A INVENÇÃO DA PAISAGEM NA FOTOGRAFIA DE CLAUDIA JAGUARIBE
LA INVENCIÓN DEL PAISAJE EN LA FOTOGRAFÍA DE CLAUDIA JAGUARIBE
THE INVENTION OF LANDSCAPE IN THE PHOTOGRAPH BY CLAUDIA JAGUARIBE
Fernando Gonçalves
Universidade do Estado do Rio de Janeioro, Brasil
goncalvesfernandon@gmail.com
Resumo:
Este artigo tem como tema a construção da paisagem urbana nas séries fotográficas Entre Morros (2010) e Sobre São Paulo (2011) da artista visual brasileira Claudia Jaguaribe. A análise formal e visual desses trabalhos pretende evidenciar tanto as discussões propostas por Jaguaribe sobre a mudança nas paisagens naturais e construídas quanto os procedimentos por meio dos quais a artista faz a imagem enunciar de outra forma um real, problematizando a paisagem como representação nas histórias da pintura e da fotografia. Essa análise se dará no contexto de duas discussões relevantes hoje no campo da comunicação e da arte: o regime de imagens que deixa de ter na mímese seu regulador enunciativo e a questão da paisagem como representação da experiência de lugar na fotografia contemporânea. Com base nas atuais teorias da paisagem nas histórias da arte e da fotografia e na geografia cultural, o texto buscará vincular a produção da artista à construção das imagens de paisagem na pintura e na fotografia através dos panoramas e das fotomontagens pictorialistas. Com isso, espera-se demonstrar como desde o século XIX a paisagem já emerge como problemática de representação, antecipando algumas das questões colocadas pela arte contemporânea.
Abstract:
This article discusses the construction of the landscape in the photographic series Entre Morros (2010) and Over São Paulo (2011) by Brazilian visual artist Claudia Jaguaribe. The formal and visual analysis of these works intends to highlight the discussions proposed by Jaguaribe on the change in the natural and constructed landscapes and the procedures by means of which the artist makes the image enunciate otherwise the real and problematize the landscape as representation in either the story of the painting and of photography. Such analysis will be held in the context of two relevant discussions in the fields of communication and of art today: the regime of images in which mimesis is no longer a major enunciative regulator and the landscape as a problem of representation of space in contemporary photography. Based on contemporaries theories of landscape in art history, history of photography and in cultural geography, the text will seek to link the artist's production to the construction of landscape images in painting and photography through the panoramas and pictorialists' photomontage. In so doing, I intend to demonstrate how landscape emerges as a problem of representation since the nineteenth century, anticipating some of the issues raised by contemporary art.
Resumen:
Este artículo tiene como tema la construcción del paisaje en las series fotográficas Entre Morros" (2010) y Sobre São Paulo (2011), de la artista visual brasileña Claudia Jaguaribe. A través de análisis formales y visuales de las imágenes de la ocupación espacial de los morros en Río de Janeiro y de la arquitectura vertical de São Paulo en esas series, se pretende evidenciar las discusiones propuestas por Jaguaribe sobre el cambio en los paisajes naturales y construidas y sobre los procedimientos por medio de los cuales la artista hace la imagen enunciar de otra forma un real, problematizando el paisaje como representación en las historias de la pintura y de la fotografía. El texto mostrará como para la artista el paisaje en la fotografía es un espacio de constitución de imaginarios estéticos y políticos. Al mismo tiempo, evidenciará cómo la materialidad de sus obras cuestiona la propia naturaleza de la imagen, incluso al tornar complejos los formatos tradicionales de la fotografía a través de la fotoinstalación. Como veremos, sus trabajos están marcados por una mezcla de la imagen documental con la creación visual por medio de manipulaciones digitales, permitiendo que sus producciones subviertan las fronteras rígidas entre real y ficcional y favorezcan el entendimiento de la fotografía como construcción narrativa y histórica. En sus series de paisajes urbanos interesa a Jaguaribe realizar una crítica de la representación en la fotografía a través del uso del collage digital para crear paisajes imposibles pero que parecen reales. Este juego entre lo real y lo inventado, que alude al real y lo supera, es parte de su interés en la fotografía como forma de reflexionar sobre las mutaciones en el paisaje a partir de la presencia del humano. Al mismo tiempo, su investigación sobre el paisaje es también una reflexión sobre la propia fotografía y sus códigos visuales de representación. El análisis de estos trabajos se dará en el contexto de dos discusiones relevantes en el campo de la comunicación y del arte: el régimen de las imágenes que deja de tener la mímesis como regulador enunciativo y la cuestión del paisaje como problema de representación del lugar en la fotografía contemporánea. Basándose en las actuales teorías del paisaje en la historia del arte y de la fotografía y de la geografía cultural, el texto buscará vincular la producción de la artista a la construcción de las imágenes de paisaje en la pintura y en la fotografía a través de los panoramas y de las fotomontajes pictorialistas. Con ello, se espera demostrar como desde el siglo XIX el paisaje emerge ya como problemática de representación, anticipando algunas de las cuestiones planteadas por el arte contemporáneo. Así, en un primer momento, el texto analizará las tensiones que están en el origen de la pintura y de la fotografía de paisaje en la historia del arte, para luego demostrar cómo la construcción de imagen en los trabajos de Jaguaribe necesita ser vista con una relectura crítica de esas tradiciones y, una reflexión más profunda sobre la naturaleza de la imagen y de la representación hechas en el marco de la fotografía contemporánea, de la historia del arte y de la geografía cultural.
Palavras-chave: Paisagem; Arte contemporânea; Crise da representação; História da Arte. História da Fotografia.
Palabras clave: paisaje; arte contemporáneo; crisis de la representación; História del Arte; História de la Fotografía.
Keywords: Landscape; Contemporary art; Crises of represention; Art History; History of Photograph.
Cómo citar: Gonçalves, F. (2018). A invenção da paisagem na fotografia de Claudia Jaguaribe. Fotocinema. Revista científica de cine y fotografía, nº 16, pp. 103-125. Disponible: http://www.revistas.uma.es/index.php/fotocinema/ |
1. Introdução
Este texto pretende analisar as séries fotográficas de paisagens urbanas Entre Morros e Sobre São Paulo, da artista brasileira Claudia Jaguaribe, dos pontos de vista do valor e da função do documento visual na fotografia contemporânea[1] (Poivert, 2010, p.12) e da noção de paisagem como uma construção cultural, histórica e narrativa[2] (Cauquelin, 2009, p. 35).
Através de uma análise formal e visual das imagens da ocupação espacial dos morros no Rio de Janeiro e da arquitetura vertical de São Paulo, pretende-se evidenciar tanto as discussões propostas por Jaguaribe sobre a mudança nas paisagens naturais e construídas quanto os procedimentos por meio dos quais a artista faz a imagem enunciar de outra forma um real, problematizando a paisagem como representação nas histórias da pintura e da fotografia.
Claudia Jaguaribe nasceu no Rio de Janeiro e vive em São Paulo desde 1990. Formou-se em História da Arte, Artes Plásticas e Fotografia pela Universidade de Boston. Jaguaribe discute a paisagem na fotografia como espaço de constituição de imaginários estéticos e políticos. Ao mesmo tempo, a materialidade de suas obras questiona a própria natureza da imagem fotográfica, ao complexificar, por vezes, os formatos tradicionais da fotografia através da instalação, da escultura e do uso do vídeo e da internet. Como veremos, seus trabalhos são marcados pela mistura da imagem documental com a criação visual por meio de manipulações digitais, permitindo que suas produções subvertam as fronteiras rígidas entre real e ficcional e favoreçam o entendimento da fotografia como construção narrativa e histórica.
Suas obras estão em diversos museus e coleções brasileiras e internacionais, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo, Inhotim – Instituto de Arte Contemporâneo/Brumadinho, em Minas Gerais, na Maison Européene de la Photographie, em Paris, e Instituto Ítalo Latino Americano, em Roma. Desde 2014, Jaguaribe integra o “The World Atlas of Street Photography” (www.claudiajaguaribe.com.br), ao lado de Wim Wenders, Thomas Ruff, Joel Meyerowitz, Phillip-Lorca Di Corcia, Jeff Wall, Alex Webb e de outro brasileiro, Cassio Vasconcelos.
Uma importante característica de seu trabalho é o diálogo que esta estabelece entre a representação da paisagem na história da arte e a ideia que fazemos de paisagem natural e urbana. Tanto em séries sobre paisagens urbanas, como as que vamos analisar aqui, quanto sobre a paisagem natural, como Quando eu vi (2007), interessa a Jaguaribe realizar uma crítica da representação na fotografia através do uso da colagem digital para criar paisagens impossíveis que parecerem reais. Esse jogo entre o real e o inventado, que alude o real e o ultrapassa, faz parte de seu interesse na fotografia como forma de refletir sobre as mutações na paisagem a partir da presença do humano. Ao mesmo tempo, sua investigação sobre a paisagem é também uma reflexão sobre a própria fotografia e seus códigos visuais de representação.
Assim como diversos pesquisadores da história da arte e da geografia cultural entendem atualmente a “paisagem” não como um simples lugar, mas como uma figura que confere sentido e valor ao lugar, Jaguaribe se interessa por explorar os processos de construção da paisagem na fotografia como espaço de representação. Tais discussões são relevantes no contexto da fotografia contemporânea, onde a imagem importa menos como conteúdo ou atestação de um real e mais como matéria estética e expressiva com a qual podemos refletir sobre nossos modos de ver e de mostrar as coisas do mundo.
Como veremos, as séries Entre Morros e Sobre São Paulo consistem, respectivamente, em vistas panorâmicas de favelas do Rio de Janeiro e da massa de prédios da cidade de São Paulo. Numa primeira mirada, as imagens parecem nos informar sobre a ocupação desordenada de muitos morros cariocas e sobre o crescimento e a ocupação vertiginosa da capital paulistana. Mas não é preciso ter estado nesses lugares ou conhecê-los bem para perceber que há algo estranho ali. Um olhar atento perceberá que, embora verossímeis, tais imagens são, na realidade, fotomontagens digitais, cujos rastros sutis de manipulação são deixados à mostra pela artista. Como veremos, nos trabalhos de Jaguaribe, o jogo que alude o real e o ultrapassa faz parte de seu interesse pela vida dos lugares. Mas por meio da confusão entre real e ficcional, ela discute também os modelos clássicos de representação da paisagem através dos panoramas e da fotomontagem do século XIX.
Assim, em um primeiro momento, o texto analisará as tensões que estão na origem da pintura e da fotografia de paisagem na história da arte, para em seguida demonstrar como a construção de imagem em seus trabalhos precisa ser vista com uma releitura crítica dessas tradições e uma reflexão mais profunda sobre a natureza da imagem e da representação feitas no âmbito da fotografia contemporânea, da história da arte e da geografia cultural.
A análise dos trabalhos será cotejada com as análises históricas e teóricas feitas na primeira parte e serão articuladas com as discussões sobre os usos da fotomontagem no século XIX, como uma forma precursora de pensar a imagem como representação e artefato sociotécnico[3] e não duplo ou traço do real na fotografia contemporânea.
2 Fotografia contemporânea e a paisagem como invenção de experiência de lugar
Ao analisar os regimes de atenção no século XIX, Jonathan Crary (2012, p. 14) já havia indicado como as máquinas de visão que antecederam a fotografia implicavam uma continuidade com o paradigma da câmera obscura, descentrado do indivíduo, que fazia da visão uma experiência neutra e objetiva, criando as condições de percepção do sujeito moderno. Também Peter Galassi (1981, p.12), ao confrontar a história da fotografia com a da pintura, demonstrou como frequentemente a fotografia deu continuidade ao projeto de figuração naturalista e mimética da pintura acadêmica, inscrita nesse mesmo paradigma e no da perspectiva renascentista.
A crise de tais modelos já no final do século XIX aponta para o que historiadores da fotografia como Michel Poivert consideram outras formas de sensibilidade visual e perceptiva, particularmente no tocante as fotografias documental. Um sinal dessas mudanças seria a legitimação da fotografia como “arte” a partir dos anos 1970 e o tratamento dado pelo fotojornalismo a certos temas como guerra, dor e miséria, referenciados por códigos visuais da História da Arte, como a célebre imagem de George Mérillion, de 1990, que ficou conhecida como a “pietá de Kosovo” e recebeu o prêmio de melhor fotografia no World Press Photo de 1991. Ou também a “madona de Bentalha”, de Hocine Zaourar, de 1997, como observa Poivert (2010, p. 77).
É quando a fotografia documental e “de informação” passam a ser concebidas também, sobretudo a partir dos anos 1980, como fato “cultural” e não apenas “técnico”. Não que a imagem tenha perdido seu caráter informativo ou documental, mas compreende-se que com a imagem o que se faz não é mostrar um fato em si, mas construí-lo por meio de uma narrativa codificada que tende a nos fazer olhar para a imagem como conteúdo visual e não como representação.
Poivert afirma que uma das características da fotografia contemporânea seria não propor uma revelação do mundo, mas “a evidência do caráter artificial de sua construção” (Poivert, 2010, p. 225). É nesse sentido que a ideia de uma fotografia contemporânea não condiz com uma fotografia feita “no presente”[4], mas com aquela que se caracteriza pelo estabelecimento de uma relação de distância com o presente, com a qual seja possível relê-lo “a contrapelo”.
Essa releitura crítica do presente pode ser vista na fotografia contemporânea através de uma operação que o historiador de arte francês Didi-Huberman (2015, p.131) chamou de “montagem”. A montagem pode ser entendida como um método de construção do conhecimento que agrupa elementos heterogêneos e aparentemente desconexos para fazer entrever relações subjacentes existentes entre eles e retraçar uma “imagem” maior e mais densa dessas relações, que só fazem sentido juntas e relacionadas entre si de um determinado modo.
Neste sentido, não é por acaso que a paisagem é um dos temas mais recorrentes na fotografia contemporânea. Os artistas se interessam pelos espaços urbanos e pela natureza, pela arquitetura e pelos interiores como uma forma de discutir como tais espaços participam da organização de nossos modos de vida em sociedade.
Para Anne Cauquelin (2009, p. 38) é como tema na arte que a paisagem aponta, desde o Renascimento, para usos de códigos e convenções que a fazem coincidir com uma noção idealizada de “natureza”, por oposição à artificialidade da ação humana. Mitchell (2002, p. 9) vai um pouco além, mostrando como esta natureza idealizada vai ser retratada na pintura renascentista não apenas como alegoria religiosa, mas como fenômeno da modernidade européia, atrelado também às representações coloniais de identidade e alteridade através de imagens pitorescas e idílicas. Provavelmente por isso, o geógrafo Denis Cosgrove (2008, p. 23), considera a paisagem como formação social e simbólica, que reitera usos e práticas do mundo físico na forma de um “território” narrado e imaginado.
São destes pontos de vista que nos interessa pensar a construção da paisagem na pintura e da fotografia e também nos trabalhos de Claudia Jaguaribe. Como sabemos, a fotografia no século XIX foi contemporânea da pintura acadêmica, que para legitimar uma imagem como arte (ou belas artes), fundamentava-se em noções como proporção, escala e perspectiva, de modo a conferir à imagem um caráter naturalístico e mimético. Seria em atrito com o regime enunciativo chamado por Rancière (2009, p. 31) de “regime poético ou representativo das artes”, baseado na mímese, que as experiências da fotografia contemporânea, como as de Jaguaribe, estariam entrando.
Mas a questão da codificação e da representação da paisagem na fotografia pode também ser percebida em análises onde a referência à pintura não aparece diretamente. Em sua pequena história das experiências de contemplação dos lugares na fotografia moderna, Maurício Lissovsky (2011, p. 283) identifica duas operações utilizadas para produzir as vistas dos lugares entre o final do século XIX até meados do século XX: o apagamento do ponto de vista e da duração na produção da imagem e o apagamento dos rastros desse apagamento. O que resulta de tais operações são duas formas de representação que se opõem, reificando as modernas dicotomias “objetivo x subjetivo”, “real x ficcional” e “arte x não-arte” na fotografia: a primeira, a de uma paisagem natural idealizada, intocada e icônica, como vemos sobretudo em Ansel Adams; e a segunda, a paisagem como resultante de uma transformação do lugar em “pura forma” por uma uma afecção subjetiva entre fotógrafo e seu motivo, como vemos, por exemplo, em Edward Weston.
Para Lissovsky (2011, p. 291), a fotografia contemporânea de paisagem reintroduziria na imagem o ponto de vista, a passagem do tempo e os rastros da fabricação da imagem. Essa abordagem é consistente com a do crítico de arte Michael Fried (2012, p. 188) para quem a fotografia contemporânea irá incorporar elementos recorrentes nos debates sobre a representação pictórica na história da arte. Em artistas como Jeff Wall, por exemplo, vemos a questão da teatralidade e da citação; em Candida Hoffer e Thomas Struth, vemos a questão da objetividade e da tipologização, num jogo com os princípios da figuração naturalista; em Andreas Gursky, vemos as relações entre homem e sociedade, nas formas de ocupação dos espaços de produção e de consumo; em Marc Baruth, a oposição entre natural e ficcional como convenções em suas colagens visuais.
O que todos esses artistas têm em comum é que tais elementos não são utilizados para legitimar os motivos da imagem, mas para discutir a produção de valor e de significado conferido a esses motivos. Essa atitude diante da imagem fundamenta boa parte das estratégias estéticas e visuais da fotografia contemporânea e aponta para as continuidades e descontinuidades históricas e conceituais na experiência de produção da imagem e de nossos modos de ver. Essas continuidades e descontinuidades podem ser melhor entendidas por meio duas noções desenvolvidas por Didi-Huberman. A primeira é a de “anacronismo”, que ele definiu como a "persistência de traços de outras temporalidades que se sobrepõem no presente" (Didi-Huberman, 2015, p. 38). O anacronismo em Didi-Huberman pode ser considerado como uma abordagem de análise de imagens que permite não apenas cartografar nossas relações com a história como também perceber a inatualidade de nosso próprio presente. Para o autor, a imagem “não é a imitação das coisas, mas o intervalo feito visível, a linha de fratura entre as coisas” (Didi-Huberman, 2015, p. 126). Neste tipo de abordagem, a imagem é entendida como aquilo que resulta de um trabalho de organização/ordenamento de elementos heterogêneos e descontínuos e de sua recomposição estrutural. E aqui entra o segundo conceito, o de “montagem”, que implica uma operacionalização da noção de anacronismo.
Ao realizar suas “arqueologias visuais” de obras pictóricas e audiovisuais e análises de fotografias, Didi-Huberman (2015, p. 131) não busca entender o significado das imagens ou suas origens, mas as lógicas de enunciação nas quais elas se inscrevem e o papel que desempenham num determinado sistema de representação e de ordenamento da visão e da percepção. Nesse sentido, o conceito de “montagem”, inspirado no conceito de alegoria em Benjamin (2011, p. 171) designa um método de construção do conhecimento baseado em imagens que agrupam elementos heterogêneos e aparentemente desconexos para fazer entrever relações subjacentes existentes entre eles e retraçar uma “imagem” maior e mais densa dessas relações, que só fazem sentido juntas e relacionadas entre si de um determinado modo.
Apoiadas metodologicamente nessas abordagens, as análises das séries de Jaguaribe buscarão evidenciar como as imagens, os recursos e os procedimentos estéticos empregados em seus trabalhos atualizam e discutem modelos de visão e modos de representação da paisagem na pintura e na fotografia do século do XIX para construir suas paisagens no presente, através dos usos dos panoramas e das fotomontagens.
3 Operações anacrônicas
Na série Entre Morros, de 2010, Jaguaribe discute as relações entre natureza e espaço urbano no Rio de Janeiro. Para a artista, as imagens investigam como precárias intervenções arquitetônicas nos morros do Rio mudaram em pouco mais de cem anos a fisionomia da cidade. A artista percorreu diversas favelas em “moto-taxis” e sobrevoou com helicópteros morros da zona sul carioca para realizar vistas aéreas, sendo onze panoramas verticais medindo 1,80m x 1,10m e três panoramas horizontais de 1,10m x 2,59m.
Até aí, nenhuma novidade. O fotógrafo franco-brasileiro Marc Ferrez já havia construído as primeiras vistas panorâmicas do Rio no final do século XIX, que até hoje são um marco na documentação visual histórica da cidade. Mas quando se observa atentamente as imagens da série, percebe-se que os panoramas construídos pela artista são bem pouco convencionais. Trata-se de imagens construídas a partir da documentação de lugares e depois montadas digitalmente para parecerem verossímeis, com a particularidade de exibirem os traços dessa manipulação (F 1)[5].
F1. Série Entre Morros #8. Claudia Jaguaribe, 2010.
Mas, antes mesmo de perceber esse e outros traços, como o uso de contrastes e saturação das cores, chama a atenção as grandes dimensões das imagens e principalmente a orientação vertical da maioria delas na série. Normalmente, as imagens de paisagens, tanto na pintura quanto na fotografia, costumam ser representadas horizontalmente para ampliar o campo de visão lateral e dar à imagem uma impressão de profundidade, por meio da perspectiva. O mesmo ocorre nos panoramas, que dão uma impressão visual de imersão e de totalidade por seu grande formato e pela visão lateral ainda mais extensa. Como observou o crítico de fotografia Sergio Burgi, se, por um lado, as referências aos panoramas de Marc Ferrez são claras, por outro, em Jaguaribe seus usos implicam um olhar contemporâneo sobre essa forma de representação, um olhar que “transcende o documental e incorpora a reflexão sobre o tempo presente em imagens construídas que provocam estranhamento e imersão crítica no universo registrado” (Burgi, 2012, s/p.).
O panorama tem sua história ligada ao desenvolvimento de diversas tecnologias de visão, como a câmera escura e a perspectiva (Crary, 2012, p. 37). Embora já existissem na China desde o século XII, o nome foi cunhado no final do século XVIII. Consistiam inicialmente em vistas urbanas instaladas em uma superfície cilíndrica de onde os espectadores podiam ter uma sensação de imersão ao olhar para a imagem e não apenas ter uma visão parcial e em pequena escala, como em uma pintura comum.
O modelo visual do panorama foi introduzido na fotografia já em seus primórdios, através do agrupamento de placas de daguerreótipo. Na segunda metade do século XIX já existiam câmeras com um campo de visão capaz de capturar uma vista comparável ou maior do que a do olho humano, produzindo uma única imagem a partir de um mesmo ponto de vista. Embora os panoramas fotográficos devam muito de seu sucesso à popularidade dos grandes panoramas na pintura, sua técnica introduziu a espacialização da imagem na experiência de produção e de percepção da fotografia.
De certa forma, é possível considerar que as fotografias panorâmicas não apenas anteciparam os grandes formatos e o formato de tableau da fotografia na arte contemporânea, como permitiam estender o olhar sobre o plano da imagem, fazendo com este pudesse ser percorrido como em uma pintura de “vista total”. Certamente, se não provocavam uma sensação de imersão como nos panoramas pictóricos, uma das principais implicações dessa extensão da visão na fotografia era a de dotar a imagem de uma impressão visual de totalidade de percepção do espaço que acentuava o aspecto mimético e naturalista de sua representação com o reforço da perspectiva.
Quando Claudia Jaguaribe opta pelo formato vertical nas imagens de Entre Morros, o que ela faz é romper com o paradigma da visão do panorama. Associado a toda paisagem, é o panorama que nos induz a ver e a reconhecer a imagem de um lugar não como uma representação, mas como o “próprio lugar”. A orientação vertical rompe também com uma outra inovação do século XIX, o cartão-postal, uma espécie de miniaturização do panorama, concebido para ser carregado e compartilhado. Juntamente com a verticalidade, a opção pelo grande formato que monumentaliza a imagem torna também mais visíveis as pequenas irregularidades de escala e proporção de alguns dos fragmentos colados. A artista rompe também assim com perspectiva renascentista, que busca reproduzir mimeticamente o real através do uso rigoroso de elementos como escala, proporção e profundidade na imagem para garantir o perfeito equilíbrio e a qualidade naturalista de sua figuração.
Uma das mais famosas imagens da série, a que mostra uma menina em primeiro plano, sobre um telhado de uma casa no morro, também está impregnada desses gestos (F 2).
Observamos, por exemplo, que no terço inferior da fotografia encontram-se três crianças em cima de uma laje. A de maior destaque é a menina que está em primeiro plano subindo em uma caixa d’agua. As outras duas estão sentadas ao fundo (entre as pernas da menina em destaque), mas aparecem em escala tão pequena e tão amalgamadas à paisagem que se tornam quase imperceptíveis. Acima, ocupando quase todo o restante da imagem, vemos as favelas[6] formando uma espécie de manto que cobre os morros até o mar.
F2. Série Entre Morros #1. Claudia Jaguaribe, 2010.
No topo da imagem, à esquerda, temos uma vista do mar, de alguns edifícios e do morro Dois Irmãos, no Leblon, bairro nobre do Rio. Porém, tais vistas são, na verdade, impossíveis, porque no espaço geográfico em que se situa a cena não existe tal disposição de morros, favelas, bairros ou do mar ao fundo. Por isso, o ponto de vista de cima para baixo proporciona uma sensação de simultaneidade e totalidade de espaço que igualmente não existe.
A confusão visual resulta da disposição dos fragmentos na imagem, provavelmente retirados de distintos pontos de vista ou mesmo de distintos lugares (favelas e bairros do Rio) e depois montados digitalmente para compor uma só vista em cada imagem da série: uma paisagem ao mesmo tempo real e ficcional, embora verossímil. Com isso, as imagens não apenas desfazem o modelo do ponto de vista único, base de toda imagem panorâmica e em perspectiva, como também re-encena a própria ação de sua construção.
Mesmo nas imagens horizontais, que correspondem mais diretamente às fotografias panorâmicas comuns, a indicação dos jogos com a representação é indicada, além dos traços da manipulação digital, pelo uso do grande formato (1,10m x 2,59m) e do passpartout (F3), com o qual a artista reforça o formato pictórico do tableau e chama a atenção para o próprio formato do panorama. Esses gestos não buscam rivalizar com o panorama pictórico, mas evidenciá-lo como representação através de um estranhamento.
F 3. Série Entre Morros #9. Claudia Jaguaribe, 2010.
Mas a imagem também causa estranhamento pela própria visão de 180o do panorama, ao potencializar o efeito do ponto de vista que posiciona a quina do muro de cimento no centro da imagem, dividindo simetricamente a imagem em dois planos. Esta imagem tornou-se uma das mais famosas na série porque alude ao ato do governador do Rio à época, de criar um muro de contenção no alto do morro para evitar a expansão da favela em direção a áreas “naturais”. Considerado controverso à época por ser visto como um ato de segregação social, o próprio muro aparece na imagem, mas como alusão a esses dois tipos de segregação (espacial e social).
Pensado como uma espécie de espaço de fronteira, a presença do muro na imagem permite a artista seguir com suas reflexões em outras direções, como a noção de paisagem natural e sua relação com os espaços construídos. Em trabalhos anteriores, como, por exemplo, Quando eu vi, de 2009 (F4), Jaguaribe apresenta um conjunto de registros da mata brasileira de diferentes regiões, como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Amazônia e Pantanal para discutir as ações do homem na natureza e ao mesmo tempo perguntar-se sobre o que pode ou não ser considerado natural, por que e por quem. Tais questões ressoam nas atuais discussões da geografia cultural, onde a ideia de um espaço “natural” é uma convenção história e cultural.
F 4. Biblioteca IV, série Quando eu Vi - Estante I. Instalação. 2007.
As análises de Cosgrove (2008, p.17), por exemplo, vão considerar que todo espaço geográfico é antes de tudo um espaço social e simbólico. A ideia de fronteira na imagem do muro que separa a favela de uma área “natural”, participa desse gênero de questionamento, pois seria ingênuo considerar neste contexto “natural” uma área verde e não ocupada nos morros do Rio, por oposição às áreas ocupadas pelas favelas. Tanto as favelas quanto as áreas verdes, inclusive as que fazem parte de áreas de proteção ambiental, são todas áreas que fazem já parte de um manejo do homem. Um exemplo é a Floresta da Tijuca, parque nacional urbano dentro do Rio de Janeiro, onde se situa a estátua do Cristo Redentor. Uma área “natural” totalmente legislada e gerida pelo homem. Tão natural quanto a paisagem na fotografia de Jaguaribe.
4 Variando formatos e experiências de visão
Em Sobre São Paulo, de 2011, vemos o mesmo interesse sobre o crescimento e formas de ocupação das cidades, só que desse vez através da massificação das arquiteturas verticalizadas de São Paulo. As imagens desta série refletem, para a artista, a sensação de imensidão da cidade, seu crescimento desordenado e também uma certa padronização das metrópoles brasileiras.
Em entrevista ao site do Estudio Madalena (https://estudiomadalena.com.br/sobre-sao-paulo-claudia-jaguaribe), em São Paulo, a artista conta que os registros foram feitos através de quatro sobrevôos de helicópetero e dez subidas em topos de edifícios. Mas o resultado, mais uma vez, não são simples vistas aéreas, mas paisagens construídas por diferentes tipos de intervenção na imagem e pela opção de diferentes formatos, como o quadrado, além da exacerbação do uso da fotomontagem.
Um dos poucos panoramas horizontais presentes na série (F5) são montados um sobre do outro, separados por duas estreitas faixas brancas, de forma a formar uma espécie de tríptico horizontal ou um único grande panorama formado por três camadas de imagens medindo 0,20m x 2,20m cada. Porém, o “grande” panorama não apresenta um ponto de vista único nem mostra a mesma cena.
F5. Série Sobre São Paulo. Claudia Jaguaribe, 2010.
Cada “camada” ou panorama apresenta seu próprio ponto de vista de um determinado conjunto de prédios de diferentes partes da cidade, o que, de partida, inviabiliza qualquer tentativa de uma visão total da cidade. Além disso, em cada panorama individual, cada conjunto de edifícios foi fotografado de distâncias diferentes, fazendo com que as massas de edifícios apresentem diferentes escalas em cada imagem. Assim, temos uma primeira camada ou panorama 1, onde aparecem mais edifícios, mas numa escala menor e mais distantes do ponto de vista; no segundo panorama, temos uma escala um pouco maior, com menos edifícios, embora com mais detalhe; e finalmente, no terceiro panorama, temos uma imagem com uma distância ainda menor, com menos prédios e aumento dos detalhes.
Nesses jogos, vemos os mesmos procedimentos da série Entre Morros: uso da fotomontagem digital para compor a paisagem, o uso acentuado de cores e texturas e uso do formato panorâmico, com a qual se alude à questão da totalização da vista, tornada impossível pelo conjunto heterogêneo de imagens. Mas, acrescenta-se aqui um outro elemento, que é o rompimento com a noção de perspectiva renascentista. A reunião de todas imagens de cima para baixo, na ordem dos panoramas 1, 2 e 3, cria uma falsa impressão de perspectiva, que não existe porque o conjunto não forma uma imagem única nem tem o mesmo ponto de vista.
Chama também a atenção na série as imagens em formatos aquadradados (1,47m x 1,40m). Ao perceber como Jaguaribe discute o formato dos panoramas e do cartão-postal invertendo sua orientação em Entre Morros, já fora mencionado que o formato e a orientação das imagens na pintura e na fotografia não eram fortuitos. É interessante observar como o formato (retangular horizontal ou vertical) pode induzir a determinadas experiências perceptivas e de leitura da imagem. No contexto da fotografia contemporânea e, particularmente nos trabalhos de Jaguaribe, tais elementos são acionados exatamente para fazer ver tais sistemas de representação e evidenciar a construção dos modos de ver que eles implicam. Assim, é possível perceber aí um comentário sobre os valores estéticos e visuais típicos da composição pictórica clássica e os da fotografia de paisagem oitocentista, onde a distribuição dos elementos é importante para conferir-lhes o que à época era considerado um equilíbrio de ritmos, cores, tons e texturas, além da proporção e da escala.
Na figura 6 podemos perceber que, diferentemente da figura 4, a perspectiva não é claramente abolida, mas sugerida, pois simula-se de forma verossímil os elementos clássicos da composição. Apenas as cores e os tons dos fragmentos destoam e evidenciam que se trata de uma fotomontagem.
Seria possível considerar que ao diminuir a lateralidade da imagem e sua extensão vertical, o formato quadrado cria e reforça a impressão visual de concentração do olhar, por este ser induzido a percorrer a imagem de forma circular. Uma consequência disso é o recentramento da atenção na massa de edifícios com a qual a artista acentua o aspecto desordenado da ocupação espacial da cidade. Outra consequência do uso desse formato, é que, apesar deste tipo de imagem gerar uma impressão de harmonia geral em termos de escala, proporção e ponto de vista, nelas podemos ver mais claramente a colagem dos fragmentos.
F6. Série Sobre São Paulo. Claudia Jaguaribe, 2010.
Finalmente, em Sobre São Paulo, há imagens com formato retangular e orientação vertical, de 1m x 0,70m (F7). Mas aqui elas são assumidas claramente como colagens, onde tiras de diferentes imagens são remontadas para formar uma única paisagem imaginária. Aqui temos uma literalização da ideia de totalização do espaço e da simultaneidade dos fragmentos da fotomontagem.
Apesar dessa literalização, percebe-se que estas vistas imaginárias são tão inventadas quanto as vistas dos panoramas. Todas são paisagens mentais, que se desobrigam a corresponder a uma paisagem "real". Mas este é exatamente o ponto. Não existe nem nunca existiu uma paisagem real, apenas construções de paisagem como experiências de lugar. Na figura 7, apesar de ser uma operação deliberadamente artificial, nosso olhar tende a tentar definir o que é “real” e o que não é. Isso significa que ainda que haja a literalização da fotomontagem, nossos padrões perceptivos, referências e memórias visuais de um lugar influenciam nossas formas de vê-lo e reconhecê-lo.
F7. Série Sobre São Paulo. Claudia Jaguaribe, 2010.
Nesse sentido, os usos da fotomontagem em Jaguaribe não deixam de estar relacionados aos dos pictorialistas do século XIX, embora certamente haja diferenças no sentido e nos objetivos desses usos. O que Jaguaribe e pictorialistas como Robinson e Reijlander têm em comum é tomar a fotografia não como um fim em si mesma, mas como um meio expressivo. É certo que, diferentemente de Claudia Jaguaribe, os pictorialistas buscavam alçar a fotografia ao estatuto de “belas artes” e reproduziam valores e critérios da pintura acadêmica. Mas é apressado ver seus trabalhos apenas como pretensão da fotografia em ser “arte” e negar sua “natureza” documental, o que reiteraria a clássica oposição entre arte e fotografia na figura das dicotomias “utilitarismo-documentação x ficção-expressão”. Tais oposições somente se sustentam num regime de enunciação do visível e em um modelo de visão onde a mímese regula os princípios da representação e da própria arte.
O interesse das experimentações dos pictorialistas, assim como dos trabalhos de Jaguaribe, está em evidenciar como forjou-se historicamente para a fotografia uma concepção reduzida ou apenas a seus aspectos documental e de registro ou a seu caráter expressivo e de ficção, supostamente opostos. Por um lado, as práticas pictorialistas permitiram à fotografia viabilizar e fortalecer concepções da arte acadêmica, como a verossimilhança e a teatralização alegórica na pintura. Mas, por outro, mostram também seu papel de problematizar esses mesmos projetos, ao (re)inventar o real por meio dos artifícios da imaginação e da ficção. Ainda que reproduza na fotografia a estética pictórica para reencenar simbolicamente os valores da moral vitoriana, Reijlander, por exemplo, produz “dramatizações do real” (Fernandes, 2012, p. 44), que deixam entrever já no século XIX, por meio da artificialidade da composição, a natureza sociotécnica da fotografia.
É certo que para pictorialistas como Robinson, a fotomontagem era uma forma de compensar e corrigir os “defeitos” e as “dificuldades” dos procedimentos fotográficos da época para fazer suas (“belas”) “recomposições do real” (Fernandes, 2012, p. 46).
F8, Henry Peach Robinson. Outono, 1863.
Em suas paisagens naturais (F8), por exemplo, era através da colagem de negativos de distintas cenas e efeitos de luz e de profundidade que, como um pintor, Robinson realizava composições que atribuíam uma determinada emoção a um ambiente. Já para Jaguaribe, as “recomposições do real” não servem para exprimir emoções, mas para evidenciar esses jogos com a representação e aludir a determinados aspectos da vida dos lugares. As paisagens “recompostas” de Jaguaribe servem tanto para questionar uma representação com valor de verdade quanto para fazer uma leitura crítica dos cenário urbanos do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde a questão urbana é discutida em seus aspectos históricos, políticos, econômicos, ambientais e humanos.
De toda forma, a prática da fotomontagem em ambos os casos indica uma contemporaneidade de atitude diante da imagem, que é a de toma-la em sua condição necessariamente híbrida de registro e de expressão, nem por princípio arte, nem apenas documento.
5 Considerações finais
Ao compor suas paisagens por meio da fotomontagem e do uso de panoramas e outros formatos da imagem, Jaguaribe desfaz a possibilidade de qualquer reprodução naturalista dos morros e favelas do Rio e da arquitetura verticalizada de São Paulo, pois sabota o uso “apropriado” dos elementos que sustentariam uma composição mimética, própria de modelos de visão onde a imagem se imbui de um desejo de representação verdadeira do real.
Com esse gesto conceitual, as fotografias criadas pela artista evidenciam a natureza de artifício de toda imagem e a paisagem como narrativa histórica e cultural, que aponta para os modos como nos relacionamos com os espaços, como eles nos afetam e como nós os significamos. Mas, como vimos, para documentar lugares e transformá-los em “paisagens simbólicas” com as quais pudesse discutir as relações entre natureza e espaço construído, a artista aproximou e montou as tomadas aéreas com modelos de visão e seus formatos, intenções, conceitos estéticos, discursividades visuais e modos de fazer imagem. Uma vez agrupados e alinhados na superfície da imagem, tais elementos resultam em uma narrativa visual fabulatória que não mostram apenas lugares, mas experiências que os situam de um determinado modo em uma rede de relações históricas, culturais e políticas. É deste lugar, desta rede de relações, que vejo a construção de suas “paisagens”.
É assim que seus trabalhos refazem a história da paisagem natural introduzindo nela novos elementos para sua compreensão na atualidade. Nessas obras, como em outros de seus trabalhos, a artista constrói imagens que, apesar do uso da fotomontagem digital, mantêm por vezes um forte aspecto de verossimilhança com o qual se produz um jogo de indiscernibilidade entre “real” e “ficcional”. Com isso, a artista relê e subverte os modelos de representação que buscam “narrar o real” na tradição mimética da fotografia de paisagem.
Mas se a complexificação do estatuto da imagem e seu uso para inventariar nossos modos de ver e de viver são consideradas algumas das características da fotografia contemporânea, tal complexificação e seus usos não constituem gestos inaugurais ou autônomos. O que as experimentações com as fotomontagens pictorialistas demonstram, em última análise, é que intervenções, colagens e retoques em negativos, mesmo para conferir à fotografia um aspecto pictórico e “artístico”, indicam que o que é próprio da imagem é seu aspecto sociotécnico e não uma função objetiva de registro ou uma função poética de invenção.
Do presente, a fotografia e as paisagens nos olham atentamente como um olho da história. E por meio deste olho forjam sua atualidade e nos convocam a realizar uma leitura inatual de nosso próprio presente.
Lista de referências
Benjamin, W.(2011) Origem do Drama Barroco Alemão. Belo Horizonte: Autêntica.
Burgi, S. (2012). O construído e o documental. En Entre Morros. São Paulo: Cosac Naify. s/n.
Crary, J. (2012). Técnicas do observador. Rio de Janeiro: Contraponto.
Cauquelin, A. (2009). A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes.
Cosgrove, D. (2008). Introduction to Social Formation and Symbolic Landscape. En Landscape Theory. (pp. 17-42) New York and London: Routledge.
Didi-Huberman, G. (2015) Diante do tempo. Belo Horizonte: Editora da UFMG.
Fernandes, M. A. (2012) Fotomontagem no Século XIX: da mecânica à narratologia. En Revista Rhêtorikê. Disponible: http://www.rhetorike.ubi.pt/04/pdf/Rhetorike-04-03-fernandes.pdf
Fried, M. (2012). Why Photography matters as art as never before. 4th ed. New Haven and London: Yale UP.
Galassi, P. (1981). Before Photography. Painting and the invention of Photography. New York: The Museum of Modern Art.
Lissovsky, M. (2011). A paisagem e a proveniência dos lugares. En Revista Contemporanea. Disponible: https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/5053/3890.
Mitchell, W.T (Ed). (2002) Landscape and power. Chicago and London: The Chicago UP.
Poivert, M. (2010). La Photographie Contemporaine. Paris: Flammarion.
Ranciere, J. (2009). A partilha do sensível: estética e política. Rio de Janeiro: Ed. 34.
[1] Embora o termo “fotografia contemporânea” abarque a experiência do fotográfico em campos diversos, e não apenas na arte, será usado aqui especificamente para tratar da fotografia no contexto da arte contemporânea.
[2] O texto é parte do projeto de pesquisa “Territórios imaginados: fabulação do documento e invenção da paisagem na fotografia contemporânea”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento (CNPq), edital MCTI-CNPQ Nº 01-2016 – Universal.
[3] Esta noção se fundamenta no pensamento de Gilbert Simondon, para quem todo objeto técnico, fabricado segundo uma necessidade e imbuído de uma funcionalidade, é ao mesmo tempo técnico e social por estar investido não só de uma “tecnicidade”, mas também de memórias, desejos e intenções. Cf. SIMONDON, G. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 2012, p. 158.
[4] O termo “contemporâneo” tem aqui o sentido atribuído por Agamben: o de uma relação com o presente que não é a de uma completa adesão a ele; uma atitude de recuo que permite melhor apreender suas inflexões e dilemas. Cf. Agamben, G. O que é o Contemporâneo? Chapecó: Argos, 2009, p. 58.
[5] O uso das imagens no texto segue o perfil previsto pelo artículo 32 do TRLPI.
[6] A ocupação dos morros no Rio de Janeiro data do final do século XIX, mas se deu de forma cada vez mais veloz e desordenada nas duas primeiras décadas do século XX, em função inclusive das reformas urbanas que buscaram modernizar e “europeizar” o centro da cidade, expulsando diversos moradores para os morros das regiões central e portuária da cidade.