Luísa Ferreira: uma fotografia sensível
Luísa Ferreira:a sensitive photography
Luísa Ferreira: una fotografía sensible
José Oliveira
Investigador do Instituto de História da Arte
Universidade NOVA de Lisboa (FCSH)
Resumo:
A entrevista a Luísa Ferreira pretende dar a conhecer as principais áreas do seu trabalho fotográfico que, iniciado em meados dos anos 80, perfaz mais de 35 anos de actividade tanto no domínio do fotojornalismo como no desenvolvimento de projectos pessoais e encomendas de diferentes entidades.
Num trânsito entre as últimas duas décadas do século XX e as primeiras do século XXI, a cidade e o ambiente social de Lisboa, cidade onde nasceu e vive, sofreu profundas alterações que foram registadas pelo seu olhar documental e crítico, dando disso conta em várias séries fotográficas.
Com um gosto pessoal pela geografia (frequência do ensino superior) tenta-se descortinar em que âmbito essa área do conhecimento influenciou o seu trabalho, assim como as suas referências visuais de outras práticas artísticas.
Do seu depoimento percebe-se que Luísa Ferreira é particularmente atenta ao seu dia-a-dia e sensível à amizade e aos afectos que, de algum modo, enformam também vários dos seus trabalhos.
Abstract:
The interview with Luísa Ferreira aims to reveal the key areas of her photographic work which, beginning in the mid-1980s, has spanned more than 35 years of activity, both in the field of photojournalism as well as in the development of personal projects and commissions from different entities.
In the transition between the last two decades of the 20th century and the first decades of the 21st century, the city and social environment of Lisbon, where she was born and lives, has undergone profound changes that have been recorded by her documentary and critical eye, which she describes in various photographic series.
With a personal taste for geography (she attended university), she tries to find out how this area of knowledge has influenced her work, as well as her visual references from other artistic practices.
It is clear from her statement that Luísa Ferreira is particularly attentive to her day-to-day life and sensitive to friendship and affection, which in some way also shapes several of her works.
Resumen:
La entrevista a Luísa Ferreira tiene como objetivo dar a conocer las principales áreas de su trabajo fotográfico que, iniciado a mediados de los años 80, abarca más de 35 años de actividad tanto en el ámbito del fotoperiodismo como en el desarrollo de proyectos personales y encargos de diferentes entidades.
En un tránsito entre las últimas dos décadas del siglo XX y las primeras del siglo XXI, la ciudad y el entorno social de Lisboa, ciudad donde nació y vive, sufrieron profundas transformaciones que fueron registradas por su mirada documental y crítica, evidenciando esto en varias series fotográficas.
Con un gusto personal por la geografía (cursó estudios superiores en esta área), se intentará desvelar en qué medida esta rama del conocimiento influyó en su trabajo, así como sus referencias visuales de otras prácticas artísticas.
De su testimonio se deduce que Luísa Ferreira es particularmente atenta a su día a día y sensible a la amistad y los afectos que, de alguna manera, también informan varios de sus trabajos.
Palavras-chave: Luísa Ferreira, fotografia, Lisboa, território, memória, identidade, gentrificação
Keywords: Luísa Ferreira, photography, Lisbon, territory, memory, identity, gentrification.
Palabras clave: Luísa Ferreira, fotografía, Lisboa, territorio, memoria, identidad, gentrificación.
Introdução
Luísa Ferreira (Lisboa, 1961) transitou de uma carreira ligada à profissão do fotojornalismo para uma prática alicerçada em projectos pessoais, passando a explorar uma visão mais autoral da fotografia, em que muitas vezes conjuga o documento e a metáfora.
Assimilando uma cultura visual diversificada, o seu entendimento do mundo é multifacetado, reflexo dos seus interesses em variadas áreas (cinema, teatro, literatura), que inspiram a sua própria criação artística e expressão pessoal.
De um modo geral podemos enquadrar a sua prática fotográfica numa filiação relacionada com a memória e a identidade que se consubstanciam em preocupações ligadas tanto às transformações do território e do ambiente, como às mudanças sociais nas cidades, nomeadamente na zona de Lisboa, onde habita.
Por outro lado, Luísa Ferreira tem uma atenção particular às dinâmicas pessoais de proximidade na exploração das poéticas de relação em projectos que tecem um diálogo visual com o outro, explorando as nuances da intimidade.
E é nesta polaridade entre o pessoal, o social e o território, que se inscrevem as suas imagens de uma realidade fragmentada, por vezes poética, onde o individual e o coletivo se entrelaçam, revelando a sensibilidade da artista em captar a complexidade do mundo contemporâneo.
Os seus projectos podem assumir formatos diversos (exposição, instalação, diaporama), usar diferentes técnicas (manipulação de emulsão fotográfica, técnicas mistas, cor, preto e branco, vídeo) e serem expostos tanto em ambientes museológicos como em espaços alternativos, em espaços públicos na cidade, ou mesmo rurais, tendo como única intenção servir melhor os objectivos a que se propõem.
Do seu vasto trabalho destacam-se as participações nas principais mostras fotográficas internacionais que tiveram lugar em Portugal, nomeadamente nos Encontros da Imagem de Braga (1994, 1995, 1996, 2006 e 2014), nos Encontros de Fotografia de Coimbra (1994), na primeira edição do Imago Lisboa Photo Festival (2019), e o seu projecto “Éter” foi Primeira Escolha dos Recorridos Fotográficos na ARCO’98, Feira Internacional de Arte Contemporânea de Madrid (1998).
F1. Auto-Retrato, da série Branco (2018)
Entrevista a Luísa Ferreira (LF): por José Oliveira (JO) realizada no seu atelier no dia 19 de Dezembro de 2024
JO: Logo no início da tua carreira (1987), mesmo antes de te tornares fotojornalista profissional, obtiveste o quarto prémio no tema juventude na “Fotografia Jovem – SNBA”. Até que ponto é que esse prémio foi importante no estímulo para prosseguires a teu percurso na fotografia?
LF: É curiosa essa pergunta, já me tinha esquecido desse assunto, mas lembro-me perfeitamente da fotografia com que concorri: era um “punk” deitado no chão que eu tinha fotografado em Lausanne em 1985 ou 1986. Já não sei, mas penso que não me influenciou grandemente, mas se tivesse sido o primeiro prémio teria sido fantástico. No entanto, eu já estava muito entrosada na fotografia, eu só queria estar a fotografar, andava sempre por todo lado com a máquina para aprender e fotografar cada vez mais, fazer experiências, etc., portanto o prémio não terá tido tanta importância assim.
JO: Depois de optares pela fotografia, em vez da continuação do estudo da geografia na faculdade, iniciaste a tua carreira no fotojornalismo. Mas depois de nove anos (1989-1998), como profissional na área, decidiste deixar a carreira, porquê?
LF: Uma das razões foi o nascimento do meu filho em 1995, o que me deu a noção de uma maior responsabilidade perante a vida e não queria estar em situações de conflito. Isso foi um ponto essencial. Também queria ter tempo para estar com ele, para o educar, passear, brincar, etc., e o tempo era escasso… outra das razões foi um certo cansaço de alguns dos serviços que eu tinha de fazer quando trabalhei para a Associated Press, como por exemplo, fotografar jogos de futebol ou visitas de estado, apertos de mão, coisas que nunca me interessaram muito, o que não acontecia anteriormente quando trabalhava no jornal Público. Aí eu tinha uma maior liberdade e fazia muitas coisas diferentes. Outro aspecto relevante, que me levou a essa decisão de mudança, foi o facto de ser muito difícil conjugar o meu trabalho pessoal, e eu já tinha bastante projectos pessoais desenvolvidos. Tinha encomendas e não conseguia gerir o tempo com facilidade. É claro que foi um momento de muita responsabilidade e alguma ansiedade: estar a tomar conta de um filho sozinha, ter uma casa para pagar e despedir-me de um trabalho com salário. No entanto, eu tinha algumas colaborações fora do fotojornalismo que me prometeram continuar a dar trabalho, nomeadamente o Manuel Reis, um dos grandes “pais” da movida lisboeta contemporânea, com quem eu tinha estado a trabalhar no Frágil. Na altura ele ia abrir o novo Lux Frágil e como tínhamos essa relação de alguma proximidade através do trabalho, desde 1989, ele disse-me: “não te preocupes, eu vou ter trabalho para ti, vou precisar de ti” — e isso também me deu força para mudar de trabalhadora assalariada para fotógrafa independente.
JO: Quais foram os pontos de viragem (acontecimentos ou exposições) na tua carreira que a marcaram profundamente?
LF: Essa é uma pergunta difícil de certa forma, mas houve algumas exposições que fiz que me confirmaram a possibilidade de continuar a expor ou a trabalhar nesse sentido. “Matérias” em 1992, no Museu de História Natural, foi uma exposição muito forte para mim porque era uma área de trabalho que não era muito, como é que hei-de dizer, não era muito aceite pela maior parte das pessoas. Fotografei corpos nus masculinos (um amigo e o ex-namorado do meu amigo) que ora se entrelaçavam numa dança lenta e complexa, ora deambulavam pelo espaço numa cumplicidade assumida, numa espécie de performance espontânea, em que os corpos se fundiam também com os materiais do local (uma carpintaria). Foram imagens produzidas a preto e branco, expostas num espaço em cimento, e destacadas por molduras de ferro propositadamente enferrujadas, reforçando o lado matérico e de transformação. Essa exposição confirmou uma certa plasticidade no meu trabalho, que veio ao encontro dos meus interesses pela dança, pelo teatro e pelo cinema. Curiosamente, 30 anos depois da exposição, em 2022, foi editado pela XYZ o livro com essas imagens no âmbito do seu programa Books Artist-in-Residency, que junta artistas e designers com o intuito da criação de uma peça editorial original. Essa experiência e o processo de elaboração do livro em parceria, foi para mim muito gratificante.
F2. Da série, Matérias (1992)
“A chave das docas”, como eu lhe chamo, é um projeto com um título mais longo, fazendo uso de um excerto de um texto de Picabia[1] que tomei nota na altura, e que eu desenvolvi entre 1989 e 1993. Aconteceu no Porto de Lisboa, num tempo em que se falava em devolver o rio à cidade. É um trabalho que se debruça sobre a beleza que eu via em todos aqueles objectos. O impacto dessa exposição foi grande, na medida em que se conjugaram muitos elementos fora dos formatos tradicionais de uma exposição, chamando a atenção para aquela zona, e levou, efectivamente, as pessoas àquele espaço esquecido da cidade. A técnica que escolhi para as 110 imagens expostas foi o polaroid intervencionado e ampliado (70 x 70 cm). A instalação decorreu no espaço de um enorme armazém devoluto com 3200 metros quadrados, no qual foram colocados 33 contentores marítimos que comunicavam entre si, contaminados por uma intervenção sonora site-specific. Foi um esforço de produção enorme que me deu o ensejo de trabalhar com profissionais de diferentes áreas.
Ainda nos anos 90, atenta à realidade das pessoas que me rodeavam, iniciei duas séries: “Há quanto tempo trabalha aqui?” (1994), sobre os locais e pessoas que trabalhavam em lojas, oficinas, cafés, jornais, estabelecidos há muito na zona histórica da cidade e que, já desde a década anterior, começavam a desaparecer; e “O ouro, o azul” (1996) sobre o fenómeno da frequência das tascas de Lisboa à noite por jovens, fenómeno esse que tinha começado igualmente na década anterior. Foi uma série na qual juntei duas gerações fotografadas nesses espaços. Ambas as séries são documentais para memória da cidade de Lisboa, que sofreu grandes transformações sociais e patrimoniais nos anos de 1980 e 1990.
Já num âmbito mais pessoal e com o crescimento do meu filho apercebi-me do mundo particular da infância tendo iniciado, ainda nos anos 90, uma reflexão sobre esse universo que veio a ser o projecto “Capitão Goma” (2003), um personagem criado por uma criança, num trabalho que percorre os ambientes infantis e que apresentei na Casa d’Os Dias da Água com o contraste entre retratos de crianças a preto e branco impressos em telas de grande dimensão (73 x 200 cm) e imagens a cor de dimensão mais reduzida no interior de almofadas transparentes insufláveis (25 x 20 cm). Foi uma exposição que mereceu a valorização da crítica, que a elegeu como uma das melhores de 2003.
F3. Da série, Capitão Goma (2003)
Outro trabalho que me deu um particular prazer, e isso viu-se na exposição e na cuidada edição do catálogo/livro foi “Branco” que iniciei em 2003, consolidei com o meu mestrado em 2011, e foi exposto na Galeria Monumental em 2018. É um trabalho de algum modo poético, que parte do auto-retrato para aquilo que sou eu - o que me representa - e que colecciona imagens, objectos, impressões que me constroem. Foi um trabalho reconhecido pela Sociedade Portuguesa de Autores que o premiou na categoria de Artes Visuais como o “Melhor Trabalho de Fotografia” (2019), e o catálogo/livro de autor faz parte da colecção de livros de autor da biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian.
Paralelamente ao “Branco” trabalhei desde 2013 na série que seria denominada de “Loreto”, que se debruça sobre o drama da gentrificação de Lisboa centrada no bairro onde vivo que, nessa altura, já assumia uma alarmante preocupação, infelizmente confirmada na década seguinte. Exposta inicialmente em 2020 no Auditório Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro, materializou-se com maior expressão em formato de instalação em 2022, na Sociedade Nacional de Belas Artes.
JO: O período da pandemia foi claramente um tempo de afastamento físico das pessoas. Lidar com o isolamento não foi fácil para alguns e muitos negócios foram afectados por esse compasso de espera. Por outro lado, reinventaram-se estratégias de vida, de trabalho, e utilizaram-se intensamente as plataformas de comunicação digital. Qual a tua experiência desse período?
LF: Eu gostei de ver a cidade de Lisboa vazia, estou cansada de turistas. Vivo no centro histórico e, portanto, desde há mais de uma década para cá tem sido impossível. Não só a gentrificação, que levou ao despejo dos moradores mais antigos, mas também o surgimento do Alojamento Local afectou a vivência da cidade. Já quase não conheces pessoas que vivam no centro da cidade. E depois o aumento de pessoas na rua que ocupam os passeios, que não se mexem … por isso gostei de ver a cidade vazia, gostei do silêncio que desceu sobre a cidade. Não gostei que houvesse doença, que houvesse morte e do medo que isso gerou, mas gostei da calma da cidade. Ao mesmo tempo eu fiquei em casa a dar aulas via Zoom e ia fotografando para o projecto “Loreto”. Entretanto, tive uma encomenda do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior para fotografar laboratórios de investigação e outras instituições ligadas ao desenvolvimento de tecnologias/equipamentos de combate ao SARS-CoV-2. Foi um trabalho desenvolvido em plena pandemia, entre Abril e Junho de 2020, que me levou a percorrer o país seguindo a escolha das instituições que o Ministério tinha previamente feito. Esse projecto documental mas com uma abordagem autoral, que se denominou “A Ciência Cura”, teve uma edição em livro pela Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM) com um título mais elucidativo, “A ciência cura: O conhecimento no combate à Covid-19 em Portugal (Março-Junho 2020)” (2021), ao que se seguiu uma exposição no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira (2022/23), com a curadoria do seu director David Santos, que tinha sido convidado pela INCM para escrever um texto para o livro e que, desde essa altura , tinha manifestado interesse em mostrar o trabalho através de uma exposição.
F4. Da série, A Ciência Cura (2020)
JO: Muitas vezes os artistas revisitam interesses ou locais que os marcaram quando jovens. A geografia foi a tua escolha antes da fotografia. Voltar ao território, ou às tuas abordagens humanistas e sociais, têm algo a ver com esse teu interesse pela geografia num sentido lato?
LF: Eu penso que sim, embora nem todo o trabalho que eu faça toque essa área do conhecimento ou de estudo geografia humana. É exemplo disso as “Matérias”, que não tem nada a ver com isso e o “Branco” também não terá a ver. No entanto, o território e a sociedade, a mudança na sociedade, fazem parte das minhas preocupações ou temas que tenho desenvolvido nas minhas séries e que tenho mostrado em exposição. Quem me levou a interessar imenso pela geografia foi um professor que tive pela altura do 12º ano, só que, quando entrei para a Faculdade em Geografia e Planeamento Regional, entrei ao mesmo tempo para o curso de fotografia; e acabou por prevalecer a fotografia abandonando a geografia.
JO: Estudaste fotografia no IADE (1986-87) antes de te profissionalizares. Depois concluíste a Licenciatura em Fotografia mais de 20 anos depois (2009) e a seguir o concluíste o mestrado (2011). Agora estás a fazer o doutoramento em geografia. que importância atribuis à investigação e aos graus académicos na tua profissão?
LF: Na altura quando entrei no curso de fotografia ainda não havia licenciaturas ou cursos superiores de fotografia em Portugal, e foi uma maneira de me aproximar mais do mundo da fotografia em Lisboa, porque eu já tinha praticado fotografia na Suíça, onde vivi e trabalhei cerca de dois anos. Aí tinha estudado sozinha e discutido com outras pessoas do meio e, portanto, já tinha alguma experiência. Bem mais tarde, com o convite para dar aulas no ensino superior, acabou por serem necessários os graus académicos e é, nessa altura, que decidi fazer a licenciatura e, posteriormente, o mestrado por necessidade profissional para o ensino. Ainda frequentei o doutoramento, mas só fiz a parte curricular e, portanto, não o concluí. É claro que os graus académicos abriram novos campos de reflexão na minha aprendizagem, mas não são a parte essencial no meu trabalho como fotógrafa, nem o meu objectivo na vida era ter um grau de mestre ou doutor na área.
JO: Qual a importância da tua actividade lectiva na universidade para a tua prática fotográfica?
LF: É essencialmente manter o contato com as pessoas mais jovens e por outro lado também me obriga a estar mais atenta em relação ao que se passa no campo da fotografia e não só — para levar isso para as aulas e estabelecer diálogos.
JO: O teu trabalho pessoal é o de alguém atento ao que se passa ao seu redor, tanto em termos sociais como territoriais ou patrimoniais. Essa percepção de mudança implica uma investigação que em termos científicos passaria pela análise de relatórios comparativos, informação demográfica ou patrimonial, correlação de informação de diferentes bases de dados, etc. … porém a investigação artística pode partir de outros pressupostos. Qual é a metodologia que utilizas nos teus projetos?
LF: Parte do sentir, a observação é a base do meu trabalho. Ao longo dos anos vou tomando notas em pequenos cadernos de ideias para projectos, de citações de livros que leio, de conversas a que assisto, etc. e tudo isso me leva a reler e a projectar trabalho a partir daí. Evidentemente, tomo notas de coisas que vou fotografando e actualmente até fotografo mesmo com o telemóvel muitas coisas que encontro para depois poder procurá-las mais facilmente e, portanto, a minha metodologia parte, essencialmente, do sentido de observação. E é curioso teres falado de investigação científica porque lembro-me de ter visto um documentário sobre o geógrafo Orlando Ribeiro (2010) e na altura ter tomado nota nos meus cadernos de uma frase sua - “A base da minha educação científica é a observação” — e, portanto, parece que a ciência e as artes, por vezes, não estão assim tão distantes, embora com resultados e propósitos diferentes.
JO: Utilizas a fotografia por vezes de uma forma poética, mas também documental e, frequentemente, misturas as duas formas em metáforas abertas a diferentes interpretações. Estão também nas tuas intenções possíveis dimensões políticas? Ou deixas essas questões para a crítica e para os apreciadores da tua obra.
LF: Por exemplo em 2018 fiz uma exposição que se chamou “Tranquilidade Fidelidade, Infelicidade”. Esse título vem do nome de duas seguradoras portuguesas que venderam por atacado vários imóveis com pessoas a habitarem nesses prédios, o que fez com que as mesmas tivessem de sair das suas casas arrendadas. Essa série, que comecei em 2013, é uma resposta à gentrificação e ao desrespeito de certa forma pela cidade e pelos seus habitantes. Outro trabalho na mesma linha é “Há Quanto Tempo Trabalha Aqui?” (1994) que se debruçou sobre o desaparecimento do património histórico (lojas, oficinas, etc.); e, mais recentemente, a série “Loreto” (2020-22) que apesar de se centrar sobre o despejo de uma família ou de um prédio, pretende ser um exemplo universal. Outra série que expus anteriormente, “No Limite” (2019), chama a atenção para o bem precioso que é a água, para a importância da sua recolha e para a reutilização dos plásticos. Eu diria que nestes casos as minhas preocupações de base são mais sociais ou ambientais, numa atitude de crítica usando a linguagem da fotografia, do que propriamente políticas, embora certamente a partir daí possam decorrer leituras políticas, como por exemplo em “A Orla da Cidade” (2004) ou “Fora de Jogo” (2004) em que eu fotografo campos de futebol em aldeias pertencentes a distritos que não foram contemplados por estádios novos quando do Euro 2004.
JO: Tu és uma pessoa de amizades e são muitos os amigos e amigas que vão ficando. Como é que o teu trabalho fotográfico reflete esse lado de relação de proximidade?
LF: Eu sou uma pessoa de afectos. E alguns dos meus trabalhos realmente talvez tenham surgido no meio desses afectos. Por exemplo a série “Intimidade” (2024) comecei a senti-la nas muitas vezes que fui à casa de uma das minhas amigas, quando passava temporadas a fazer residências na Tapada da Tojeira (Vila Velha de Rodão) no CENTA[2], e toda delicadeza que existia naquela forma de mostrar a casa de compor a mesa para jantar ou almoçar, etc., tudo isso me despertou a atenção para o detalhe. O mesmo se passava em casa de outras pessoas amigas que fui frequentando. A série “Matérias” também nasce de uma conversa com um amigo que disse que tinha a chave das carpintarias da Central Tejo e quando eu disse que gostava de fotografar corpos nesse espaço ele adiantou logo que tinha dois corpos para eu fotografar (ele e o seu ex-namorado). Na série “o ouro, o azul” levei amigos e conhecidos que frequentavam as tascas e Bairro Alto à noite, para os fotografar durante o dia com os frequentadores habituais, duas culturas completamente diferentes. Estes são apenas três exemplos em que os afectos e as amizades importaram no meu percurso fotográfico.
F5. Da série, Intimidade (2024)
JO: Quais as tuas referências em termos fotográficos ou artísticos?
LF: As práticas artísticas sempre estiveram perto de mim através dos livros e das revistas e, claro, dos museus. Mas quando eu era jovem o Portugal da altura não era o de hoje, em que existe muito mais oferta. Nesse tempo lia muitos livros e ía todos os dias à Bertrand ver aqueles livros que eu não podia comprar, livros de arquitectura, fotografia, pintura, etc. Uma das escritoras que eu mais li numa determinada altura da minha vida nos anos 90 foi, por exemplo, a Marguerite Duras, embora tenha passado por muitos outros escritores. Há um livro com uma grande entrevista a Marcel Duchamp (1990), que eu emprestei a uma amiga e não tenho agora aqui, o qual me influenciou bastante no sentido de perceber como é que se vive fazendo o que se quer fazer sem concessões. Outros exemplos passam pelos The Daybooks do Edward Weston, em particular o tempo que ele passa no México; os surrealistas claros, a fotografia do Man Ray, os livros do Breton, mas é um pouco injusto estar a falar de algumas referências e deixar tantas outras de fora. Relativamente ao cinema eu lia quase todas as revistas a que tinha acesso e uma das minhas ideias era ser fotógrafa de cena. Aliás cheguei a fazer um portfolio para apresentar ao Animatógrafo para ver se me contratavam. E como na altura o Conservatório de Teatro e Cinema era no Bairro Alto, e tinha muitos amigos tanto daí como das Belas-Artes no Chiado, sempre que podia e que havia um filme eu ia fotografar com as autorizações que eles me arranjavam porque conheciam pessoas que trabalhavam no cinema. Portanto o cinema é uma paixão antiga. O Godard é um dos meus realizadores de referência, mas também Bergman, Truffaut, Visconti, Fellini, Antonioni, mais tarde também o Wim Wenders, o Coppola…, são inúmeros, porque eu realmente fui uma “addicted” do cinema durante anos. Quando tu tens tempo, não estás a trabalhar, tens tempo para ler tudo ir ao cinema, ir ao teatro, e isso é extraordinário.
JO: Como é que tu te vês na fotografia daqui a cinco ou dez anos?
LF: É uma pergunta muito difícil. Eu fiz 63 anos este mês, portanto daqui a 10 anos espero ter energia e continuar a fotografar essencialmente para mim, para mim no sentido das coisas que me interessam, que me preocupam, ou talvez esteja apenas a trabalhar no meu arquivo. Eu tenho um grande arquivo que é um monstro, digamos assim, mas no qual existem muitas coisas, muitas séries, que eu gostaria de tornar visíveis …, mas também posso só estar a fotografar flores.
Referências bibliográficas
Duchamp, M. (1990). Engenheiro do Tempo Perdido. Entrevistas com Pierre Cabanne, Assírio & Alvim.
Saraiva, António e Gomes, Manuel (2010). Orlando Ribeiro, Itinerâncias de um Geógrafo. Portugal: B´lizzard - Criatividade, Comunicação e Serviços, Lda e Pedro Canavilhas.
[1] “Os objectos já não têm cores / mas as sombras dos objectos / têm as cores deles / um amigo meu / que tem a chave das docas / também pensa assim” (Picabia)
[2] CENTA – Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas, estrutura pioneira na criação de residências artísticas em Portugal (1989).