EXPRESSÕES DO SUBLIME E DA DELICADEZA NAS NARRATIVAS DO FILME A FESTA DE BABETTE

EXPRESSIONS OF THE SUBLIME AND THE DELICACY IN THE FILM BABETTE 'S FEAST

Laura Seligman

Universidade do Vale do Itajaí, Brasil

seligman@univali.br

Resumo:

Este artigo analisa as narrativas discursivas e a linguagem cinematográfica do filme dinamarquês A festa de Babette (Axel, 1987) em busca de estratégias e abordagens sutis e indiretas para condução da audiência a um caminho e conclusões sem que o dito seja direto. Para tanto, utilizamos a análise de imagens em movimento, como propõe Rose (2002), e ainda analisamos as falas de narradora e personagens, além dos elementos fílmicos, como descreve Martin (2011). Os achados nos levam ao que chamamos de expressões de delicadeza, uma forma de dizer sem a obviedade ou intempestividade. Narrativas que silenciam o que dizem ou o dizem de formas transversais.

 

Abstract

This article analyzes the discursive narrative and cinematic language of the Danish film Babette's Feast (Axel, 1987) seeking subtle and indirect strategies for the development of procedures and conclusions without a route that says straight approaches. Therefore, the analysis of moving images is used, as proposed by Rose (2002), and also analyzes the speeches of the narrator and the characters, in addition to the elements of the film, as described by Martin (2011). The results lead us to what we call polite expressions, a way to say, without the obviousness or delay. Narratives that silence what they say or say a cross shapes.

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Palavras-chave

Cinema; A festa de Babettes; delicadeza; cotidiano.

 

Keywords:

Cinema; Babettes’s Feast; Delicacy; Everyday.

 

Palabras clave:

Cinema; El festín de Babette; delicadeza; cotidiano.

 

 

EXPRESIONES DE LO SUBLIME Y LA SENSIBILIDAD EN LA NARRATIVA DE LA PELÍCULA EL FESTÍN DE BABETTE

Resumen:

En este artículo se analiza la narrativa y el cine lenguaje discursivo de la película danesa El festín de Babette (Axel, 1987) en las estrategias de búsqueda y enfoques sutiles e indirectos para la realización de la audiencia a una ruta de acceso y conclusiones sin dicho sea directa. En tiempos de gran taquilla internacional para las películas producidas en los modelos de Hollywood, es necesario que estos modelos diferentes pueden ser analizados para servir de inspiración como clásicos formatos de éxito sin las características atractivas de las películas de acción tradicionales son prioridad. La invención de la vida cotidiana es ahora un problema de los medios de comunicación - se justifica en estos momentos en los que la exposición personal es por medios de comunicación y las redes que creamos para la emisión de acciones antes evaluados por los intermediarios y más a menudo se consideran de menor importancia, irrelevante. La vida cotidiana de hoy es explosiva, llena de efectos especiales que crean la forma del discurso y las imágenes. Apoyamos aquí en el pensamiento de Deleuze y Guattari (2005) que quieren mostrar que el arte no es la actividad de representación, ya sea la doctrina de la belleza. El arte es la práctica de la experimentación y el cuestionamiento real. Para ellos, los sentimientos y las emociones no pertenecen a la interioridad del artista, sino el ser mismo. Por lo tanto, utilizamos como análisis de los recursos metodológicos de las imágenes en movimiento, tal como se propone por Rose (2002), cuyo objetivo es transferir todos los datos observados en un material audiovisual como una especie de alfabeto, compuestas de lenguaje visual para otras inferencias. Después de más analizamos los discursos del narrador y los personajes, y otros elementos fílmicos, como se ha descrito por Martin (2011) - el autor define la imagen fílmica por primera vez como algo objetivo, se ofreció a la cámara, pero además de despertar al espectador la sensación de la realidad, es importante analizar su carácter unívoco representación presentes en imagen y sonido. Los resultados nos llevan a lo que llamamos la delicadeza de expresión, una forma de decir, sin la obviedad o atemporalidad. Narrativas que silencian lo que dicen o dicen de formas transversales. La producción de narrativas compuestas por el texto original, el texto adaptado para el cine, decoupage clásico (a veces invisibles) y sus matices recuerdan a la audiencia a un ritmo poético y estético. Los resultados son narrativas que expresan lo sublime y delicadeza. Lo sublime que tratamos aquí se aparta del concepto de élite, la construcción de las diferencias culturales jerárquicos, es más por la experiencia estética, por lo extraño de lo que está en nuestra vida cotidiana, perdido en un mar de un discurso representaciones ya cansados. Es como si nos llevaron por estas técnicas, ver el mundo de la pequeña localidad Berlevaag ya que los autores quieren que veamos. No hay una lección moral en las narrativas de la fiesta de Babette, sino una unidad que causa un sentido de responsabilidad. No se nos dice que vivir con sencillez, para que no sea tan difícil se detiene en la elección de sentido para disfrutar de las cosas buenas de la vida, pero optar por la simplicidad. Pero todo esto se dice en los planes, en los marcos, los movimientos en silencio, en palabras paralelas.

 ”Um grande grito sai da alma do artista,

deêm-me a oportunidade de fazer o meu melhor”

Babette

 1. Introdução

A invenção do cotidiano é hoje uma questão midiática – isso se justifica nestes tempos em que a exposição pessoal se faz por meios massivos e por redes que criamos para compartilhar questões antes avaliadas por intermediários e na maioria das vezes consideradas menores, irrelevantes. O cotidiano hoje é explosivo, cheio de efeitos especiais que criamos de forma discursiva e imagética. Esses efeitos estão nas fotografias de lugares e objetos aos quais conferimos status de poder ou de sucesso. Também estão no discurso verbal, emprestado de autores a quem novamente consideramos passíveis de conferir status ou em pequenas porções de nossas vidas que consideramos publicáveis.

Este artigo é fruto de uma investigação a respeito das narrativas verbais e imagéticas que compõem a obra cinematográfica A Festa de Babette (Axel, 1987). O objetivo foi identificar esses elementos e traçar características comuns que diferenciam a peça das demais e a configuram como um modelo, que o levou ao status de um clássico. Os elementos que compõem a Linguagem Cinematográfica foram analisados separadamente para levar a inferências que apontam para uma narrativa do sublime, da sutileza e da delicadeza.

Para uma geração anterior a essa hiperconectada, o cotidiano pode ser definido como o contrário da esfera pública[1]. “Talvez fosse o espaço rejeitado da mediania, o espaço tedioso da repetição, do mal-estar, do nada de extraordinário acontecendo” (Chiara, 2007, p. 13). Esse cotidiano que não interessa aos meios massivos se distanciou de tal forma de nossas representações que chama a atenção. Na poesia de Manoel de Barros – “quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos” (Barros, 1997, p.7), do Livro sobre nada, em que o autor descreve sua obra.

Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc, etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora.

Essa estética esquecida, perdida no cinema, por exemplo, para explosões catastróficas, o fim do mundo sempre iminente e um super-herói a postos para a salvação; está muitas vezes nas imagens cotidianas que despreocupadamente são veiculadas na mídia.

A recuperação da estética na atualidade passa menos pelo elogio monumentalizador das (neo)vanguardas do que pela aproximação da arte a uma vida cotidiana, marcada pelas imagens midiáticas, fundamentais para entender a cultura contemporânea não só ao se falar das condições de produção e de recepção, mas na análise do que antes chamávamos mensagem, produto, obra. Este é meu ponto de partida: uma estética da comunicação (Lopes, 2007, p.23).

Segundo Fischer & Caetano (2015), esta é uma tendência contemporânea, de suprir carências afetivas (ou de expressar afetividades, neste caso) e vincular-se às pessoas por meio de processos técnicos.

No âmbito das práticas contemporâneas, ambientes urbanos modificados digitalmente, roupas e acessórios wearable computer, recursos 3D e 4D, sistemas kinect para games e audiovisual, cirurgias não-invasivas, interações à distância e em tempo real, entre outros procedimentos, são reveladores do emprego da técnica em prol de um conceito de bem estar menos positivista, e mais esteticamente kantiano (Fischer &; Caetano, 2015, p.2).

Apesar de o caráter tecnológico carregar o pejo de frio ou de afastamento entre pessoas, as manifestações de afetividade quase sempre são permeadas por códigos tecnológicos – um telefonema, um bilhete, um poema, todos parecem anteceder o toque, a interação face a face. Essas estimulações, sejam textuais ou musicais, erguem monumentos com suas sensações, mas não monumentos que celebram o passado: “um monumento não comemora, não celebra algo que se passou, mas transmite para o futuro as sensações persistentes que encarnam o acontecimento: o sofrimento sempre renovado dos homens, seu protesto recriado, sua luta sempre retomada” (Deleuze & Guattari, 2005, p. 229).  Sensações e o modo como percebemos as manifestações artísticas são uma faculdade que tem como operadores discursivos o que eles chamaram de afectos e perceptos, ambos tarefas próprias à arte. Conceituar, determinar funções às coisas, prospectar, essas são questões para outras grandes áreas do pensamento: a filosofia e a ciência lógica.

Quando a arte renascentista pintava os nobres e as paisagens do século XV em telas gigantescas, o objetivo de retratar a realidade se adequava às percepções que se tinha dela naquele determinado momento. As noções de beleza ou perfeição, por exemplo, obedeciam a uma estética singular àquele momento.

Da mesma forma, a estética contemporânea traça novas paisagens pictóricas, musicais, literárias, todas afeitas a um novo olhar, a uma questão cultural. É isso que Deleuze, assim como Kant, querem dizer com a palavra faculdade. Ela “designa certamente as quatro fontes subjetivas das representações, as potências interiores que engendram o pensamento: sensibilidade, imaginação, entendimento e razão” (Gualandi, 2003, p.101). Deleuze as relaciona com o senso comum que, para ele, não carrega o pejo do empirismo, mas é princípio de comunicabilidade.

É o entendimento que legisla e julga; mas, sob o entendimento, a imaginação sintetiza e esquematiza, a razão raciocina e simboliza, de tal maneira que o conhecimento tenha um máximo de unidade sistemática. Ora, todo o acordo das faculdades entre si define aquilo a que pode chamar um senso comum” (Deleuze, 1997, P. 28).

Pois, para Deleuze e Guattari (2005), a divisão de tarefas é clara em relação a essas quatro fontes: conceitos são temas para a filosofia, afectos e perceptos são uma questão para a arte e functivos e prospectos são para a ciência lógica. Para sentir, portanto, não é necessário conhecer a técnica, a ciência ou o conceito – basta existir. Esses lugares estabelecidos se encontram: “O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano sobre o caos” (Deleuze & Guattari, 2005, p.186).

O plano que a arte traça sobre o caos envolve o eterno retorno do diferente. Deleuze é o filósofo da multiplicidade. Mas em relação à estética, Deleuze se contrapõe à concepção da sensação que separa o objetivo do subjetivo, sensação e emoção. Assim, a estética se divide em duas partes: a primeira como “teoria da intuição sensível” e a segunda como “teoria da arte e do belo, derivada da doutrina das formas superiores do prazer e da pena” (Gualandi, 2003, p. 101).

Deleuze e Guattari querem mostrar que a arte não é atividade de representação, tampouco doutrina do belo. A arte é, para ele, prática de experimentação e de problematização do real. “A arte é linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras” (Deleuze & Guattari, 2005, P.166). Para eles, sensações e emoções não pertencem à interioridade do artista, mas ao próprio ser.

Fora da concepção de representação e negatividade, Deleuze e Guattari vêem a produção artística como paixão mortal e desejo do eterno (Gualandi, 2003, p.103). São sensações e emoções independentes do vivido, a que chamam de afectos e perceptos exatamente para marcar essa independência.

É preciso compreender essa estética da comunicação sem as habituais dualidades a que é submetida – erudita ou popular e massiva; experimental ou comercial. Ela está na esfera da possibilidade de compartilhamento da experiência. Mas, a consciência de que a experiência cotidiana multimidiática está mais para o simulacro do que para o sublime é a questão aqui levantada. É sobre esse sublime, a delicadeza do que é dito nas narrativas que não parecem se destacar num universo de relevâncias explosivas.

Para tanto analisamos o filme dinamarquês A festa de Babette (Axel, 1987) e suas estratégias discursivas compostas por texto e análise fílmica para destacar a delicadeza construída por meio de narrativas sobre o banal. Com essa análise, tentamos nos alinhar à pergunta que Lopes (2007, p. 44) faz aos seus leitores: “Como produzir imagens e narrativas que ainda tenham força diante do excesso informacional?”.

 

2. O sublime e o cotidiano

O sublime de que tratamos aqui se afasta do conceito de elitizado, de construção de diferenças culturais hierárquicas, mas “do enobrecimento do banal, das ênfase, foco ao que não tem” (Lopes, 2007, p. 44). Está mais para a experiência estética, para o estranhamento do que está em nosso cotidiano, perdido num mar de um discurso de representações já fatigado. “O sublime não implica mais a perda do eu como triunfo da linguagem, mas que o e o próprio sujeito seja traduzido como paisagem” (idem, p.46). Está em resgatar uma lentidão, um silêncio significativo.

Para Orlandi (2007), o silêncio pode se manifestar de diversas formas, tem papeis diferenciados no discurso. Tomamos aqui o que a autora considera o silêncio-fundador, “aquele que existe nas palavras, que significa o não-dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar” (Orlandi, 2007, p. 24). O que as imagens e as palavras não-ditas contêm, criam imagens que não nos levam ao óbvio.

Essas imagens estão presentes nos cotidianos de cada um e de todos – e tomamos o conceito no plural, nas minúcias de cada um e nas aproximações que se impõem. No conceito de Javeau (apud Pais, 1986, p.13), “a sociologia da vida quotidiana tomaria por objecto as manifestações da actividade humana desenvolvidas de uma forma regular, dia após dia, no seio de determinados grupos de dadas sociedades”. Sua principal característica é a espontaneidade.

A definição de vida cotidiana estaria, então, baseada segundo Balandier (apud Pais, 1986, p. 13), em duas premissas:

a)            Ela centra a sua interrogação sobre o sujeito individual, suas relações próximas e regulares, e não sobre os grandes dispositivos sociais (agrupamentos, organizações ou sistemas);

b)            Ela estuda as práticas e representações através das quais esse sujeito prepara e negocia quotidianamente a sua inserção social.

Mas, Pais (1986) alerta que para compreender as significações da vida cotidiana e suas representações, é preciso ultrapassar “a ordem das trivialidades” e compreender a vida social em seus múltiplos aspectos.

 

3. O gênero cinematográfico

A Festa de Babette, como já dissemos, se afasta do estilo blockbuster para apresentar uma narrativa diferente. A classificação de gêneros no cinema tem sua origem nas artes, mais notadamente na literatura e na pintura. Ambas áreas têm suas próprias classificações de gênero que, aos poucos, foram sendo substituídas por uma classificação própria para as produções cinematográficas, ainda que tenham inspirado essas categorias. Segundo Nogueira (2010, p.3), “[...] podemos afirmar, resumidamente, que um género cinematográfico é uma categoria ou tipo de filmes que congrega e descreve obras a partir de marcas de afinidade de diversa ordem, entre as quais as mais determinantes tendem a ser as narrativas ou as temáticas.”. Os gêneros, portanto, permitem estabelecer relações de semelhança ou identidade entre as diversas obras.

Nogueira (2010) aponta quatro gêneros fundamentais: a ficção, com o objetivo principal de entreter; o documentário, com o objetivo de testemunho e reflexão sobre a realidade; o experimental, que pretende expandir e explorar as formas de se fazer cinema; e a animação, que assegura a pluralidade estética. Desses quatro gêneros fundadores, derivam outros gêneros e subgêneros.

Nogueira (2010) aponta como gêneros clássicos: ação, comédia, drama, fantástico, ficção científica, film noir, musical, terror, thriller e western.

Para classificar subgêneros, o autor aponta que “pode constituir-se a partir da comunhão de um conjunto reduzido de características, ou mesmo de uma única e decisiva característica, podemos identificar uma vastidão aparentemente infindável de subgéneros.” (Nogueira, 2010, p.43). Como exemplos de subgêneros cinematográficos ele lista os filmes épicos, o filme-catástrofe, capa e espada, de artes marciais, metafilmes (que falam sobre o fazer cinema), de gângsteres, teen movies, buddy film (sobre amizades entre personagens masculinas), o blockbuster, o remake, o pastiche, o filme coletivo, o home-movie, western-spaghetti, road movies, de aventuras, o kammerspiel (com poucas personagens e pouca ação), filmes de tribunal e de prisão, o cinema trash, entre outros tantos.

3.1 Gênero ação

O filme de ação é um gênero contemporâneo de entretenimento e de grande apelo popular e sucesso comercial, mas ainda maior desdém crítico (Nogueira, 2010). Este gênero tende a privilegiar os valores de produção: atores famosos, efeitos especiais, cenários suntuosos, exóticos ou grandiosos, capazes de provocar até mesmo o escapismo e, é claro, muitas explosões, tiroteios e lutas.

De um ponto de vista narrativo, uma série de situações são trabalhadas recorrentemente, sobretudo as cenas e sequências de intensa acção, entre as quais se contam perseguições vertiginosas, batalhas grandiosas, duelos contundentes ou explosões exuberantes. Os heróis e os vilões são claramente caracterizados e contrapostos, recorrendo muitas vezes a soluções de fácil descodificação semiótica, como a indumentária ou a própria fisionomia. De um ponto de vista ético, o simplismo e o maniqueísmo tendem a prevalecer, deixando pouco espaço para uma caracterização densa, ambígua ou complexa das personagens. Daí que possamos afirmar que a personagem tende a estar ao serviço da acção. (Nogueira, 2010, p.18).

Quanto á morfologia, o autor identifica a seguinte fórmula: ritmo trepidante de montagem, utilização de música como acento e definição de tom para cada momento da narrativa ou de personagem e o uso da fotografia como auxiliar na decodificação da narrativa.

3.2 Gênero dramático

Se originalmente a palavra drama indica ação, nos gêneros cinematográficos ela vai em direção oposta. Como afirma Nogueira (2010, p.23), sua principal qualidade é emotiva:

O seu objecto é o ser humano comum, normal, em situações quotidianas mais ou menos complexas, mas sempre com grandes implicações afectivas ou causadoras de inescapável polémica social. Ao contrário da comédia, que sublinhas as fragilidades ou vícios do ser humano, e da tragédia, que sublinha a sua elevação e as suas virtudes, o drama aborda, portanto, a vivência mais prosaica do sujeito vulgar, mas explorando as suas consequências emocionais mais inusitadas e profundas.

O autor aponta os principais tipos de Drama presentes no cinema: o drama social, que coloca as personagens em confronto com uma visão de mundo; o drama bélico, com cenários de elevada violência como são as guerras; o drama psicológico, que põe a personagem em confronto com ela mesma; o drama romântico, sobre relações afetivas; o drama familiar, geralmente sobre conflitos de gerações; o drama político, seja ele histórico ou não; e o biopic, retrato ficcionado de uma determinada pessoa. Em A Festa de Babette, enquadraríamos o filme em um drama social.

 

4. Metodologia

Para a análise do filme A festa de Babette, utilizamos duas técnicas distintas que convergem em uma só análise – a análise de imagens em movimento, como propõe Rose (2002), e a análise fílmica, como propõe Martin (2011).

A análise da imagem em movimento divide os recursos presentes em um filme, como sugere Bernstein (apud Rose, 2002), em dois elementos – L1, o texto; e L2, o referencial de codificação. Neste caso, o L se refere à linguagem. Para compor L1 nossa análise será de conteúdo e suas relações com seu entorno; para compor L2, usaremos a análise fílmica. A análise final está na relação dos seus elementos, e não apenas em um e outro.

Para compor a análise fílmica, escolhemos alguns elementos mais significativos no caso do filme em estudo. Passamos pela análise do som, segundo Martin (2011, p.22), “um elemento decisivo da imagem pela dimensão que lhe acrescenta, ao restituir o ambiente dos seres e das coisas que percebemos na vida real”; e ainda pelo conceito de montagem ideológica, e as relações que se estabelecem entre a palavra e a imagem: “a generalização se opera na consciência do espectador, a quem as ideias são sugeridas com uma força singular e uma inequívoca precisão pelo choque das imagens entre si” Martin (idem, 2011, p.33). Esse último conceito estará presente na decupagem clássica e na relação entre planos, ângulos, enquadramentos e movimentos.

                           

5. O enredo do filme

O filme A Festa de Babette é a adaptação para o cinema de um conto de Isak Dinesen, pseudônimo masculino de Karen Blixen, autora de outros textos adaptados, como o filme Out of Africa (em português, Entre dois amores), dirigido por Sidney Pollack, em 1985. Este, dirigido por Gabriel Axel em 1987, inicia com um grande plano geral, que se amplia ainda mais com o zoom out que revela uma paisagem campestre com simplicidade, mas desolação.  Outros detalhes vão se revelando, como peixes que secam ao ar livre, que servirão de moldura, após uma panorâmica e outro zoom, desta vez convergindo para duas velhas senhoras que caminham juntas.

A trilha sonora, um dedilhar de piano, denota um ritmo lento no vilarejo. Tudo é confirmado com uma narradora, ao estilo “voz de Deus”, que anuncia o lugar remoto e duas irmãs que lá vivem, “já longe de sua juventude” – Martina e Filippa. Nesta afirmação, o roteiro demonstra mais um traço de delicadeza (não são velhas, estão longe da juventude. O vilarejo é composto de velhos e a narração avisa que o falecido pai das duas protagonistas era líder de uma seita protestante.

O plano geral, assim como o close up e o primeiro plano, é detentor de significado psicológico, ao contrário dos demais, descritivos (Martin, 2011, p.40). Neste caso, aliados aos detalhes que apontam para a vida simplória (casas, vestes, hábitos), quer mostrar solidão, despojamento. O estilo de narração também colabora para a noção de afastamento – ela não participa da ação, a acompanha a distância.

Mas, eis que se anuncia que as irmãs têm uma criada francesa – incompatível para o estilo de vida que se demonstrou até então por palavras, figurinos e cenário. Aí, se faz necessária a explicação, o que leva a um passado distante, um cutback direto para a juventude delas. Segundo Xavier (1983, pp. 37-38), psicologicamente, o cutback representa o ato mental de lembrar: “É como se a realidade fosse despojada da própria relação de continuidade para atender às exigências do espírito. É como se o próprio mundo exterior se amoldasse às inconstâncias da atenção ou às ideias que nos vêm da memória”.

A criada, Babette Hersant, de olhar penetrante e desafiador ao espectador, só será justificada após longos anos em que jovens tentam se aproximar, mas a fé cega dos seguidores ao poder dominador do líder da seita, pai das protagonistas, afasta um a um. Primeiro dois jovens, personagens ilustrativos, não seguirão na trama, depois um militar desmazelado, Lorens Löwenhielm, que se apaixona por Martina; e ainda um ator francês, Achille Papin, em conflito, que cai de amores por Filippa. Esses elementos, as personagens do militar e do ator, são a costura fina que a narrativa dá para justificar posteriormente a chegada de Babette.

Nessas sequências, um conflito se estabelece – sempre que alguém vem de fora, tem as vestes coloridas, anda ao sol. Ao contrário, no vilarejo remoto, tudo é cinzento, nublado, paredes sujas, as vestes são humildes, escuras como o ambiente. O contraste delicadamente delineado, é acrescido em alguns trechos da narrativa por diálogos reiterativos – é o caso do militar, que se diz insignificante diante da pureza da vida que ele conhece ali (e se retira), pois antes vivia de forma mais selvagem; e ainda do ator, que, desolado, reacende sua paixão pelas artes quando o canto de Filippa é comparado à imagem de Jesus, iluminada pelos raios de sol na parede.

A figura de Babette surge nesse cenário, em uma noite chuvosa para a surpresa das irmãs Martina e Filippa. Elas conduzem sua vida simples quando alguém chega, andando com dificuldade, trajando uma capa que no escuro não revela a cor – mais tarde, em planos mais fechados, veremos que é vermelha, colorida, característica no filme de quem vem de fora do vilarejo, e que a personagem parece desesperada.

É no auge da emoção no palco que o espectador de teatro recorre aos binóculos para captar a sutil emoção dos lábios, a paixão ou o terror expressos no olhar, o tremor das faces. Na tela, a ampliação por meio do close-up acentua ao máximo a ação emocional do rosto, podendo também destacar o movimento das mãos, onde a raiva e a fúria, o amor ou o ciúme, falam em linguagem inconfundível (Xavier, 1983, p.47).

Ela traz uma carta de Papin, explica que foge da repressão à Comuna de Paris (em 1871) e suplica para ficar mesmo sem pagamento – as irmãs vivem uma vida modesta, não poderiam arcar com seu pagamento. Essa chegada vai transformar lentamente a vida de todos e de cada um do vilarejo, não somente das irmãs.

A primeira transformação é na comida – as irmãs preparavam para comer e servir aos mais velhos e incapacitados, um mingau de pão e cerveja, escuro, marrom, pegajoso. Babette cozinha para a aprovação de todos, pechincha nas compras (as irmãs revelam que passaram a economizar depois de sua chegada), lava as janelas (ato significativo, símbolo de renovação, nova visão). Assim, nesta nova vida, a narrativa revela que se passaram 14 anos desde aquela noite chuvosa em que a francesa chegou. Há uma espécie de simbiose – os ambientes se tornam mais claros, as pessoas interagem mais; mas, Babette também absorve um pouco das características daquela vida simples, o que está expresso no seu figurino. Ela revela que somente um fator ainda a liga a Paris – um bilhete de loteria, renovado todo o ano por um amigo.

As relações mudam no vilarejo – antes praguejavam, se agrediam verbalmente, viam o pior, apesar da devoção religiosa. Após o toque de Babette, voltam a enaltecer o eterno, pedem que olhem para o céu, falam em luz eterna. Mas, em suas reuniões religiosas, a ausência do líder, morto há muito tempo, prevalece na rispidez com que se tratam. Mais um traço da delicadeza da narrativa – as palavras de fé contrastam com as atitudes de intolerância e desacordo em vez de paz e irmandade.

Essas reações são provocadas na audiência por meio de técnicas do cinema. Segundo Xavier (1983, p.160), são elas:

Mobilidade da câmera; Sucessão de planos; Procura do elemento comovente; Aceleração; Ritmos, tempos; Música; Assimilação de um meio ou de uma situação por preensão Envolvências (movimentos e posições da câmera); Lentidão e esmagamento do tempo; Fascinação macroscópica (primeiro plano); Iluminação – sombras e luzes; Ângulos de filmagem – plongée, contre-plongée, etc.

Um mensageiro de fora do vilarejo, com roupas coloridas –vermelho e amarelo berrantes– traz uma mensagem para Babette sobre seu bilhete de loteria –ela ganhara dez mil francos. A câmera sempre acompanha lentamente os movimentos de chegada e de partida desses viajantes – como um olhar ansioso, vê lentamente partir, em plano médio e se afastando em movimento de zoom até um grande plano geral, mais uma vez, expressão de solidão. As irmãs preveem que “tinha que acontecer – o Senhor nos deu, o Senhor nos tirou” e se resignam à vida sem alegrias que tinham antes da chegada de sua empregada.

Ao contrário, chega o esperado grande desfecho da história (que o próprio título anuncia) – Babette anuncia que pretende dar um jantar em homenagem ao centenário de nascimento do pai das duas senhoras, o fundador da seita religiosa. Com relutância, elas aceitam a oferta e veem a criada partir à França para após um período de afastamento (quando todos sentem sua falta, principalmente na comida), ela retorna com muitas caixas de alimentos estranhos àquela vida que levavam. Imediatamente são identificados pelo grupo de idosos como algo demoníaco.

Essa ideia é mais conduzida à significação do que dita: está nos closes de animais mortos acompanhados de trilhas impactantes; nos objetos de corte e manipulação; nas garrafas que se empilham na pequena cozinha.  A montagem e a decupagem das cenas oferecem a ideia de uma Babette demoníaca. A mesma ação que foi mostrada com suavidade e alegria no princípio da trama, é conduzida como algo que representa o mal, no pensamento das velhas senhoras.

A atitude escolhida pelo grupo de religiosos é negar o prazer que lhes foi ofertado. Rezam e cantam em roda, como crianças. Suas expressões são infantis apesar da velhice. Em toda a mise em scène, há uma delicadeza expressa em detalhes feitos para não serem percebidos – inclusive na atuação, sem gestos teatrais exagerados, na leveza do cotidiano expresso. No texto, mais um reforço – pedem misericórdia ao pai: “é como se ele estivesse nos vendo”. Começa o banquete, a festa de Babette.

5.1. A festa

O figurino escolhido pelos convidados da festa é preto, mais elegante que o habitual, porém expressa simplicidade, sobriedade, um luto permanente pela morte do patriarca religioso. O único a vestir cores mais chamativas é o convidado de fora do vilarejo – o outrora jovem militar e então general. Ele é também o único a dominar as práticas da boa mesa (etiqueta) e a expressar o prazer que a comida refinada o proporcionava.

Os demais o imitam, mas ao se surpreenderem com a comida, bebem e apreciam, mas mais uma vez depreciam em palavras. Um exemplo é quando servem o champanhe: “deve ser uma espécie de gasosa”. Para tirar a centralidade dos prazeres carnais, ali representados pelos alimentos, vão relembrando a vida e as obras do pastor enquanto comem e bebem.

Todos repetem em coro um verso que funciona como um mantra – “que meu corpo se alimente hoje, que meu corpo seja escravo de minha alma, que minha alma avance para a glória do Senhor”. De forma sutil, eles reafirmam o poder de sedução dos prazeres oferecidos naquele banquete desconhecido de todos, exceto o general, que reconhece sua procedência por um prato em especial - Cailles au Sarcofage (Codorna no Sarcófago), servido por uma chef em Paris, “capaz de transformar um jantar em um caso de amor, uma relação de paixão, impossível de diferenciar o apetite físico do espiritual”. As feições e as reações vão mudando conforme o jantar se desenrola – de cenhos fechados a sorrisos primeiro tímidos e, depois, francamente abertos.

O general, então, discursa sobre as escolhas que fazemos na vida, mas reafirma sua pouca importância, “um dia a graça chega”, diz em tom religioso. A partir desse momento, até as conversas mudam – não se agridem, se desculpam, confessam erros, perdoam, sorriem, abençoam, acariciam, beijam-se. O prazer agora é expresso em cada gesto, cada atitude – lamber os lábios após uma garfada ou gole, por exemplo.

As despedidas também expressam delicadeza – o general e Filippa dão adeus em uma cena sem cortes, com delicadas movimentações em pans sutis e lentas. “Todos os dias me sentarei para jantar com você –diz ele a Filippa– não com o corpo, que não importa... tudo é possível”.

O filme se encerra com todos se agradando, elogiando o jantar, sorrindo e, como crianças felizes, os idosos dançam de roda à luz do luar. Babette revela então que não vai embora, gastou tudo no jantar e vai ficar. Ela diz, de outra forma, que agora pertence àquele lugar e que “uma artista nunca é pobre”. Ela e as irmãs de abraçam, pensam na vida eterna, e uma vela se apaga.

 

6. Considerações

A produção de narrativas compostas pelo texto original, pelo texto adaptado para o cinema, a decupagem clássica (por vezes invisível) e suas nuances remetem a audiência a um ritmo poético, estético. É como se fôssemos levados, por essas técnicas, a ver o mundo do pequeno vilarejo de Berlevaag como os autores querem nos fazer ver. Não há lição de moral nas narrativas de A festa de Babette, mas uma unidade que provoca um sentido de responsabilidade.

Não nos é dito para viver simplesmente, para não ser tão rígido, para não se deter em escolhas sem sentido, para aproveitar as coisas boas da vida, mas optar pela simplicidade. Mas tudo isso está dito nos planos, nos enquadramentos, nos movimentos, nos silêncios, em palavras paralelas.

Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com a minha vida pra que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos. . . Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade. (Bakhtin, 2003 pp. 1-2).

Há neste filme uma estética do não dito, ou do que foi dito de forma transversal – não há o óbvio, o que se deve dizer está expresso de outras maneiras: na música, na falta dela, nas locações e cenários, em sua delicadeza e em todas as suas significações.

A música não é mais música, é um caminho, uma viagem, um destino, um espaço, um ambiente, este ou outro. Nada de especial. Um lugar onde se pode morar. Uma pausa. Um porto. Uma paisagem. A paisagem redime o sujeito. A paisagem não fala de si. A paisagem não é expressão, é impressão. Frágil marca. A paisagem não precisa de porquês, nem de espectadores distantes. Exige pertencimento, naufrágio, não mais ser, dissolver (Lopes, 2003, p.93).

 

Referências

Axel, G. (1987). Babettes gæs tebud. Dinamarca: Estúdio Panorama.

Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.

Barros, M. de (1997). Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record.

Chiara, Ana (2005). No mês do cavalo. In: Deleuze G.; Guattari, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34.

Deleuze, G. (1997). A filosofia crítica de Kant. Lisboa: Edições 70.

Fischer, S.; Caetano, K. (2015). “ELA, NÓS: tecnologia, afeto e sociabilidades na contemporaneidade”. Anais do 24º Encontro Nacional Compós, GT Práticas Interacionais e Linguagens na Comunicação. Unb – Brasília, DF.

Gualandi, A. (2003). Deleuze. São Paulo: Estação Liberdade.

Lopes, D. (2003). Da música Pop à música como paisagem. Eco Pós, RJ, v.6, nº 2, pp. 86-94.

Lopes, D. (2007). A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: UnB.

Martin, M. (2011). A linguagem cinematográfica. SP: Brasiliense.

Nogueira, L. (2010). Gêneros Cinematográficos. Covilhã-Portugal: Labcom Books.

Orlandi, E. P. (2007). As formas do silêncio. Campinas. Editora da Unicamp.

Pais, J. M. (1986). Paradigmas sociológicos na análise da vida quotidiana. Revista Análise Social, vol. XXII (90), 1.°, 7-57.

Rose, D. (2002). Análise de Imagens em Movimento. In Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – um manual prático. Petrópolis-RJ: Vozes.

Xavier, Ismail (org.) (1983). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal.

 

   

Cómo citar: Seligman, L. (2016). “Expressões do sublime e da delicadeza nas narrativas do filme A festa de Babette?”. Fotocinema. Revista científica de cine y fotografía, 13, pp. 249-265. Disponible: http://www.revistafotocinema.com/

 

 


[1] Aqui tomamos esfera pública como o conceito de Habermas