredar o Clube Militar. Um carro da PM posta-se diante do Clube. O povo presente vaia os soldados. Mais tarde, choque do Exército... dispersam os agitadores, que voltam a recarga, pouco depois. Repelidos a bala, deixam em campo, feridos, vários manifestantes[6].

Além disso, apenas uma nota na capa do Correio da Manhã registrou o protesto, sob uma manchete lacônica: populares pró-Jango atacaram o Clube Militar e foram repelidos à bala[7].

O jornal Última Hora, o único grande jornal simpático ao presidente Jango e ao trabalhismo de esquerda, fez alusão à saudação popular à chegada das tropas do Exército que supunham ser leais ao governo de João Goulart, ainda legalmente vigente. Isso ajuda a explicar a ambiguidade das manifestações populares presentes nas imagens no cinejornal.

Apesar de não dar maior importância ao protesto da Cinelândia, deve-se notar que em meio às notícias efusivas de apoio popular e político ao Golpe que apoiavam “em nome da democracia”, “contra o comunismo”, os jornais também noticiavam greves e manifestações populares entre 1 e 3 de abril de 1964, sempre reprimidas pela polícia de choque ou pela polícia política. Com a deposição de Jango oficializada pelo Congresso Nacional na madrugada de 2 de abril, cujo presidente, o Senador Auro de Moura Andrade estava ao lado dos conspiradores, e com a partida de Jango para o exílio no Uruguai, o esboço de resistência nos sindicatos, universidades e nas ruas, se desmobilizou. Ficou fixada a imagem da queda sem resistência, da capitulação sem luta, que perseguiria as esquerdas e suas lideranças por muitas décadas.

A hipótese da “capitulação sem resistência”, verdadeiro fantasma no debate político e historiográfico brasileiro, tem muitos vieses explicativos. Para Daniel Aarão Reis Filho, a derrota de 1964 não se deu pelo resultado político das ações e reações de ambos os lados, governistas e golpistas, mas simplesmente por que o governo e seus aliados de esquerda resolveram “não lutar” contra o Golpe (Reis Filho, 2014), seja porque as próprias lideranças de esquerda não mobilizaram os trabalhadores para tal, seja por que estes não abraçaram, espontaneamente, a defesa do governo deposto nas ruas. Para Jorge Ferreira, biógrafo de João Goulart, a decisão de “não lutar” contra a rebelião militar concomitante ao Golpe foi tomada pelo próprio presidente quando informado pessoalmente sobre o apoio militar norte-americano que estava sendo preparado, em apoio aos golpistas (Ferreira, 2014). Entre a “covardia política” da esquerda e a “decisão sensata” da sua principal liderança no governo para se evitar uma guerra civil de grandes proporções, o debate permanece inconcluso, atravessado por questões políticas ainda presentes na sociedade brasileira. A opção pela “capitulação” também pode ser compreendida a partir da leitura das lideranças políticas da esquerda (e mesmo de parte da direita civil que apoiou o Golpe, como o governador Carlos Lacerda, da Guanabara), de que aquele seria mais uma “quartelada” e um “golpe passageiro” que não mudaria o regime político vigente desde 1946 e, em breve, permitiria novas eleições presidenciais. Não é preciso dizer que esta leitura, muito influenciada pelo histórico da IV República brasileira, se revelou totalmente equivocada. O Golpe de 1964 não derrubou apenas um governo, mas mudou o regime político.        

Independentemente de qualquer avaliação sobre as condições efetivas desta resistência ao golpe, e sua capacidade de deter o processo político-militar que depôs Goulart, não deixa de ser notável que a memória que prevaleceu é a da “capitulação” e da “perplexidade” das esquerdas, que se viram paralisadas diante da rebelião militar iniciada em Minas Gerais e São Paulo, que logo contagiou outros quarteis pelo país. Reiteramos que esta memória, em boa parte, corresponde às imagens canônicas do Golpe, com suas movimentações de tropas, tanques e agitações palacianas. Além disso, já na época, os jornais deram muito mais destaque, coerente com suas posições, às “marchas da Família”, organizadas pelas direitas, em comemoração à queda de Goulart.

Identificado o evento-referente, passemos à interrogação sobre a origem das imagens e seu sentido enquanto documento audiovisual.

Seguindo a hipótese de que as imagens presentes no cinejornal soviético tinham sido replicadas de materiais de cinejornais brasileiros, procuramos algumas pistas na documentação disponível sobre sua possível origem.

Os principais cinejornais brasileiros foram o Notícias da Semana (1944-1986, produzido pelo grupo Severiano Ribeiro), Cine-Jornal Informativo (1946-1969, produzido pela Agência Nacional) e o Canal 100 (1957-2000, produzido por Carlos Niemeyer). Como apontou o pesquisador Rodrigo Archangelo, a pauta dos cinejornais, via de regra, estavam presas às liturgias do poder político, sendo veículo privilegiado para exposição de lideranças políticas e governos de plantão (Archangelo, 2015). No entanto, o acervo dos cinejornais brasileiros guarda outras imagens importantes para se compreender o século XX, sobretudo imagens esportivas de grande valor histórico (como jogos de futebol no Brasil filmados em película), processos de construção e reconstrução urbanas (sempre um motivo apropriado para expor políticos e governos) e grandes eventos, como o Golpe de Estado de 1964.

As dificuldades neste ponto são muito grandes, pois em que pese o trabalho incansável feito na Cinemateca Brasileira, grande parte dos materiais dos Cinejornais de época ainda estão em fase de catalogação ou ainda não podem ser visionados, dada as condições de reprodução do material. Ainda assim, localizei duas possíveis fontes daquelas imagens.

A primeira é uma fonte escrita: o texto de locução da edição “Canal 100 64X15”[8], versão estadual e federal[9]. Neste cinejornal há duas reportagens. Uma reportagem um tanto oficialista e anódina sobre “obras do Governador Carlos Lacerda”, acompanhada de outro segmento intitulado “Vitória da Revolução de 31/3/1964”.  O conteúdo do texto ainda reforça a presença de Carlos Lacerda (governador da Guanabara, um dos líderes civis da direita) como um dos líderes civis da “Revolução”, fazendo um pronunciamento político, seguido de flashes focalizando as tropas em prontidão, incêndio do prédio da UNE e finalmente ‘Marcha da Família com Deus pela Liberdade’, na Guanabara”, manifestação de massa dos grupos sociais opositores das esquerdas e do governo João Goulart, com base nas classes médias.

O roteiro de locução completo desta edição[10] faz referência, entre a marcação de metragem 366 a 520, ao protesto na Cinelândia, registrando um roteiro de acontecimentos muito semelhantes às imagens veiculadas pelo cinejornal soviético.  Vale a citação completa do texto:

366 - “Elementos subversivos agiam na Cinelândia, visando a sede do glorioso Clube Militar e procurando criar um ambiente de agitação.

402 – Contra estes extremistas a reação seria enérgica...De nada adiantavam os atos de vandalismo. A situação já estava decidida em favor dos nobres ideais defendidos pelos revolucionários

450 – As bravas Forças Armadas tinham o absoluto domínio da situação. O Exército veio à rua para impor sua autoridade. Esse mesmo Exército que, em vários pontos do país, se lançava em apoio ao histórico movimento”.

A partir deste ponto, o texto do Cinejornal brasileiro do Canal 100 focaliza a derrota daqueles que resistiam ao golpe e o congraçamento dos vitoriosos:

521 – Populares e democratas realizaram uma manifestação frente à UNE, o mais agitado centro político-estudantil do país. O edifício acabaria sendo invadido, depredado e incendiado. Era o protesto contra o desvirtuamento da finalidade que deram origem à UNE.

557 – Afinal, a tensão se desfez. A revolução estava vitoriosa e o povo comemorou na Grande Marcha com Deus pela Liberdade. Quase 1 milhão de pessoas num ato de fé e agradecimento (...).

687 – Milhares de pessoas de todas as condições sociais, de todas as idades e credos, reunidas sob inspiração do mesmo ideal. Era demonstração de fé inabalável nos destinos da democracia brasileira, com Deus e liberdade.

A locução que consta neste documento, portanto, procurava dar um sentido ideológico preciso às imagens, enfatizando a ação de “subversivos” contra o “glorioso” Clube Militar, adjetivação que não deixa nenhuma dúvida quanto à falta de isenção do autor[11].

A segunda fonte primária que nos ajuda a identificar a origem das imagens do Foreign Newsreels 919 foi uma edição especial do NOTÍCIAS DA SEMANA CANAL 100 – DVD 3 (“Edição não identificada”) e no DVD 09 (Retrospecto do Período 1960 a 1985). Ambos veiculam as mesmas sequências de imagens, mas somente a edição do Retrospecto produzido nos anos 1980 tem o áudio da locução disponível. No DVD 03, que corresponde à “edição não identificada”, segmento entre 2:16 a 2:42, temos as imagens do Golpe de 1964, e do protesto da Cinelândia, o mesmo evento veiculado pelo cinejornal soviético. Trata-se, provavelmente, de uma edição exibida nos cinemas em abril de 1964, talvez a mesma do texto de locução analisado anteriormente (Edição 64X15), embora não possamos comprová-lo apenas pelo cotejo do texto com as imagens, dada a lacuna das informações de arquivo. O que se pode afirmar é que esta mesma sequência foi utilizada na Edição Retrospectiva dos anos 1980, já com texto de locução adaptado ao contexto de fim do Regime Militar brasileiro que foi substituído pelo governo civil justamente em 1985, como foco na “resistência”.  

De todo modo, o que importa neste ponto é que o texto de locução de 1964 (disponível apenas em formato de texto impresso) e de 1985 (em áudio sincronizado com imagens) apresenta dois sentidos políticos diferenciados para o mesmo evento referencial (a rebelião militar que sustentou o Golpe de Estado, o protesto na Cinelândia e o incêndio ao prédio da União Nacional dos Estudantes). Assim, ao contrário do texto de locução original, quando se condenava “os elementos subversivos na Cinelândia” e se elogiava o ataque das milícias de direita ao prédio da UNE, o texto que acompanha a edição retrospectiva dos anos 1980, ressignificava as imagens do mesmo protesto na frente do Clube Militar ao dizer: “O golpe militar encontra reação romântica de estudantes e líderes sindicais”. Em um momento no qual a sociedade brasileira (e a imprensa em particular) procurava se dissociar do apoio à ditadura, os “distúrbios subversivos” se metamorfoseavam em “reação romântica”. O texto mudava, mas as imagens e eventos registrados eram os mesmos.

Abaixo, um fotograma retirado desta edição retrospectiva do Notícias da Semana (F6).

 

F6. CANAL 100 DVD 03 (Edição não identificada) e DVD 09 (Retrospecto 1960-1985). Acervo: Cinemateca Brasileira.

F7: NEWS FOREIGN NEWSREELS 1964 № 919 - Acervo: Russian Archive of Documentary Films and Newsreels.

 

Os fotogramas deste cinejornal brasileiro apresentam grande semelhança de tema, enquadramento (e textura fotográfica) com o material veiculado no cinejornal soviético, como no exemplo comparativo das imagens 7 e 8.

Comparando os fotogramas temos figuras e edificações muito parecidas. São tomadas muito próximas, em ângulos ligeiramente diferentes, e provavelmente ocorridas em um intervalo breve de tempo. Um dos indícios que nos permite afirmar esta hipótese, encontra-se na posição do indivíduo de camisa listrada à frente do grupo barrado pela polícia. Ao que parece, a multidão provoca outro grupo do outro lado da rua, separados pela barreira policial. Não é possível afirmar com certeza que o registro saiu da mesma equipe ou das mesmas câmeras, mas a semelhança é inegável e constitui um indício importante para a análise destas fontes. O que é possível afirmar sem medo é que se trata do mesmo protesto, cujas imagens foram provavelmente veiculadas na edição do Canal 100 64X15, com o texto de locução simpático ao golpe e crítico do protesto de “subversivo”.

F8. CANAL 100 DVD 03 2:16 a 2: 42 (Edição não identificada) e DVD 09 (Retrospecto 1960-1985). Acervo: Cinemateca Brasileira

 

4. Conclusões

A  análise do cinejornal  Foreign Newsreels 919, em cotejo com as imagens e textos disponíveis sobre o mesmo evento nos cinejornais brasileiros, e a possível apropriação do material filmado pelo cinejornal soviético, nos aponta para uma série de questões historiográficas e metodológicas.

Em primeiro lugar, temos um caso de circulação e apropriação de imagens que operam em dois eixos: um eixo sincrônico, entre a edição do Canal 100 – 64x15, exibida nos cinemas brasileiros em 1964, e o cinejornal soviético exibido no mesmo ano. Outro eixo é diacrônico, entre o Canal 100 – 64X15 (exibido em 1964, nos cinemas brasileiros) e a edição retrospectiva da mesma empresa mais de vinte anos depois, exibida ao final do regime militar (1985). Este movimento diacrônico resultou na mudança do texto de locução, em compasso com a condenação do golpe e a valorização da democracia e dos movimentos sociais pelo conjunto da sociedade brasileira. Infelizmente, as lacunas documentais nos impedem de avançar mais na análise, limitando este artigo a um exercício de possibilidades.

A falta de um áudio ou texto de locução no material soviético, nos priva da leitura que os soviéticos - ou seja uma produtora estatal afinada com o governo e o Partido no poder – ofereceram sobre o golpe de Estado de 1964 às plateias do país. Por outro lado, a falta de imagens sobre o cinejornal Canal 100 64X15, do qual só tivemos acesso ao texto de locução, nos impede de comprovar a hipótese da migração dos registros audiovisuais do protesto na Cinelândia entre Brasil e União Soviética. De todo modo, as análises aqui sugeridas tocam em problemas fundamentais do campo de intersecção entre história e cinema em torno do registro fílmico, condições de arquivo e possibilidades de análise do gênero cinejornal.  As condições de registro e as condições de apropriação deste material ao longo do tempo, tensionando o momento do fato e sua transmissão social em várias épocas subsequentes, incide na construção e desconstrução de “imagens canônicas” sobre eventos históricos. No caso aqui analisado, trabalhamos com a hipótese de que as imagens documentais e jornalísticas sobre o Golpe de Estado de 1964 não são meramente ilustrativas de um suposto sentido intrínseco do fato histórico, veiculando em si mesmas tentativas de construção de sentidos, posteriormente fixados no imaginário social e na memória coletiva, tal como se compreende o conceito de “imagens canônicas” (Saliba, 2014, p. 88). Obviamente, apesar deste processo de fixação, o sentido dominante das “imagens canônicas” pode ser confirmado ou enviesado em seus usos posteriores, na medida em que se tornam imagens de arquivo (Xavier, 2009).

Ainda que a hipótese de uma reapropriação de imagens originalmente filmadas por um cinejornal brasileiro pelo seu congênere soviético seja plausível, sobram muitas lacunas nesta análise. Como, efetivamente, o material filmado migrou para a União Soviética? O material migrado continha as imagens já editadas? Ou se tratava de um material bruto, não aproveitado nos cinejornais brasileiros, cuja origem empresarial os colocava ao lado dos golpistas?

As imagens de uma resistência popular ao golpe sem lideranças conhecidas, em plena cidade do Rio de Janeiro, apontam para um indício ainda pouco explorado pela historiografia política e cultural do golpe. Sem exagero, podemos dizer que elas podem inserir uma perturbação na memória social construída em torno de 1964, mesmo que não sejam suficientes para mudar a narrativa historiográfica dominante dos acontecimentos. Assim, a tese da capitulação sem resistência poderia ser colocada sob uma perspectiva crítica, problematizando a memória cultuada por muitas vertentes ideológicas envolvidas naquele contexto. Para a memória liberal, que tanto sublinha a demagogia e a falta de apoio popular efetivo dos líderes de esquerda, a multidão na rua, portando retratos de Getúlio Vargas e querendo invadir o Clube Militar, é um contraponto importante. Para o revisionismo de direita, que tem causado muito ruído no debate público brasileiro nos últimos anos, a multidão que protesta mostra que o “consenso” e “clamor” popular pela derrubada de João Goulart não foram tão predominantes quanto se quer crer. E mesmo para a memória da esquerda que frequentemente aponta para a fragilidade da organização popular, incapaz de deter o golpe, o protesto da massa anônima parece mostrar que a disposição e a organização da luta foram mais frágeis entre as lideranças e as autoridades do governo deposto do que entre trabalhadores anônimos (Reis Filho, 2014).

Se estas imagens não são suficientes para quebrarmos um paradigma canônico –o da “estranha derrota” sem resistência em 1964–, elas inserem uma perturbação na memória social do golpe, recolocando o popular em cena e demonstrando a importância do documento audiovisual para conhecermos certas lacunas do passado. Em outras palavras, elas demonstram a importância de uma nova história visual do “evento-monstro” (Nora, 1972) que mudou o Brasil e abriu a era dos golpes militares na América Latina. Ao mesmo tempo, em seu sentido especificamente fílmico, demonstram a plasticidade das imagens na constituição do cinejornal como gênero narrativo, servindo-se à informação em contextos culturais e ideológicos completamente diferentes no tempo e no espaço.

 

Referências bibliográficas

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[1] NEWS FOREIGN NEWSREELS 1964 № 919, Film-document № 28994, 7 footages, Duration: 0:11:12.973, Acervo: Russian Archive of Documentary Films and Newsreels.  https://www.net-film.ru/en/film-28994/?search=qBrazil

[2] Como exemplo, no campo documental, podemos citar: Jango, Silvio Tendler, 1984; Os anos JK, Silvio Tendler, 1976. Além disso, várias peças audiovisuais produzidas pela imprensa brasileira repetem estas imagens da derrota, do golpe como “desfile militar” e do vazio das ruas: TV Folha Especial: os 50 anos do Golpe Militar, 2014; Observatório da Imprensa Especial sobre os 50 anos do golpe militar, 2014; Os 50 anos do golpe militar (disponível em Vejapontocom).

[3] Por “imagens canônicas” entendo, a partir das considerações de Elias Saliba, imagens que contém em si um sentido adensado ao longo do tempo, fixado no imaginário social e na memória coletiva sobre um determinado evento histórico (SALIBA, 2014: 88).

[4] Ainda que este termo específico – extra-fílmico – nos remeta às obras de Marc Ferro, um dos pioneiros no uso do cinema como documento, a perspectiva aqui escolhida não prioriza a realidade histórica fora do quadro e o filme como fonte para se chegar ao referente oculto ou enviesado pela imagem. Sobre as ponderações ao método de Ferro ver MORETTIN, Eduardo. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 38, p. 11-42, 2003. Editora UFPR.

[5] Jornal do Brasil, 2 de abril de 1964, Pagina 7, Hemeroteca digital da BN, edição 00077 de 1964.

[6] O Cruzeiro, Edição Extra de 10/4/1964, apud https://cemdp.sdh.gov.br/modules/desaparecidos/acervo/ficha/cid/315, acessado em 12/08/2019

[7] Tiroteio na Cinelândia Fere Quatro, Correio da Manhã, 2 de abril de 1964, capa.

[8] Canal 100 – 64 X 15 – Estadual / Federal, Atualidades 716 / Reportagens da Semana / Roteiros de Locução, Redator: Alberto Shatovsky; Narrador: Cid Moreira; Editor: Jorge Niemeyer.

[9] Cinemateca Brasileira, CN/MDS00228 e PCN/IMDS00229, Canal 100 64X15[9] – Federal Lançamento 13/4/1964.

[10] PCN/ROT 00755 Canal 100 64X15.

[11] Alberto Shatovsky, redator dos textos do Canal 100, era crítico de cinema, diretor da Rádio MEC, programador de várias salas dedicadas ao “cinema de arte” no Rio de Janeiro, e na juventude foi parte do movimento sionista-socialista DROR/ kvutzá Palmach. Como outros jornalistas liberais da época, aderiu ao Golpe de Estado de 1964 motivados pelo anti-populismo, anti-comunismo e pelo elitismo social puro e simples. Sobre esta adesão golpista da imprensa liberal, ver Carvalho, A. C. (2010). A Rede da Democracia. O Globo, O Jornal e o Jornal do Brasil na queda do governo João Goulart (1961-1964). EDUFF, Niteroi.