O uso de fotografias na (re)construção da memória coletiva: o caso de Dundo, memória colonial, documentário de Diana Andringa[1]
The Use of Photographs in the (Re)construction of Collective Memory: the Case of Dundo, Colonial Memory, Documentary by Diana Andringa
Márcio Aurélio Recchia
Universidade de São Paulo, Brasil
Resumo:
Este artigo visa analisar o uso de algumas fotografias no documentário Dundo, memória colonial (2009), da documentarista portuguesa Diana Andringa, nascida no Dundo, Angola, em 1947. O filme aborda o seu retorno à sua terra natal, acompanhada pela filha, após cinco décadas. Pertencentes à elite europeia local, o seu pai trabalhava como engenheiro de minas em uma empresa diamantífera e, posteriormente, tornou-se diretor geral, denotando os privilégios de raça e de classe que a família detinha naquele contexto colonial. Tal figura é recuperada em contextos que podem tanto funcionar para restabelecer sua memória, como também podem apontar para questões coloniais que ainda se encontram em aberto, dada a participação de antigos funcionários negros da empresa onde ele fora diretor. O documentário utiliza-se de fotografias que acabam por corroborar o ponto de vista da realizadora e a ajudam a refletir sobre questões relacionadas à sua identidade bem como à memória colonial.
Abstract:
This article aims to analyze the use of some photographs in the documentary Dundo, colonial memory (2009), by Portuguese documentary filmmaker Diana Andringa, born in Dundo, Angola, in 1947. The film deals with her return to her homeland, accompanied by her daughter, after five decades. Belonging to the local European elite, her father worked as a mining engineer in a diamond company, and later became general director, denoting the race and class privileges that the family held in that colonial context. This figure is recovered in contexts that can both function to reestablish his memory and can also point to colonial issues that are still open, given the participation of former black employees of the company where he was director. The documentary uses photographs that end up corroborating the documentary filmmaker’s point of view and help her reflect on issues related to her identity as well as her colonial memory.
Palavras-chave: Cinema português; documentário; fotografia; memória colonial; identidade.
Keywords: Portuguese Cinema; Documentaries; Photography; Colonial Memory; Identity.
Nascida aos 21 de agosto de 1947 na cidade do Dundo, província de Lunda Norte, nordeste de Angola, filha do engenheiro de minas Gijsbert Paz Andringa e de Amarina Correia Dias Andringa, Diana Andringa reconhece que teve uma infância marcada pelos privilégios de raça e de classe dentro de um contexto colonial: “Era bom ser criança no Dundo quando se era branca e filha de engenheiro” (Andringa, 2009, 2m30s-2m34s). Oriunda de uma elite pertencente a altos funcionários da Companhia de Diamantes de Angola (Diamang) – seu pai fora diretor geral da empresa na Lunda –, a família deixa o Dundo e se transfere para Portugal em 1958, quando Diana Andringa tinha recém-completado onze anos de idade.
Durante o não-concluído curso universitário de medicina, entra em contato com o movimento estudantil que luta contra a ditadura salazarista. Passa a escrever artigos em defesa de estudantes presos pela repressão do Estado Novo e a participar de manifestações por suas libertações. Começa a trabalhar como tradutora e jornalista e, posteriormente, como copywriter em uma agência de publicidade, quando é presa pela polícia política, em 1970, por ter colaborado com a luta de independência de Angola.
Andringa é sentenciada a vinte meses de reclusão, e, após ser solta, se consolida como jornalista, tendo trabalhado para vários veículos de imprensa, com destaque para a Rádio e Televisão de Portugal (RTP), onde começa a colaborar como argumentista e/ou realizadora de documentários. Com sua saída da RTP em 2001, se torna uma documentarista independente, realizando documentários que abordam, sobretudo, temas históricos, sociais e políticos relacionados a Portugal e suas ex-colônias, com destaque para As duas faces da guerra (2007), em parceria com o cineasta guineense Flora Gomes, Dundo, memória colonial (2009), sobre seu retorno à terra natal e objeto de estudo deste artigo, e Tarrafal - memórias do campo da morte lenta (2011), acerca do campo de concentração do Estado Novo em Cabo Verde. Esta sequência evidencia os interesses de Andringa ao realizar documentários de forma consistente, utilizando-se de material de arquivo, fotografia e entrevistas.
Ausente de sua terra natal por cinco décadas, é em Dundo, memória colonial (Diana Andringa, 2009), que a realizadora registra o seu retorno à terra natal, acompanhada por Sofia, sua filha, para quem apresenta – bem como aos espectadores – alguns dos lugares importantes do período de sua infância, tais como o hospital onde nasceu ou as casas onde morou. Este documentário está inserido num âmbito mais vasto designado por Robert Stock (2018) como “Filmic Geography of Return and Politics of History”[1], uma vez que
it sketches a geography of return in which the filmmaker revisits the sites of her past and colonial history. Consequently, Andringa’s production is part of a documentary practice where the return to a specific place of biographical or historical significance is an important move for developing the argument of the film[2] (Stock, 2018, p. 229).
Ademais, a película é dedicada à memória dos pais da realizadora, logo, possui um viés condescendente, principalmente, para com a figura paterna, que fora, pelo menos momentaneamente, o representante do colonialismo local por excelência, dado o cargo que ocupara na hierarquia da companhia diamantífera.
Dentro dos sessenta minutos de duração do documentário, pouco menos de vinte por cento se passa em Portugal e constituem as cenas iniciais. Nelas, vemos Andringa mostrando à filha tanto fotos de sua infância como documentos pessoais que atestam a sua origem angolana, vemo-la consultando material de arquivo sobre a Diamang e, por último, participando de um almoço anual de antigos funcionários da mineradora, onde entrevista participantes.
Os outros mais de oitenta por cento se passam no Dundo, onde mãe e filha visitam antigos locais ligados à infância da documentarista. Entretanto, há um elemento que vai além de um simples resgate individual de um passado feliz e distante: os relatos de vários angolanos idosos, pessoas negras que relembram como era viver sob o sistema colonial português e trabalhar para a Diamang – com esse contraste, Dundo deixa de ser apenas um documentário sobre sua realizadora, e passa a ser um instrumento que toca nas feridas ainda abertas causadas pelos portugueses em África.
Chama-nos a atenção o fato de Andringa exibir antigas fotografias em vários dos diálogos com seus interlocutores, tecendo a narrativa de reconstrução desse passado. Relativamente aos estudos sobre a fotografia, mesmo que em seus primórdios ela tenha sido considerada por muitos estudiosos como sendo uma prova irrefutável do que efetivamente teria acontecido, o uso de deepfake e inúmeros programas de edição de imagens exibem a artificialidade da verdade da foto. Mesmo as não manipuladas dessa maneira são o resultado possível de uma tecnologia constituída por limites inerentes à sua materialidade. Ademais, a foto também representa o conjunto de leituras feitas sobre ela. Logo, quando captada pela câmera cinematográfica e incorporada a um filme, o ponto de vista do realizador não pode ser ignorado, dado não haver neutralidade no seu uso.
A hipótese sustentada neste artigo, então, é a de que, em Dundo, o uso de fotografias, aliada ao uso de documentos pessoais, desempenha uma função dentro da diegese fílmica, uma vez que ajuda a construir sua narrativa com base no ponto de vista da realizadora, conforme pretendemos demonstrar.
Para tanto, este artigo está dividido em três sessões que analisam algumas das fotografias presentes no documentário, sendo a primeira dedicada ao uso de fotos da infância de Andringa no Dundo. Na segunda, abordamos o uso de fotografias em um evento anual de antigos funcionários da Diamang que se reúnem para rememorar a época em que viviam no Dundo. Por fim, na última sessão, analisamos passagens da película nas quais fotografias de seu pai são utilizadas em situações ambíguas, que tanto podem resgatar a memória daquela personagem, como podem evocar lembranças do passado colonial por parte de pessoas negras que viveram sob o colonialismo português.
1. A infância da realizadora através de fotos e documentos
O documentário inicia exibindo, em plano fechado, as mãos de Sofia a segurar uma fotografia antiga de sua mãe ainda bebê no colo de seu avô [F1]. Ouve-se a voz off da realizadora a informar: “essa sou eu, ao colo do meu pai. Deve ser a minha primeira fotografia oficial, não sei, no Dundo” (Andringa, 2009, 00m06s-00m15s). É curioso notar que a primeira imagem escolhida para abrir o documentário é uma foto onde aparecem a realizadora e seu pai, personagem que tem destaque no desenvolvimento da película, conforme veremos adiante. Mais interessante ainda é ver como a cena une três gerações daquela família, dado que é Sofia, a única que, até então, nunca estivera no Dundo, quem segura a foto de seu avô com sua mãe ao colo, remetendo a Roland Barthes:
a Fotografia, às vezes, faz aparecer o que jamais percebemos de um rosto real (ou refletido em um espelho): um traço genético, o pedaço de si mesmo ou de um parente que vem de um ascendente. Em tal foto, tenho o ‘focinho’ da irmã de meu pai. A Fotografia dá um pouco de verdade, com a condição de retalhar o corpo (Barthes, 1984, p. 153).
A realizadora continua a passar às mãos da filha mais retratos de sua infância no Dundo e a mostrar outros familiares, como sua mãe, sua irmã e seus avós maternos, totalizando seis fotos. Ao falar sobre a utilização de fotografias na composição de filmes, o documentarista chileno Patricio Guzmán (2017, p. 92) salienta que fotos são excelentes agentes narrativos da filmagem, bem como “uma maneira de voltar atrás na biografia de um indivíduo”, o que parece ser a intenção da realizadora.
F1. Fotograma de Dundo, memoria colonial.
Em seguida, Andringa mostra à filha alguns documentos pessoais, a saber: sua certidão de batismo, a transcrição de sua certidão de nascimento, no qual a voz off da realizadora ressalta se tratar de “um indivíduo do sexo feminino de raça branca” (Andringa, 2009, 1m17s-1m20s) e a sua cédula pessoal. Andringa afirma que tais palavras instalam em si, “desde logo, na ambiguidade de um estatuto de menoridade, pelo sexo, e de superioridade, pela cor da pele” (Andringa, 2019, online). No que concerne a filmagem de documentos, Guzmán explica que
Filmar documentos é outro achado interessante: sobrevoar antigas certidões de nascimento, cadernetas de família, certificados de estudos, de alistamento militar, cadernos de contabilidade, passaportes, recibos, notas, cheques, diplomas, declarações manuscritas. Podem-se fazer películas inteiras baseadas em papéis. O caráter de ‘prova’ impregna esse tipo de material (Guzmán, 2017, p. 92).
Assim, ao começar o documentário apresentando fotografias que retratam sua infância junto a familiares, Andringa parece querer atestar o seu lugar de pertencimento àquele clã, o que a autorizaria a realizar um documentário dedicado à memória de seus pais, conduzindo a narrativa através de um determinado viés, uma vez que ela é uma pessoa implicada naquela história. Afinal, “A linhagem proporciona uma identidade mais forte, mais interessante que a identidade civil – mais tranqüilizadora também, pois o pensamento da origem nos apazigua” (Barthes, 1984, pp. 154-156). Já a apresentação de seus documentos pessoais representaria uma necessidade de provar legitimidade quanto sua origem, e, indo mais além, sua ligação afetiva ao Dundo, fato que, em teoria, a qualificaria a realizar um filme sobre sua terra natal.
Não é por acaso que, enquanto segura a cédula pessoal de sua mãe, Sofia leia, em voz alta, o local de nascimento ali impresso [F2]: “Dundo, circunscrição do Chitato, província de Angola” (Andringa, 2009, 1m33s-1m37s). Este é o mote para que Andringa, em voz off, acrescente em seguida: “e assim ficou traçado o meu destino de portuguesa de segunda” (Andringa, 2009, 1m38s-1m41s). Dentre as várias acepções, o termo “português de segunda” pode ser aplicado a filhos e netos de portugueses nascidos em territórios coloniais e que posteriormente se mudaram para Portugal – é empregado pejorativamente em oposição aos “portugueses de primeira”, isto é, aqueles nascidos na metrópole. Ao incluir essa observação no filme, Andringa sugere um certo distanciamento de uma cidadania plenamente portuguesa, pois, “de segunda”, defendendo sua origem angolana.
Stock (2018, pp. 229-230) salienta que, “By pointing to discourses of race and national identity, the scene situates Andringa’s individual story within the much broader socio-political context of Portuguese colonialism in Angola in the twentieth century”[1], o que indicaria uma chave de leitura de Dundo para além das dimensões da esfera pessoal de sua autora. O modelo de sociedade do Dundo de então era extremamente racista, segregando os negros dos ambientes ocupados pelos funcionários brancos da Diamang e suas famílias, tema que também é abordado no documentário.
F2. Fotograma de Dundo, memoria colonial.
As primeiras imagens no Dundo são da K10, casa em que Andringa morou por mais tempo e a qual está mais ligada afetivamente. Como dissemos, Sofia acompanha a mãe nesse regresso depois de mais de cinquenta anos. De acordo com Macedo, Cabecinhas e Abadia (2013, p. 165), “she took her daughter with her because she needed someone with whom to share their memories and the results of the confrontation with the people and places of her childhood”[1].
É significativo o fato de que seja Sofia a acompanhá-la nesta viagem, pois parece haver a necessidade de que as memórias afetivas da mãe sejam transmitidas à filha, ainda que ambas tenham percepções diversas daquele local. Referentemente ao papel de Sofia em Dundo, Fátima Bueno pondera:
Parece-me significativa a presença da filha da realizadora nesse documentário, pois nesse processo de resgate de memória, feita a partir das histórias pessoais e das imagens que a mãe mostra à filha, há garantia da transmissão de uma parte da História do passado português, de que Andringa foi testemunha, transmissão que parte das suas memórias e fotos da família, características da transmissão oral do passado, feita primeiro de geração para geração, e que se reproduz nesse documentário (Bueno, 2020, p. 278).
A casa não está em boas condições de preservação e as imagens do presente diegético parecem conflitar com as imagens que estão na memória da realizadora. Enquanto Sofia vê pela primeira vez aquilo que seus olhos captam, sua mãe vê tanto as imagens do presente quanto as do passado através das lentes da memória, procurando dar algum sentido àquelas percepções. Ela desconfia de suas lembranças e, em voz over, diz: “julgo reconhecer-lhe a entrada, a varanda, entretanto prolongada, as próprias árvores, o jardim. Mas até a que ponto, tantos anos depois, poderei confiar na minha memória?” (Andringa, 2009, 11m40s-11m58s). O questionamento de Andringa se faz pertinente, pois passados mais de cinquenta anos, as imagens registradas pelos olhos da criança e guardadas na memória por tantas décadas parecem não condizer com o que a adulta observa.
Há um corte após a narração acima e o novo plano inicia com a câmera captando as mãos de Sofia a segurar uma fotografia da pequena Diana com sua mãe Amarina, em plano fechado – Diana e Sofia se encontram no quintal da casa. Em seguida, Andringa lhe entrega outra foto, desta vez, da pequena Diana com Paz Andringa, totalizando dois retratos [F3].
F3. Fotograma de Dundo, memoria colonial.
Ao filmar aquelas fotografias tiradas décadas atrás no mesmo lugar em que se encontram, a realizadora busca mostrar ao espectador e atestar à filha que suas memórias são reais, pois se encontram materializadas naquelas imagens, em suas mãos, portanto, palpáveis. É uma forma de confrontar as memórias da infância com a realidade que se desvela no presente, conforme o diálogo que segue:
— Diana Andringa (D A): Essas são fotografias de quando eu tinha pra sete, oito anos, olha!
— Sofia (S): Tão muito bonitas.
— D A: Isto, o meu pai e eu no quintal.
— S: Aqui fora...
— D A: Aqui, no jardim, mais precisamente que, o jardim era todo cercado de sebes, as casas eram separadas, ainda hoje se vê os restos, não eram por muros, era por sebes de buganvílias.
(Andringa, 2009, 12m10s-12m27s).
No presente, já não há mais as sebes de buganvílias que faziam as separações das casas, porém, “hoje se vê os restos”, o que indica uma prova irrefutável de que aquilo que estava registrado em sua memória de menina realmente existiu. Não é fortuito que, após esse diálogo, a narradora pondere:
Mostro a Sofia, não o quintal que vê, mas outro que só eu vejo, onde há o baloiço suspenso sob a mangueira, um gato e um coelho que se chama Jeca e a voz da minha mãe conversando com Caquece na cozinha (Andringa, 2009, 12m31s-12m45s).
A montagem deste trecho faz com que ocorra uma sobreposição das imagens de um ambiente degradado captadas pela câmera com aquelas que se encontram nas lembranças da realizadora. A esse respeito, Stock (2018, p. 235) explica que esta estratégia permite “the inscription of divergent temporal layers in the moving images, in which it becomes possible for past and present to coexist side by side”[1]. Ademais, a concomitância dos tempos “is underscored by the use of the pan shot, stressing integrity of space and time and suggesting the possible coexistence of past and present”[2]. Enfim, “the film [...] proposes that different presents – the colonial and the postcolonial – might gain presence simultaneously”[3] (Stock, 2018, p. 235).
Para além da casa, o próprio Dundo acaba por se transformar em um lugar repleto de memórias afetivas para a realizadora. Ademais, levar a filha consigo e apresentar-lhe sua terra natal constitui, de certa forma, um tentame de estímulo ou desenvolvimento de um “sentimento de pertencimento”. Nesse sentido, Pollak explica que
Locais muito longínquos, fora do espaço-tempo da vida de uma pessoa, podem constituir lugar importante para a memória do grupo, e por conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento a esse grupo. Aqui estou me referindo ao exemplo de certos europeus com origens nas colônias. A memória da África [...] pode fazer parte da herança da família com tanta força que se transforma praticamente em sentimento de pertencimento (Pollak, 1992, p. 202).
Não são conhecidos os sentimentos que a filha de Andringa nutre por Angola ou pelo Dundo. Não se sabe se ela se identifica com a terra de sua mãe. Diferentemente da genitora, Sofia nasceu e cresceu em Portugal, não passando por uma experiência de ruptura geográfico-social durante a infância, logo, tal sentimento de pertencimento familiar, se existente, faria parte de uma “herança da família”, isto é, de uma “memória do grupo”, transmitida da mãe – que efetivamente viveu as experiências – para a filha.
Por fim, as últimas fotografias da infância de Andringa são exibidas nas cenas finais do documentário, quando mãe e filha se encontram na K18, a casa em que a família viveu quando o Paz Andringa tornou-se o diretor geral da Diamang na Lunda. Contudo, a presença de um filhote de cabrito-cinzento (Sylvicapra grimmia), um espécime selvagem, lhe traz boas lembranças e são essas recordações que ela quer compartilhar com a filha. O close-up da câmera capta as mãos de Sofia a ver as fotografias de sua mãe com o filhote, chamado de “Khai” [F4], que, no idioma falado na Lunda, o tchokwe, designa essa espécie de animal.
Enquanto Sofia vê as fotos, sua mãe lhe conta como aquele animal veio parar em sua casa:
Esta casa teve outra coisa absolutamente fantástica que foi a Khai. A caçar, tinham morto a mãe, e quando foram buscar a mãe [es]tava a cria. Aí, infelizmente, uma vez caiu, partiu uma pata, e na noite em que morreu, correu, correu, correu antes de morrer à volta da casa e berrou imenso. Os criados disseram-me [que] os animais acreditam que a morte está num sítio. E, portanto, se fugirem desse sítio a morte não os apanha. E é por isso que são, que normalmente morrem a correr. E pronto, e fiquei, fiquei sem a Khai. E passados uns tempos, além de ter ficado sem a Khai, fomos para Lisboa, e, como me dizem aqui, ‘foram, para regressar de férias’ e não regressamos mais, portanto, esta é a casa de que parti (Andringa, 2009, 58m21s-59m08s).
F4. Fotograma de Dundo, memoria colonial.
A fotografia de Andringa com o filhote é significativa, pois é apenas neste momento que ela será contextualizada, dado tratar-se da foto escolhida para anunciar, logo ao início, o nome do documentário e de sua realizadora, servindo como abertura e sendo exibida por quatorze segundos (Andringa, 2009, 1m47s-2m01s). A respeito de uma das essências da fotografia, cabe pontuar que, para Walter Benjamin,
A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. [...] Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional (Benjamin, 1996, p. 94).
O filósofo alemão diferencia a natureza da imagem captada pela câmera fotográfica daquela captada pela retina humana, dado que uma fotografia desperta naquele que a vê o poder de revelar elementos do inconsciente. A imagem do objeto fotografado é preservada, representando aquele instante em que fora congelado no tempo, possibilitando, dessa forma, que o observador levante questionamentos acerca do objeto observado, “algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome [...], que também na foto é real, e que não quer extinguir-se na ‘arte’” (Benjamin, 1996, p. 93).
Retirada de um álbum de fotografias da família Andringa para compor Dundo, aquela foto adquire novos significados. Ao anunciar o nome e a realização do documentário através da imagem da menina a acariciar o filhote de cabrito-cinzento, o espectador faz associações, conscientes ou não, acerca da infância da cineasta em um ambiente considerado exótico, dado a presença do animal silvestre, e a menina branca, de óculos e cabelos curtos, em um jardim.
É curioso como Andringa escolhe terminar o seu documentário a partir do local de onde partiu, fechando um ciclo. A escolha do tom melancólico, evocado através daquelas fotografias, revela duas perdas ocorridas na infância, isto é, a trágica morte de seu animal de estimação e a sua partida em definitivo para Portugal, encerrando a sua “era dourada”. A conexão com sua terra natal é bastante forte, e o fato de ter partido sem poder regressar por várias décadas constitui uma ruptura com o que, até então, era o seu lar. Foram necessários cinquenta anos para que ela fizesse a viagem de volta ao Dundo, num contexto completamente diverso daquele em que ela saiu.
À partida, durante o período colonial, aquela terra era explorada por Portugal, sua família fazia parte da elite local e sua condição de classe e de raça a colocava num lugar privilegiado. Ao regressar para as filmagens em 2008, Angola é um país independente há pouco mais de trinta anos e as marcas do período colonial, das guerras pela independência, e da guerra civil recém-terminada se fazem presente, contrastando as memórias da realizadora com as imagens captadas pela câmera.
1. O XXVI Encontro Diamang e a memória coletiva através de fotos
Antes de realizar a sua viagem ao Dundo, Andringa participa do XXVI Encontro Diamang, um almoço anual promovido por ex-funcionários portugueses da mineradora e seus familiares, o qual visa rememorar a época em que viviam no Dundo. Embora não enunciado verbalmente, há o close-up em uma planilha que revela que Andringa senta-se junto ao médico Santos David e sua esposa Maria João. A filha de engenheiro, o médico e outras pessoas reunidas em torno daquela mesa representam uma parcela da alta sociedade do período colonial. Um grupo de pessoas em pé [F5], incluindo as três mencionadas, analisam fotografias em preto e branco impressas em folhas de papel, estimulando as memórias de Santos David e Maria João acerca do tempo no Dundo, conforme diálogo a seguir:
— Diana Andringa (D A): As casas...
— Santos David (S D): A casa antiga onde você, onde eu o conheci, não, não, não, essa não tenho. Mas essa, mas essa é, esta casa é a K10.
— Maria João (M J): Bom, mas esta é a K10 no tempo do teu pai.
— S D: Já foi alterada.
— M J: Tem uma varanda... Depois, isto foi fechado, tem aqui uma varanda, a entrada era para ali.
— S D: Isso é o chikuku, isso é o chikuku da casa, isso é o chikuku, que era o quintal da casa. Este aqui é o teu pai a falar com a Maria Helena Noronha Feyo.
— M J: Pois teu pai era um bonitão, não é?
— D A: (risos).
— M J: Ai, eles faziam um casal lindo, porque tua mãe era linda e o teu pai era aquilo que se sabe, era o que se chama ‘um pão’.
— D A: (risos).
— M J: Aquelas em que estavam o teu pai tão aí.
— S D: Isto é pra ti.
— D A: Fantástico!
(Andringa, 2009, 8m11s-8m56s).
É de se notar que, ao verem o pai da realizadora, o médico se limite a identificá-lo, mostrando-o para a filha, ao passo que sua esposa teça comentários elogiosos à beleza do casal Andringa, ao que a realizadora retribui com sorrisos desconcertantes. Parece haver certo constrangimento por parte da filha do casal, e, de fato, a superficialidade do tema causa incômodo uma vez que carece de reflexão crítica acerca dos problemas gerados pelo colonialismo.
F5. Fotograma de Dundo, memoria colonial.
Como se sabe, o pai da realizadora detinha uma posição de poder dentro daquela sociedade, que, por sua vez, existia por conta da exploração de diamantes obtida através da utilização de mão de obra mal remunerada de nativos angolanos. Ao enaltecer a beleza do casal, a esposa do médico reafirma o local que ocupara dentro daquela sociedade estratificada, reforça ter circulado pelos mesmos espaços frequentados pela elite de então, além de, consciente da feitura do documentário, adular a realizadora. Em resumo, a futilidade do assunto proposto causa desconforto, pois além de exaltar a celebração de um passado colonial há décadas encerrado, mas que insiste em ser rememorado acriticamente em ambientes como o desta confraternização, ignora os danos causados às populações locais.
Em trecho sucessivo, a voz over da realizadora reflete: “Alguns dos presentes viveram na Lunda grande parte da sua vida d’adultos. Outros, abandonaram-na adolescentes ainda. Que memórias unem estas pessoas? O que recordam do Dundo e do seu tempo na Diamang?” (Andringa, 2009, 8m58s-9m11s). A montagem faz coincidir a voz narrativa com imagens do almoço e com fotografias em preto e branco ali expostas. Nelas, vemos um baile de carnaval, um piquenique, uma partida de tênis, sendo que um dos jogadores é identificado como sendo o médico Santos David, e um evento em uma arena onde se vê, ao centro, um homem montado em um cavalo branco e, ao seu redor, cerca de dez pessoas que participam do evento. Efetivamente, em todas as fotos exibidas nesta cena, os brancos são os protagonistas, sendo que, na última imagem, ao fundo, nas arquibancadas, o público é formado inteiramente por negros, no papel de meros espectadores, denotando o segregacionismo racial imposto pela Diamang.
Dessa forma, aquele encontro, em princípios do século XXI, onde não se constata a presença de negros, emula, de forma consciente ou não, a reprodução de um ambiente análogo ao do passado colonial, revelando o mesmo sistema racista em que brancos e negros não se misturavam. No trecho acima, antes da exibição das quatro fotografias mencionadas, vê-se, em plano aberto, alguns dos participantes do evento. Nota-se, à direita, diversas fotografias ampliadas impressas em folhas de papel afixadas em árvores, sendo que alguns dos participantes estão conversando voltados para elas [F6], o que promove um ambiente propício ao estímulo das lembranças da época da Diamang, gerando um ambiente de manutenção de uma memória coletiva.
F6. Fotograma de Dundo, memoria colonial.
A recuperação e a exposição daquelas antigas fotografias no XXVI Encontro Diamang mostram que elas foram tiradas originalmente no Dundo dentro de um contexto colonial e são, no presente do documentário, reaproveitadas para celebrar e rememorar aquele passado partilhado, adquirindo uma função diversa daquela que originalmente tinham quando as fotos foram tiradas. Acerca deste assunto, Cunha e Campacci (2023, p. 98), ao analisarem filmes que utilizam fotografias do período colonial, esclarecem que “in addition to their dimension as historical records, the photographs are incorporated into the filmic diegesis in a displacement that offers some ‘details’ evidenced by the mechanisms of cinematographic language, surpassing the photographer's initial intention”[1]. Em outras palavras, “this transfer from photographic to cinematographic language promote (sic) a process of resignification of images”[2] (Ibid.), que, no caso de Dundo, é o de mostrar como aquelas pessoas, décadas depois, ainda evocam aquele passado comum.
A documentarista adota um ponto de vista diverso do das pessoas com quem conversou no almoço da Diamang, como se depreende de sua narração: “Algumas das coisas que aqui oiço parecem-me irreais. Muito do que descrevem não coincide com a minha memória. É imperioso voltar ao Dundo. Saber se é certo aquilo que recordam” (Andringa, 2009, 11m04s-11m17s). Ao enunciar tais palavras, a narradora promove um distanciamento daquela visão idílica compartilhada pela maioria dos participantes e estabelece um fio narrativo que justifica o seu regresso à terra natal.
Tal distanciamento se dá porque Andringa demonstra ter desenvolvido uma consciência de luta contra o fascismo e o racismo há muito tempo, já que ela revela que “Foi a minha infância que me levou a defender a independência de Angola e a ser presa [pela polícia política do Estado Novo]. Foi sobre a vida na Diamang que falei em tribunal quando fui julgada” (Andringa, 2009, 4m18s-4m26s).
1. O retrato do pai
Nesta sessão, tratamos de duas passagens de Dundo em que Diana Andringa interage com antigos funcionários angolanos da Diamang envolvendo à memória de seu pai. A primeira tem como base uma fotografia onde supostamente apareceria o engenheiro Paz Andringa [F7]. A realizadora e o aposentado Mateus Tico-Tico têm opiniões divergentes acerca da identificação de uma pessoa, assim, a ela vai ao seu encontro a fim de desfazer o mal-entendido, já que ele acredita que o homem em questão seria o engenheiro Paz Andringa. A voz over da narradora explica que: “Neste regresso ao Dundo, a minha memória é constantemente desafiada” (Andringa, 2009, 38m46s-38m50s), como num duelo, tendo que defender a imagem de seu pai a fim de que não fosse confundido com outra pessoa.
O fato de a foto ter sido tirada há cerca de setenta anos, sobre-existindo àqueles adultos, remete a Barthes (1984), quando afirma que a fotografia “repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente”. O indivíduo fotografado, como Spectrum, tem preservada a imagem, gerando um efeito um tanto quanto terrível, denominado pelo semiólogo como “o retorno do morto” (Barthes, 1984, p. 20). Tal efeito está ligado a uma presença-ausência inerente à condição da fotografia, uma vez que “o que coloco não é somente a ausência do objeto; é também, de um mesmo movimento, no mesmo nível, que esse objeto realmente existiu e que ele esteve onde eu o vejo” (Barthes, 1984, p. 169). Em suma,
Imaginariamente, a Fotografia [...] representa esse momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo, então uma microexperiência da morte [...]: torno-me verdadeiramente espectro (Barthes, 1984, p. 27).
F7. Fotograma de Dundo, memoria colonial.
Dentro dessa perspectiva, não haveria nada pior que a morte do que o esquecimento. E Andringa, sabendo previamente que o idoso confundiu o seu pai com outra pessoa, promove o encontro – diante das câmeras – a fim de corrigi-lo. Quando Mateus responde que o homem apontado por ela é Paz Andringa, ela responde assertivamente: “Ah, pois é que não é! Este aqui não é o Paz Andringa! Quer ver que não tem nada a ver com o Paz Andringa? Olha e repara! Olha e repara no Paz Andringa como é totalmente diferente!” (Andringa, 2009, 39m27s-39m38s), fazendo com que ele tenha que admitir que se equivocou.
A cena é interrompida quando a documentarista se vê vencedora daquela “dura batalha”, ao provar que o homem a quem Mateus Tico-Tico pensava ser Paz Andringa era, na verdade, outra pessoa. Corrigir aquele erro é uma forma de defender a memória paterna, contudo, ao escolher colocar este trecho no filme, a documentarista se aproxima da postura colonial adotada pelos portugueses, por meio da qual “eles tinham sempre razão, porque eram brancos. Eles tinham sempre razão” (Andringa, 2009, 22m54s-22m58s), conforme relembra o soba Gilberto Munana, um dos entrevistados em Dundo. Fazendo uso da fotografia como instrumento de irrefutabilidade de seu argumento, Andringa parece recompor a cena colonial, onde a verdade do branco precisa da humilhação do negro para se instituir. Assim, a defesa da memória paterna enfraquece a postura crítica contra as ideologias salazaristas que marcam a biografia da realizadora.
O equívoco do aposentado faz com que a documentarista levante a hipótese de que muitos daqueles angolanos possam fingir lembrar-se de seu genitor com a intenção de contentá-la. Em voz over, ela declara: “Outros reconhecem, à primeira vista, uma foto ao que lhes apresento. Mas será possível que, passados tantos anos, a sua memória seja precisa, ou sabem quem sou e tentam gentilmente agradar-me?” (Andringa, 2009, 40m20s-40m32s). Trata-se da segunda passagem acima referida, quando a realizadora mostra um retrato de seu pai a outro senhor idoso que, ato contínuo, diz tratar-se de Paz Andringa. Enquanto sorri, ele contempla a foto fixamente por alguns segundos, mas não consegue dizer nada a respeito [F8]. Andringa pergunta se ele conhece o homem no retrato, o interpelado responde afirmativamente, tenta dizer algo a respeito daquele tempo, e como não consegue, acaba por beijar a foto do antigo diretor geral da Diamang com um sorriso submisso. Ignoramos o que teria pensado aquele idoso diante da imagem do antigo engenheiro, mas sabemos que as relações hierárquicas e raciais dentro do sistema colonial não eram equânimes. Talvez aquele retrato tivesse ativado sua memória acerca do tempo colonial. Acerca do colonialismo, o escritor santomense Mário Domingues reflete:
Exterminar um povo, enfraquecê-lo e bestializá-lo com o álcool; obrigá-lo a crer num Deus inverosímel; fornicar-lhes as mulheres e as filhas; viciar o meio puro dos sertões: eis que tem sido a missão civilizadora da Europa, eis a sua cultura! (Domingues, 1919, p. 90).
Ademais, aquele homem estava na presença da realizadora e de sua filha, e sabia que estava sendo filmado, o que faz com que a cena seja, ao menos, problemática.
F8. Fotograma de Dundo, memoria colonial.
Os olhos do antigo funcionário da Diamang fixam-se nos olhos de Paz Andringa, imortalizados na fotografia, evocando o passado colonial. Contudo, quando uma fotografia compõe um filme, passamos a falar do olhar do espectador de cinema, que passa a enxergar a partir de uma seleção pré-definida pelo cineasta e, mais especificamente, pela montagem, conforme explica Sontag:
No cinema [...] a câmera olha por mim — e me obriga a olhar, deixando a mim, como única opção, não olhar. Além disso, o filme condensa em minutos algo que leva horas para acontecer, deixando apenas partes interessantes, apresentadas de um modo interessante, ou seja, com o intuito de provocar ou de chocar. O dramático é dramatizado, pela didática da composição e da montagem (Sontag, 2004, p. 133).
Dessa forma, a condução do olhar do espectador passa por essas escolhas que têm a intenção de provocar nele as mais diversas sensações, como pontua a filósofa. Para além disso, há o fato de que a tela do cinema amplia a exibição dos rostos filmados. Ao falarmos de retratos de pessoas, dá-se o cruzamento dos olhares do espectador com o objeto fotografado/filmado. A esse respeito, Ismail Xavier pondera:
No cinema, posso ver tudo de perto, e bem visto, ampliado na tela, de modo a surpreender detalhes no fluxo dos acontecimentos e dos gestos. A imagem na tela tem a sua duração; ela persiste, pulsa, reserva surpresas [...]. Quando a imagem é de rostos, tenho a interação dos olhares que se confrontam, verdadeira orquestração: o olho que vê e o que é visto têm ambos sua dinâmica própria e cada um de nós já teve a ocasião de avaliar, com maior ou menor consciência, a intensidade dos efeitos extraídos dessa orquestração (Xavier, 2003, p. 36).
No caso em questão, o confronto dos olhares se dá, de certo modo, em três instâncias, quais sejam, a do idoso, a de Paz Andringa e a do espectador. O aposentado contempla os olhos do engenheiro no retrato, olhos estes que “olham” de volta para o senhor, afetando-o. Através da câmera, temos o direcionamento do olhar do espectador, que acompanha a cena como testemunha, fitando tanto o olhar incerto e tímido do aposentado, quanto o olhar sério de Paz Andringa, que veste terno e gravata, conforme o seu cargo exigia. A câmera direciona o olhar do espectador novamente para aquele idoso após ter beijado o retrato de Paz Andringa, sorrindo, de forma constrangida.
Para a documentarista, o beijo que o senhor negro dá no retrato de seu pai pode significar que seu genitor era bem-quisto pela população local, tendo sido um bom diretor. O que talvez ela não perceba é o fato de que um homem negro que viveu sob o sistema colonial português, provando as agruras e crueldades impostas que lhe eram características, ao beijar o retrato de um homem branco que se encontrava hierarquicamente acima dele dentro daquele regime, seja uma imagem controversa. O papel de subserviência que era exigido àqueles homens negros pelos portugueses parece emergir na atitude daquele senhor ao ver a fotografia do europeu. Para além da obediência servil, tal atitude faz lembrar também a adoração/medo existente em certas religiões e seitas, onde exige-se um amor/temor incondicional para com alguma entidade divina.
Perguntamo-nos os motivos pelos quais a documentarista incluiu essas duas cenas em sua película, uma vez que nos parecem questionáveis referentemente aos problemas do colonialismo e a hipótese que levantamos reside no sentimento de amor filial que nutre pelo pai e nas lembranças de menina que tem por sua terra natal. Ademais, seu pai faleceu em 1971, poucos dias depois de Andringa deixar a prisão aos 24 anos. Embora Dundo seja dedicado à memória de seus pais, a figura materna pouco aparece, sendo mencionada quando mostra fotos de sua infância à Sofia, em contraste com a evocação das lembranças do pai, que era, de fato, quem exercia o poder de classe, de raça e de gênero naquela família/sociedade.
1. Conclusões
Conforme assevera Sontag (2004, p. 9), “Fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram uma foto”. É justamente essa condição de comprovação inerente à fotografia que notamos em Dundo, quando a realizadora apresenta retratos de sua infância como provas inequívocas que atestam sua origem, sua identidade, sua história. São imagens dela pequena, com seus pais, sua irmã, seus avós e em cerimônias religiosas que evidenciam que ela efetivamente experienciou aquilo que narra. Entretanto, é a forma como tais fotos são utilizadas na narrativa fílmica que indicam o viés adotado pela realizadora, mostrando sua perspectiva histórica.
Ademais, quando apresenta à filha a K10, há efetivamente uma coincidência de camadas temporais na voz over da narradora, ou seja, o tempo colonial e o tempo presente colidem, conforme analisa Stock (2018). As imagens que se encontram alojadas na memória da realizadora são enunciadas por sua voz over e contrastam com aquelas captadas pela câmera. Contudo, voltar àquele lugar após cinco décadas faz com que a antiga moradora comprove, no plano individual, que o que se lembra foi real e não criação de sua memória, como quando diz que “ainda se vê os restos” da divisão dos jardins, corroborando aquilo de que se lembra.
Andringa poderia, em voz over, apresentar as fotografias de sua infância diretamente ao espectador, porém, ao fazê-lo à própria filha, dá-se um efeito mais interessante concernente à transmissão da memória familiar. Sofia não viveu aquele passado colonial, portanto, é através dos relatos de sua mãe e das provas que as fotografias dão, dentro da perspectiva do filme, que ela absorve a história de seus antepassados. Além disso, esta estratégia deixa o documentário mais interessante para o espectador.
O ponto de vista da realizadora é aquele que prevalece. Amiúde, ela corrobora o que fala através da exibição de fotos, como, por exemplo, o fato de ter tido um animal de estimação selvagem, algo pouco comum dentro de um contexto citadino europeu – o de Sofia. Assim, “A foto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que algo existe, ou existiu, e era semelhante ao que está na imagem” (Sontag, 2004, p. 9). Logo, o documentário em questão, através dos fragmentos da memória e das vivências individuais da realizadora no Dundo, ao mesmo tempo que o coloca dentro da categoria de “geografia do retorno” (Stock, 2018), faz uso de fotografias como elementos de corroboração de uma verdade histórica, conforme asseveram Sontag (2004) e Guzmán (2017).
A memória de Paz Andringa é defendida pela filha quando ela apresenta a antigos funcionários negros daquela empresa fotografias envolvendo, ou não, a imagem do engenheiro. O amor que a filha nutre pelo pai é patente quando opta por manter trechos problemáticos que ainda sugerem uma certa hierarquia racial e social durante sua visita ao Dundo, dado que é a filha do antigo diretor geral que ensina e corrige o aposentado negro, fazendo questão de registrar no filme o seu equívoco, o que pode ser visto como uma mimetização da prática colonial da época em que ela pertencia à elite da Diamang no Dundo e gozava de privilégios. Além disso, o trecho em que o outro idoso beija a foto de Paz Andringa nos parece um tanto quanto questionável, pois, apesar de se posicionar contra as políticas segregacionistas e racistas da Diamang, a realizadora apresenta uma cena que impõe o reconhecimento de subserviência por parte do homem negro em presença da fotografia do homem branco, o que parece emular o discurso colonial da hierarquia de raças.
Em suma, fotografias são utilizadas como peças testemunhais de acontecimentos, isto é, elementos comprobatórios que podem incriminar ou justificar. Por mais tendenciosa que seja, uma foto carrega o pressuposto de que algo efetivamente ocorreu, fazendo com que a imagem reproduzida adquira status de evidência, dentro da perspectiva de quem as utiliza como base para a narrativa. Aquelas da infância da realizadora apresentadas no documentário corroboram a sua narrativa em relação ao seu passado e as que envolvem o seu pai acabam por despertar sentimentos ambíguos por parte de quem assiste, pois, oferecem uma leitura condescendente acerca do engenheiro e parecem ignorar questões problemáticas referentes ao colonialismo.
Referências bibliográficas
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Andringa, D. (Realizadora). (2009). Dundo, memória colonial [Filme]. LX filmes.
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Cunha, P. e Campacci, L. (2023). Another story from Africa: decolonizing the archive, photography and cinema. Em S. Camacho, F. Rosário e A.B. Morais (Orgs.). Archives in ‘Lusophone’ film (pp. 91-104). Edições Húmus.
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Macedo, I., Cabecinhas, R. e Abadia, L. R. (2013). Audiovisual post-colonial narratives: Dealing with the past in Dundo, Colonial Memory. Em R. Cabecinhas e L. R. Abadia (Orgs.). Narratives and social memory: theoretical and methodological approaches (pp. 159-174). CECS Universidade do Minho.
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Sontag, S. (2004). Sobre Fotografia. Companhia das Letras.
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Xavier, I. (2003). Cinema: revelação e engano. Em O olhar e a cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues (pp. 31-57). Cosac & Naify.
[1] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
[2] “Geografia Fílmica do Retorno e Política da História”. Tradução nossa.
[3] “Esboça uma geografia do retorno em que a cineasta revisita os locais do seu passado e da sua história colonial. Consequentemente, a produção de Andringa insere-se numa prática documental onde o regresso a um local específico de significado biográfico ou histórico é um movimento importante para o desenvolvimento do argumento do filme”. Tradução nossa.
[4] “Ao apontar para discursos de raça e identidade nacional, a cena situa a história individual de Andringa dentro do contexto sociopolítico muito mais amplo do colonialismo português em Angola no século XX”. Tradução nossa.
[5] “Ela levou sua filha consigo porque precisava de alguém com quem compartilhar as suas memórias e os resultados do confronto com as pessoas e os lugares de sua infância”. Tradução nossa.
[6] “A inscrição de camadas temporais divergentes nas imagens em movimento, nas quais se torna possível que passado e presente coexistam lado a lado”. Tradução nossa.
[7] “É realçada pelo uso do plano panorâmico, enfatizando a integridade do espaço e do tempo e sugerindo a possível coexistência do passado e do presente”. Tradução nossa.
[8] “O filme propõe (...) que diferentes presentes –o colonial e o pós-colonial– possam ganhar presença simultaneamente”. Tradução nossa.
[9] “Para além da sua dimensão de registo histórico, as fotografias são incorporadas na diegese fílmica num deslocamento que oferece alguns ‘detalhes’ evidenciados pelos mecanismos da linguagem cinematográfica, ultrapassando a intenção inicial do fotógrafo”. Tradução nossa.
[10] “Esta passagem da linguagem fotográfica para a cinematográfica promove um processo de ressignificação das imagens”. Tradução nossa.