Entre o Documental e o Poético: Uma Conversa com Pauliana Valente Pimentel
Between the Documentary and the Poetic: A Conversation with Pauliana Valente Pimentel
Catarina Patrício
Universidade Lusófona, CICANT, Portugal
catarina.patricio@ulusofona.pt
Resumo:
No atelier de Pauliana Valente Pimentel, no complexo dos Coruchéus em Lisboa, fotografias estão dispostas numa aparente casualidade. São vidas contadas em imagens, mas trespassa a tensão latente entre o documental e o poético — as subjetividades líricas que atravessam a objetividade da lente, transformam o quotidiano num espetáculo que acabou de terminar ou que está prestes a começar. Curiosamente é geóloga. Ainda que a fotografia seja determinante na ciência, foi na captação da geologia-humana que Pauliana Valente Pimentel encontrou a sua vocação: da sua obra transpira o cruzamento do universo onírico e o improviso narrativo, ainda assim real e concreto.
O percurso na fotografia começa em 1999, com a publicação de fotorreportagens para revistas de viagem enquanto ainda trabalhava como geóloga. Mas terá sido David Alan Harvey, fotógrafo da National Geographic e membro da Magnum entre 1997 e 2020, o impulso disparador da sua carreira na fotografia autoral. Contactou de perto ainda com Amy Arbus, Bob Sacha, Alex Majoli ou Erich Lessing, o que lhe permitiu refinar as estratégias plásticas, formais e técnicas, na constituição das fotonarrativas intensas que caracterizam o seu trabalho.
Abstract:
In Pauliana Valente Pimentel's studio, in the Coruchéus complex in Lisbon, photographs are arranged in an apparent randomness. They are lives told in images, but there is a latent tension between the documentary and the poetic - the lyrical subjectivities that cross the objectivity of the lens, transform everyday life into a spectacle that has just ended or is about to begin. Curiously, she's a geologist. Although photography is decisive in science, it was in capturing human geology that Pauliana Valente Pimentel found her vocation: her work exudes the intersection of the oneiric universe and narrative improvisation, which is nonetheless real and concrete.
Her journey into photography began in 1999, with the publication of photo reports for travel magazines while she was still working as a geologist. But it was David Alan Harvey, a National Geographic photographer and Magnum member between 1997 and 2020, who triggered her career in authorial photography. She also had close contact with Amy Arbus, Bob Sacha, Alex Majoli, and Erich Lessing, which allowed her to refine the plastic, formal and technical strategies used to create the intense photo narratives that characterize her work.
Palavras-chave: fotógrafa, fotonarrativas, fotorreportagem, fotografia autoral
Keywords: photographer, photonarratives, photoreportage, authorial photography.
F1. Pauliana Valente Pimentel no seu atelier, Lisboa, 2024. Fotografia de Catarina Patrício.
No atelier de Pauliana Valente Pimentel, no complexo dos Coruchéus em Lisboa, fotografias estão dispostas numa aparente casualidade. São vidas contadas em imagens, mas trespassa a tensão latente entre o documental e o poético — as subjetividades líricas que atravessam a objetividade da lente, transformam o quotidiano num espetáculo que acabou de terminar ou que está prestes a começar.
Nascida em Lisboa em 1975, Pauliana Valente Pimentel tem vindo a consolidar uma relevante carreira na fotografia. O seu trabalho encontra-se representado em diversas coleções de arte contemporânea em Portugal, publicou livros de autor, e recebeu, em 2015, o prémio de Artes Visuais da Sociedade Portuguesa de Autores na categoria melhor trabalho fotográfico com a série The Passenger. O seu trabalho esteve representado na Galeria 3+1 Arte Contemporânea entre 2007 e 2010, e na Galeria das Salgadeiras entre 2011 e 2017. Colabora atualmente com diversas galerias nacionais e internacionais.
Curiosamente é geóloga pela Universidade de Lisboa. Ainda que a fotografia seja determinante na ciência — desde logo reconhecido no seu dealbar com o “Relatório” de Dominique François Arago em 1839[1] — foi na captação da geologia-humana que Pauliana Valente Pimentel encontrou a sua vocação.
O percurso na fotografia começa em 1999, com a publicação de fotorreportagens para revistas de viagem, enquanto ainda trabalhava como geóloga — como por exemplo para a revista Grande Reportagem. Mas terá sido David Alan Harvey, fotógrafo da National Geographic e membro da Magnum entre 1997 e 2020, o impulso disparador da sua carreira na fotografia autoral num workshop em 2002. Foi depois sua assistente. Contactou de perto com fotógrafos prestigiados como Amy Arbus, Bob Sacha, Alex Majoli ou Erich Lessing em workshops em Itália e Lisboa, e ainda com Stephan Shore, Joan Fotcuberta ou Patrick Faigenbaum no Programa de Criatividade e Criação Artística da Fundação Calouste Gulbenkian em 2005, onde refinou as estratégias plásticas, formais e técnicas na constituição das fotonarrativas intensas que caracterizam o seu trabalho. Daí que, algo espontaneamente, tenha ensaiado a transposição do que explora na fotografia para o campo do cinema — Diz-se que Portugal é um bom país para se viver (2011), Youth of Athens (2012) e Entre Nous (2014), este último co-realizado com Hélène Veiga Gomes, são alguns exemplos dos filmes que realizou e de onde transpira o cruzamento do universo onírico e o improviso narrativo, ainda assim real e concreto, que lembra as etnoficções e de como este género cinematográfico se oferece materialmente à cultura visual.
Catarina Patrício: A distinção entre a fotografia como documento ou arte é nebulosa. Walter Benjamin, na “Pequena História da Fotografia,” comentando o impacto da fotografia em todos os aspectos da vida, i.e., como a arte é um campo entre outros que a fotografia revolucionou, diz: “os quadros, enquanto duram, só despertam interesse como testemunhos da arte de quem os pintou. No entanto, na fotografia deparamos com algo de novo e especial: [...], permanece algo que não se esgota como testemunho da arte do fotógrafo […], que continua a ser real hoje e nunca quererá ser reduzida a ‘arte’.” [2] Como te posicionas perante esta potência da imagem fotográfica, particularmente no retrato? Referes-te ao teu trabalho como fotografia ou como arte?
Pauliana Valente Pimentel: Começamos bem (risos). Eu acho que a fotografia é arte, é uma forma de arte. É a forma de expressão que eu uso, se bem que faça filmes, mas é a fotografia aquilo que eu gosto e que uso — a imagem fixa. Claro que há pessoas que fazem fotografia e talvez possa não ser considerado arte, porque não há um propósito, não há um pensamento por detrás. No meu caso, eu uso a fotografia como uma forma de me encontrar com o outro, com outros universos, com outros mundos.
Mas acho que há aqui uma coisa importante a dizer: desde pequena que eu desenho, ou seja, tenho uma ligação muito forte a outras expressões artísticas. Julgo que isso tem importância porque me faz ser mais sensível à estética. Sempre desenhei, pintei e até fiz o curso de desenho da Sociedade Nacional de Belas Artes. Sempre fui a muitas exposições, ver sobretudo pintura. Talvez mais depressa aprecio e gosto, quando estou num país diferente, de ir ver uma boa exposição de pintura do que propriamente de fotografia. Isto para dizer que, para mim, a arte está toda ligada. Mesmo a literatura, o cinema, a música, tudo está ligado.
Mas sou formada em geologia. Porquê fui eu para a geologia? Primeiro, os meus pais não quiseram que eu fosse para artes, não me deixaram. Eu, na realidade, gostava um pouco de tudo, mas tive que escolher algo que me fizesse não estar num escritório das nove às cinco, que pudesse ir para a natureza, explorar o mundo, viajar. Curiosamente, quando fiz o curso da Gulbenkian, quando fui chamada para a entrevista — vinha da geologia, e portanto não tinha tido nenhuma formação em fotografia — perguntaram para mim havia diferença entre a fotografia artística e a fotografia documental. Na altura, fazia fotografia de viagem e alguns projetos nos workshops realizados. Mas basicamente comecei a fotografar porque fazia viagens. Fotografava e depois trazia slides para casa e mostrava aos amigos e aos familiares.
Para mim, não há diferença. Acho que a fotografia é um modo artístico, é um modo de expressão, é arte. Mas isso também depende de como tu a fazes, e o pensamento por detrás é muito importante — isto é, o que tu queres dizer enquanto fotógrafa. Foi uma das coisas que aprendi no curso da Gulbenkian, com o Stephen Shore por exemplo. Ele disse-me que eu fotografo muito bem, e que tudo era muito lindo, da luz à composição. Mas é fácil fotografarmos bem quando estamos em viagem (risos). Tudo é bonito. No fundo, é como se eu estivesse a olhar de uma janela para fora. O Stephen Shore disse-me “mas eu quero saber quem tu és como autora, quem é a Pauliana.” No fundo, olhar para dentro, quem é a Pauliana artista, que tem algo para dizer, que lhe causa inquietude, que lhe causa questionamento. Deu-me, naquele momento, um clique e comecei a fotografar a minha intimidade, as coisas que me interessavam. Foi assim que eu comecei a criar o meu percurso, foi assim que fui para uma galeria de arte, e que entrei para o colectivo de fotógrafos, único em Portugal, a Kameraphoto. E para responder à pergunta, se me considero fotógrafa ou se artista, é indiscernível. Mas claro que há fotógrafos que não são artistas e que há artistas que são fotógrafos, ou não.
Catarina: Achas que a arte, enquanto expressão criativa, tem qualquer outra função para além de si mesma?
Pauliana: Eu acho que a arte só faz sentido se for também uma arte feita, pelo menos para mim, para o outro: para ser vista pelo outro, comentada, que lhe provoque uma reação, que provoque um questionamento, que reflita os tempos que são vividos no presente, de alguma forma com uma conotação social e política. Para mim, isso é que é arte. Mas até encontro arte nas pequenas coisas, como na natureza. Arte é para ser vista, é para ser apreciada, é para ser vivida e sentida. Portanto, basta ser.
Catarina: É curiosa a tua transição da geologia para a fotografia. Sentes que a tua formação científica ainda tem alguma influência na tua abordagem artística?
Pauliana: Sim, sem dúvida. Eu acho que na minha fotografia não deixo de ser cientista. Venho das ciências naturais, do estudo da história da Terra, de coisas que aconteceram há milhões de anos, sempre fui muito curiosa a tentar entender o mundo. Mas mesmo quando era geóloga, fotografava. Só que fotografava pedras. Coisas inanimadas — se é que são mesmo inanimadas. Esta questão do cientista ou da investigação na minha fotografia está completamente presente porque, na realidade, é isso que eu faço. Eu penso num assunto que me interessa, pesquiso, vou aos sítios. Antes preparo-me, faço sempre uma repérage. De resto o processo é muito intuitivo. Mas mesmo agora, que estou a fazer doutoramento, acho que se eu não tivesse vindo das ciências naturais e de ter feito este percurso, acho que não me aventurava a escrever uma tese.
Catarina: E a propósito do teu doutoramento, agora uma outra questão. Fotografia e Sociedade de Gisèle Freund, [3] — livro publicado em 1974 enquanto versão alargada da sua tese de doutoramento, uma das primeiras teses de doutoramento sobre fotografia, La Photographie en France au XIX' Siècle: Essai de Sociologie et d'Esthëtique de 1936 — analisa, entre outros aspectos, como a fotografia se tornou o meio de registo e de interpretação da realidade social. Com isso, Gisèle Freund avaliou o impacto do processo de racionalização[4] na instrumentalização deste media em si — em traços gerais da simultaneidade entre a evolução técnica da fotografia e a ascensão da burguesia pela democratização do retrato, percebido como mecanismo tanto de representação como de afirmação de status social, e do seu impacto na construção de um imaginário colectivo, levando-a a considerar questões éticas relacionadas com a responsabilidade do fotojornalista na representação social. Passados 88 anos, que paralelos vês entre a investigação de Gisèle Freund e a que te propões desenvolver em doutoramento?
Pauliana: Eu confesso que nunca li a tese, mas fiquei curiosa, sendo ainda para mais das primeiras tese de doutoramento em fotografia. Mas eu encontro absolutamente paralelos com o que tu disseste: a fotografia que eu faço é precisamente uma fotografia social, atual. E tenho um imenso cuidado a nível ético. Não posso dizer que faço fotojornalismo puro e duro. Isso já fiz, trabalhei para o Jornal i, fiz fotojornalismo diário. Mas na realidade esse fotojornalismo é muito fugaz, ou seja, é o toca e foge, as coisas acontecem rapidamente e tu não tens tempo de pensar, de aprofundar. O que eu faço, considero fotografia documental, autoral também, mas de facto há uma preocupação social, há uma temática, que é a que eu escolho, mas depois é preciso passar tempo, é preciso estar na intimidade, é preciso ter esse cuidado ético de ir ao encontro do outro. Por exemplo, agora na minha tese, e já antes o tinha feito nos Açores, estou a fotografar jovens adolescentes menores de idade, e portanto tenho de ter um maior cuidado, e que passa também pela autorização dos pais, passa pela ligação que eu estabeleço com eles, passa por perceberem o que é que eu estou a fazer, para onde é que as imagens deles vão – ainda para mais hoje em dia, a questão do uso de imagem de outros é muito complexa: representar a realidade através da fotografia tem muito que se lhe diga; eu própria, vindo do fotojornalismo documental, tento não alterar a realidade, mas mesmo dando uma conotação mais pessoal muitas vezes é um trabalho que é feito em conjunto com os meus retratados. E, portanto, esta questão do que é a verdade, acho que tem mais a ver com o que é que tu queres transmitir. Isso sim tem de ser verdadeiro: verdadeiro contigo próprio e com os outros.
Catarina: De facto o teu trabalho é conhecido por capturar momentos íntimos e autênticos. Como é que consegues estabelecer essa conexão tão próxima com os teus retratados, permitindo que se sintam à vontade diante da câmara?
Pauliana: (Risos) Normalmente perguntam-me sempre isso. Para já acho que tenho uma capacidade inata, que nasceu comigo. Acho que sou uma pessoa simpática, aberta, interesso-me genuinamente pelo outro, não é uma questão “agora vou estar aqui contigo porque preciso.” Claro que depois as relações têm o seu tempo, mas ainda assim eu continuo amiga, e escrevo a muitos dos meus retratados mesmo que já tenham passado 10 anos. Obviamente não a todos, mas esta intimidade, lá está, para mim a fotografia só faz sentido nesta intimidade com o retratado, só faz sentido se eu conseguir estabelecer esta proximidade. Eu passo muitas horas a conversar, ou simplesmente a estar; a fotografia só vem depois. Não posso dizer que é secundário, claro, mas que estar é uma parte importante, senão não estaria ali. Para mim o mais importante é o que eu experiencio com a pessoa, ou com as pessoas com quem eu estou. A fotografia é um “prémio” daquilo que eu experienciei, e que vivenciei, das situações. E acho que as pessoas sentem isso. Na realidade, também há outra coisa, e hoje em dia cada vez mais tenho de o fazer e que antes não era tão necessário, e que é explicar inicialmente o que é que eu estou a fazer, porque é que eu o quero fazer, como, quando, e com que finalidade. Outra coisa ainda me parece importante, e que aprendi com o tempo: não é só receber, mas também dar. Geralmente tenho mais do que um encontro com os retratados; imprimo e ofereço fotografias ainda com o processo em desenvolvimento. E lá está, esta troca é muito importante, sobretudo porque eles perceberem que eu tenho um interesse genuíno, e que gosto de ouvir. Sim, eu gosto de ouvir, eu sou mais de ouvir do que falar. Falo quando é preciso, mas gosto mesmo de ouvir.
Catarina: Parece-me que o trabalho de campo e as estratégias etnográficas são centrais no teu trabalho. Consideras-te uma fotografa-viajante?
Pauliana: Sim, é mesmo isso: considero-me sobretudo uma fotógrafa-viajante, mesmo estando, mesmo estando aqui. Todos os trabalhos são uma viagem.
Catarina: Qual foi a viagem que mais profundamente te marcou? Até porque, como dizias há pouco, dás muito de ti nos trabalhos. Serão também as tuas obras uma espécie de declaração autobiográfica?
Pauliana: Sim. E voltando à viagem, posso dizer que todas as viagens me marcam — e ficas sempre com um gostinho da última que fizeste, há sempre qualquer coisa da viagem que está aqui muito perto. Para te falar da última que fiz agora há pouco, e que foi uma reportagem, não foi um trabalho que eu tenha decidido ir fazer: estive nas Maurícias, foi muito rápido, mas fiz uma coisa, lá está, que calhou mas que para mim foi absolutamente mágica; eu consegui nadar com baleias... bem até chorei, foi muito emocionante. Mas, lá está, aconteceu por causa daquele meu lado aventureiro. Então estou num táxi com um tipo que me vai levar a um sítio, e meto conversa: “o que é que tu fazes, o que é que estás aqui a fazer, não é?” “além de táxis, tenho um barco.” E eu perguntei logo: “nadar com baleias, isso é possível?”, a que ele responde “Como assim? Não sei se é bem possível em termos governamentais, mas nós fazemos.” “E eu posso ir”, “quando é que queres ir?”, “Amanhã!” E foi uma cena... completamente... foi único... mágico. Eu tenho este lado da viagem e da aventura.
Também o Mali. Na altura eu ainda era geóloga, e queria muito lá ir. Já tinha ido ao deserto da Índia, e já feito corridas em camelos com os guias. Nas minhas viagens, eu não vou à turista. Normalmente vou sozinha, depois encontro uns putos, são eles que fazem de guia. Assim estou mesmo nos sítios, e a dormir com as pessoas. No Mali, fui com a ideia de ir para o deserto do Sahara, Timbuktu, Araouane, foram 500 quilómetros de camelo. Então eu fiz estes 500 quilómetros de camelo disfarçada de Tuareg. Cheguei a Timbuktu, encontrei Sindouck, um Tuareg culto, e estive uma tarde inteira de conversa e lá o consegui convencer, porque nenhum ocidental tinha feito esta viagem dizia ele, ainda para mais em pleno Agosto, em que podiam estar 45º à sombra, ou mais. Ele lá se deixou convencer, porque eu disse que já tinha ido a outros desertos... à Índia. E assim foi, fiz um contrato escrito à mão e assinado. Enviei um telegrama à minha mãe a avisar o que ia fazer, e lá fui eu e o meu namorado da altura, que iria ser o meu futuro marido, o Nuno Pimentel, mais o guia, um guia Tuareg – que só aceitou fazer a viagem porque precisava do dinheiro e porque neste percurso encontraria a irmã, que vive num entreposto, Arouanne, a caminho da maior minha de sal de África, a mina de Toudenni, onde ainda existem caravanas de Tuaregs, e que é uma grande riqueza. Eu quis fazer este percurso. Não fui mesmo até à mina, fui até ao entreposto, porque até à mina seria um mês de viagem. Fui até a um entreposto, onde descansam, e que fica no meio do nada. Este guia, precisava também do dinheiro para visitar a mulher na Mauritânia, e foi contrariado. Fiz 500 quilómetros de camelo, tive que me disfarçar de Tuareg, porque podia ser raptada, era mulher, etc. Nos primeiros três dias, quatro, ainda vez umas ervinhas, uns arbustos. Mas ao fim de três dias, é o zero absoluto, o silêncio dói nos ouvidos, é uma sensação de vácuo... O nosso dia-a-dia era este: acordar às seis da manhã, víamos o guia desaparecer — porque os camelos são atados às patas da frente, mas mesmo assim dispersam à procura de alguma coisa para comer; então via-se o guia a desaparecer à procura dos camelos, um ia para o norte, outro ia para o sul, outro ia para não sei onde — e nós ficávamos ali sozinhos. Depois ele voltava com os camelos, fazíamos um pequeno almoço, um chazinho, eu já não me lembro bem, umas tostas, depois andávamos até às 11 da manhã, ele montava uma tenda com paus e um cobertor, ficávamos lá dentro até às quatro da tarde, sem nos conseguirmos mexer. E ainda almoçávamos – massa com areia ao almoço e arroz com areia ao jantar (risos). Às quatro da tarde voltávamos a andar de camelo, o camelo anda a quatro quilómetros por hora, até às dez da noite; então, arrastávamo-nos para uma duna para dormir, nem tínhamos tenda, dormíamos ao relento com aquelas estrelas inacreditáveis... E foi a coisa mais dura que fiz na minha vida; era a autêntica sobrevivência: não podias tomar banho, a água que tinhas era só para beber – eu ainda desinfetava no início a água, mas depois já... íamos a um poço, onde estavam às vezes mais de 50 camelos a beber uma água castanha. Eu ia lá... filtrava com o meu turbante, mas bebia aquela água mesmo assim. Felizmente não me aconteceu nada, aliás, quando voltámos, o Sindouk que organizou a viagem estava em lágrimas, a chorar porque achava que não íamos voltar vivos, virou-se para mim e disse – tu agora és uma como nós, és a minha irmã Tuareg. E foi difícil, porque a meio da viagem o guia começou a urinar sangue. Pensei: isto é uma infecção urinária. A única coisa que tinha comigo, de importante, eram medicamentos. Então dei-lhe os meus antibióticos e, ao fim de três dias, ele já estava bem. É que sem ele nós morríamos! Não tínhamos mapa, ele guiava-se pelas estrelas, e pelo sol — íamos em direção ao norte. Houve por acaso um mistério: durante três noites, à mesma hora — como nós íamos em direção ao norte víamos bem a estrela polar — e às dez da noite, eu escrevi esta história, sempre à mesma hora, aparecia uma estrela superluminosa, que aumentava de tamanho e depois desaparecia. No primeiro dia ficávamos, todos uns a olhar uns para os outros em silêncio absoluto. No segundo dia a mesma coisa — e eu, pronto, uma coisa inexplicável. O guia só dizia choses des blancs. Se calhar era uma cena qualquer... bem, tanto eu como o Nuno éramos cientista, sabíamos que aquilo não eram satélites. Era uma cena muito estranha, como eu nunca vi. E aconteceu, três dias consecutivos, depois deixou de acontecer...
Catarina: E o fim da viagem, como é a sensação de fim de viagem?
Pauliana: É uma boa pergunta (risos). Fomos até ao entreposto e, pela primeira vez em muito tempo, comemos uma galinha raquítica... e ouvir Tamasheq, e os putos... aquilo basicamente eram umas casas, uma mini aldeia com uma mesquita, uma escolinha, parecia que estava no fim do mundo. Quando chegámos aí, lá estava a irmã dele que nos tratou muito bem. Mas antes de durante a travessia do deserto ele foi sempre muito agressivo comigo, porque era muçulmano e eu era mulher, e ele esteve sempre a dizer que eu não ia conseguir. Quando chegámos ao entreposto eu passei-me e disparei a correr deserto fora, discuti com ele, acho que foi a primeira vez que eu discuti assim com um guia. Ele veio correr atrás de mim... mas considerou-me mais. Passados uns anos voltei a Timbuktu e o Sindouk recebeu-me a mim e a uns amigos como “reis,” e disse eis a minha irmã! No regresso para Timbuktu, eu, curiosamente, tinha um misto de sensações entre o alívio, claro, pela sensação de regresso à civilização, mas ao mesmo tempo de tristeza. Aliás, é sempre assim nas minhas viagens: há sítios de onde eu não quero ir embora. Eu lembro-me, quando era mais nova, na primeira viagem que eu fiz ao Tibete e ao Nepal, lembro-me de estar numa selva no Nepal, muito bonita, onde também fomos ver tigres, e no fim eu não me queria vir embora, antes desatava a chorar — “eu não quero ir embora, de eu querer ficar,” dizia eu ao Nuno. “Mas Pauliana, nós temos de voltar. O que é que vais ficar aqui a fazer?”
Catarina: Sentes que a fotografia não será então esse tesouro de trazeres contigo todos estes sítios?
Pauliana: Completamente. Aliás, se não fotografasse acho que já me tinha esquecido de muita coisa. Claro que ficam memórias, mas a fotografia é mesmo uma maneira de imortalizar um certo momento, certas pessoas, como, por exemplo, a Suzy [aponta para uma fotografia na parede], que faleceu pela SIDA. Enfim, são pessoas únicas que tiveram uma função na tua vida muito importante. Por exemplo, no Mali, quando lá regressei, foi marcante ter conhecido o Toumani Diabaté, ter ficado na casa dele, a questão da música. O Mali, acho que é o país em que eu senti mais ligação. E estive quase a morrer no Mali... da segunda vez estive com febre tifoide, em Niafunké, a terra do Ali Farka Touré, também no meio do deserto e do rio. Felizmente fui salva pelo Ali Farka, que já estava morto mas que construiu um hospital, o único hospital que existia na terra dele e num raio de mais de 500 quilómetros. E fui salva, mas tenho noção que podia ter morrido. Curiosamente também foi no Mali, e eles são muito ligados à feitiçaria, à terra e às coisas ancestrais, que uma velhinha me chamou e disse que leu nos búzios que no ano seguinte eu iria ser mãe. Eu achava que ela estava a gozar. Mas não. Fui mesmo mãe. Tive febre tifoide, o meu período desregulou por causa da mefloquina que tomei, os contraceptivos não funcionaram e, entretanto, fiquei mesmo grávida, não foi planeado. E isto tudo é muito bonito.
O Mali talvez seja o país... só ainda não voltei porque está muito perigoso. Cheguei a perguntar ao Toumani, há uns anos atrás, mas ele desaconselhou desde que houve a ocupação do Daesh. Aquilo está muito complicado. Mas desde que tenho uma filha já estou menos aventureira. Há certas coisas, quer dizer, ainda há pouco tempo fui mergulhar com baleias (risos), mas já não faço certas coisas. Cheguei a arriscar em alguns momentos, andar em estradas que são precipícios... e ainda bem que o fiz, porque se não arriscas também não vives a cena a sério. Não vives a realidade. Mas os filhos mudam-nos muito. Mudam-nos para melhor, mas nesta questão da aventura mudam-nos, porque tu sabes que tens alguém que depende de ti e que precisa de ti. O risco já tem de ser ponderado.
Catarina: Falando em jovens, que é um campo que tu gostas muito de explorar, também em projetos como Jovens de Atenas abordas questões sociais contemporâneas como o impacto da crise financeira nos jovens. Que critérios balizam a escolha dos teus temas? E quais os temas que te movem?
Pauliana: Os Jovens de Atenas realmente foi o primeiro trabalho em que eu pensei na juventude de uma forma séria. Foi quando rebentou a crise e começou a falar-se da Grécia. A Sara já tinha nascido, na realidade nós começámos a ouvir falar da crise em 2008, mas nestas questões mais sérias, acho que foi mais ou menos em 2011. Aliás eu pertencia ao coletivo Kameraphoto, tínhamos atelier na Rua da Vinha no Bairro Alto, também já estava numa galeria, e já tinha abandonado a geologia. Estava a viver a minha fotografia em pleno. Esta questão do futuro, da juventude e da crise, teve a ver com o convite que a Kameraphoto recebeu dos Encontros de Imagem de Braga — era o ano da juventude e eles queriam que o nosso coletivo fizesse um trabalho sobre a juventude. Eu já andava pensar muito nesta questão da crise na Grécia, estava a afetar-me, eu própria também estava em crise e tinha acabado de ser mãe, etc., como alguns dos jovens retratados. Só havia dinheiro para produção, como é costume. Candidatei-me então a uma bolsa Gulbenkian, porque eu queria mesmo fazer este trabalho e fui para a Grécia com uma amiga minha para filmar, porque eu também achei que era importante gravar o testemunho sobre a crise. Estive um mês em Atenas. Não conhecia nada. Aluguei uma casa no centro e depois fui encontrando jovens, lá está, no meio da rua e por empatia. Depois deste trabalho, que me deu imenso gozo e que foi incrível, esta questão da juventude não me largou. Rapidamente surgiram convites no seguimento deste projeto, mas eu vou sempre adaptando os convites àquilo que eu quero fazer. Fui contratada como fotógrafa para um projeto europeu Cosmic Underground. Tinha de fazer a reportagem de uma viagem de comboio pela Estónia, Letónia, Lituânia e Polónia. Era um projeto artístico, mas feito por um astrofísico, uma viagem de comboio em que os vagões eram instalações e havia uma história, um script, sobre a criação do universo. O comboio parava nas principais cidades destes países e havia dois espetáculos por noite. Eu fui contratada para fotografar as performances, instalações, etc., e a vida do comboio, os artistas, o público, e tinha que alimentar o site todos os dias. No fim da viagem apresentei um slideshow em Guimarães, na Capital Europeia da Cultura. Só que foi um trabalho muito difícil, eu estive quase para desistir ao fim de alguns dias. Era um comboio de carga, muitas vezes parava no meio do nada, não havia eletricidade, eles falavam sobretudo polaco, estavam-se nas tintas. Como tinha de alimentar o site todos os dias, quando ficávamos parados, lá tinha que ir com a minha mochilinha, com o meu material, à terra mais próxima, trabalhar e voltar... a rezar para que o comboio ainda estivesse ali. Não havia duche, só havia uma casa de banho, eu era a única mulher, eu e a cozinheira. Os tipos, no fim dos espetáculos, bebiam vodka até de manhã, tinha mesmo que fechar o meu vagão para não haver problemas. Mas pronto, eu nestas deambulações não desisti, andava com a minha médio formato — nos meus projetos pessoais ainda trabalho com a médio formato — e fotografava aquilo que me aparecia. Como eu vinha da série dos Jovens de Atenas, e muitos dos artistas eram jovens, o que eu fazia era dizer-lhes: “olha, quando tu parares na tua terra, eu quero ir contigo a casa, fazer-te um retrato.”
Era um bocado toca e foge. Não foi como nos Jovens de Atenas, em que eu tive tempo de estar com eles, ia à casa deles, à escola, à universidade. E no entanto fui retratando outros jovens, os jovens do Norte da Europa. O trabalho The Passenger ficou na gaveta até um dia me ligaram do hotel e apresentei-o — porque eu gosto que as coisas tenham sentido, sendo um trabalho de viagem. Foi com este trabalho, o The Passenger que estava na gaveta, que ganhei o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores. Depois comecei cada vez mais a retratar os jovens de diferentes países, com diferentes temáticas.
Com o Quel Pedra, a minha ideia também foi fotografar jovens. Quando lá cheguei e descobri que havia um grupo de jovens transgénero, fiquei completamente apaixonada. Foi em Cabo Verde, na Ilha São Vicente. Foi um trabalho muito importante, porque fui depois nomeada para o Prémio Novo Banco e voltei lá para complementar o trabalho. Bem, este trabalho já esteve em imensos sítios, entrevistas, etc. Publiquei um livro. Este trabalho tem uma história... eram uns 10 jovens transgénero, entre os 15 e os 20 e poucos anos. A Suzy era a minha melhor amiga, era a mais pobre, que vivia mesmo no cimo de um monte, sem água nem luz, numa casa de latão, com uma cama, enfim. O seu dia-a-dia: acordava às 5 da manhã, tomava um banho de balde, fazia jogging, por isso ela tinha aquele corpo, e depois ia trabalhar como mulher-a-dias na casa de uma senhora. Ao fim da tarde voltava, punha o seu melhor vestido, e lá íamos curtir para a casa de amigos, ou até à praia. Ela fazia sempre questão de me levar à casa, em segurança, imagina. Uma pessoa incrível.
Catarina: Quanto tempo ficaste lá?
Pauliana: Da primeira vez foi uma residência artística, fiquei 10 ou 15 dias e, quando soube da nomeação para o prémio, usei esse dinheiro para voltar lá. Da primeira vez estive em 2014, depois voltei em 2016, quando fiz a exposição, e estive por lá um mês. Lá está, foi à minha maneira: a viver. Só não dormia nas suas casas. Da segunda vez, como já tínhamos uma relação de amizade, mudei-me mesmo para o bairro onde vivem para estar o máximo de tempo com estes jovens.
Catarina: Então, podemos dizer que os teus projetos foto-narrativos, autorais, são motivados por causas específicas?
Pauliana: Sim.
Catarina: O que é que te move? Haverá algum território social que consideres escorregadio e que não queiras de todo fotografar?
Pauliana: Não, sinto-me apta a todos os terrenos. Depois deste trabalho, do Quel Pedra, um ano depois da exposição no Berardo, a Suzy faleceu de sida num hospital, sozinha na cama. Fiz então o livro: o livro permite ter mais imagens, criar outro tipo de história, enfim. Mas, voltando ao que perguntavas, não, não há nenhum terreno onde não queira fotografar.
Fiz depois um trabalho os jovens na ilha de São Miguel, nos Açores, e aí interessou-me alargar a outros universos. Eu podia ter feito um Quel Pedra dois, podia ter sido o Quel Calhau em Rabo de Peixe (risos), mas eu não me queria repetir. Então decidi: eu quero fotografar todo o tipo de jovens, dos mais betos, porque há em São Miguel aquelas famílias que vivem em autênticos museus e interessa-me também esse mundo, por esse mundo da alta burguesia, quase reis, reis e princesas — para veres a ideia, um deles comia em talheres de prata. Sim, gosto de fotografar todos os mundos e também sei estar em qualquer mundo, dos mais betos aos mais pobres. São pessoas, e realmente o que me interessou na juventude Micaelense foi essa estratificação social muito vincada: os mais ricos não se misturam com os do meio, e com os mais pobres muito menos. Eu queria era pôr em diálogo estes jovens e perceber realmente se há diferenças e que diferenças são essas. Ou não há diferença nenhuma. Na galeria, todas as fotografias estavam do mesmo tamanho, convidei os todos, vieram todos, misturei-os, senti a galerista nervosa, mas a verdade é que foi um diálogo bonito. Havia uma fotografia interessante: comum a todos era o liceu. O liceu é aquele sítio onde não há barreiras sociais nem estratificações, todos eles conheciam aquela sala de aula onde estudaram biologia, onde estavam os peixes embalsamados. Entretanto uma coreógrafa amiga minha, a Vânia Rovisco, que também lá estava em residência no Walk & Talk, fez um espetáculo no Teatro Micaelense, e eu mostrei-lhe um vídeo dos meus meninos lá de Rabo de Peixe a dançar no meio da rua. Ela ficou maravilhada e quis incluí-los no espetáculo! Então, às tantas eu levo-os para Ponta Delgada e eles fazem parte do espetáculo, sem ensaiar nem nada, e eles nunca tinham estado no teatro de Ponta Delgada. Depois ainda os levei à noite, para irem para a pesca. É isto que eu adoro: pôr as pessoas em diálogo, confrontadas com a sua condição mas da boa maneira.
Mas na minha fotografia eu não procuro o lado triste. Eu podia mostrar um lado muito triste, porque eu vejo coisas muito hardcore: no trabalho que eu fiz sobre os ciganos, um dos últimos que eu fiz, vi pessoas que vivem em condições que a gente não imagina, e que dói: casas feitas de madeira sem telhado, sem luz ou água, onde as crianças dormem três na mesma cama e os pais dormem dentro do carro... enfim. Eu não os posso salvar. Normalmente não interfiro, ou seja, sei que não posso salvar o mundo e não interfiro. Dou-te um exemplo: em Rabo de Peixe, a Nina, que era transgénero, estava à porta de casa toda maquilhada e com uma peruca, eu passo, vejo-a, vou ter com ela e mostro-lhe o trabalho do Quel Pedra. Fiz-lhe logo uma fotografia e, às tantas, chega o pai a casa. Apresenta-me um irmão que estava lá, a mãe, que tinha uma enorme imagem de Fátima, são muito religiosos, e quando chega o pai, entra, cumprimenta-me, cumprimenta a mãe, passa pela filha, é como se não o visse, não lhe fala, ignora-o completamente. Claro que tu tens vontade de ir lá ter com a senhor, mas não eu não posso fazer nada. Eu estou ali a mais. Eu tento, e é o que me que me sai naturalmente, mostrar o lado digno das pessoas, o lado belo, as situações bonitas. O decadente a mim não me interessa: fotografar uma pessoa “podre de bêbada,” isso não me interessa. Se me convidassem para fazer um trabalho sobre toxicodependência, iria ter alguma dificuldade, porque não é o que me interessa explorar. No Quel Pedra, por exemplo, havia um grupo de jovens, já adultos, mais velhos do que os meus retratados, e que entravam numa cena mais hardcore de droga, de prostituição, já me pediam cenas. Eu não pago para fotografar. Não pago. Posso depois oferecer coisas, e ofereço, como uma fotografia ou um livro, mas pagar para fotografar não. Há fotógrafos que o fazem, não tenho nada contra isso mas, lá está, acho que isto tem de ser um “dar e receber.”
Catarina: Falaste do festival Tremor Walk & Talk, da tua investigação de doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, ganhaste bolsas de criação artística da Gulbenkian e da DGArtes, portanto grande parte do teu trabalho decorre destes projetos financiados e do apoio de importantes fundações, ou de apoios públicos à criação artística. Como vês o papel das instituições na promoção da arte em Portugal?
Pauliana: É fundamental e acho que há poucas instituições e que há poucos apoio. Lá está, não digo que tive sorte porque não é sorte, tu fazes a tua sorte, mas, no curso da Gulbenkian da Criação e Criatividade, que só aconteceu em dois anos, concorri e fui escolhida — e foi por causa disso que me tornei fotógrafa, se não continuava geóloga. Bem, iria sempre ser fotógrafa mas seria de outra maneira. Mas foi através desse curso que eu percebi que era mesmo isto que eu queria fazer e que era importante dar o salto. E percebi que o apoio das instituições é essencial: quando eu quis fazer o Jovens de Atenas, havia apoio para produzir mas não havia apoio para viagem e portanto todos estes projetos só são possíveis. Também o Entre-Nous, que foi um projeto que eu fiz entre Lisboa e Paris, uma coisa que queria muito fazer porque já lá dava workshops e, para fazer este retrato desta rua, a rua do Bem Formoso no Martim Moniz, e um paralelo numa rua de Paris, a Rue Myrha, na Goutte D’Or porque a Hélène é de Paris e antropóloga, isto só foi possível com o apoio. Só agora com a bolsa de doutoramento é que eu tenho um ordenado fixo. Portanto é sempre uma luta. Porque as vendas são inconstantes, é muito volátil quer eu tenha galeria quer não. E procurar apoios também te obriga a pensar, a saber escrever: eu dou aulas na ETIC, agora muito pontualmente, onde os preparo para o futuro; ensino a criar um site, a escrever um projeto, a fazer uma candidatura, depois dou exemplos. Ou uma candidatura a apoios Gulbenkian, da DGArtes já é um bocado mais complexo, já é suposto ser para pessoas com carreira. Mas é fundamental saber escrever e pensar, porque muitos têm ideias interessantes, e querem realmente fotografar, mas fotografar requer pensamento, não é à toa, requer um pensamento, um projeto, requer viagens, requer financiamento e, portanto, estas instituições são fundamentais para apoiar os artistas. Depois também têm de promover o teu nome, porque não é só fazer o trabalho, há que poder mostrar ao público em geral. Agora em Agosto, o meu mais recente video, uma curta metragem “New Age Kids” foi um dos selecionados para o Festival Fuso, e que faz parte da série que estou a desenvolver para o doutoramento.
Catarina: Como surgiu a vontade de expandir as tuas fotografias para o cinema?
O cinema parte da necessidade de “dar vida” aos meus retratados, pô-los em movimento, em ação, ou em diálogo com o espectador, ou situações que a fotografia não consegue transmitir. A maior parte das vezes são mais vídeos experimentais, curtas metragens que acrescentam algo às fotografias quando são mostrados em conjunto. Acrescentam não substituem ou repetem.
Catarina: uma última pergunta: este número da Fotocinema é dedicado à representação das mulheres europeias na fotografia. Nan Goldin, Diana Arbus ou a filha Amy Arbus, são notáveis referências norte-americanas. Sentes que vivem no teu trabalho? E que fotógrafas europeias podes destacar?
Pauliana: A Amy Arbus foi minha professora. Curiosamente, como eu não vinha da fotografia, quando eu fui para o curso da Gulbenkian, as minhas referências eram muito mais da pintura do que da fotografia. E aí, quando começam a olhar para as minhas fotografias diziam “o teu trabalho faz muito lembrar a Nan Goldin”. Vou ser muito sincera, nessa altura eu não sabia quem era a Nan Goldin, imagina! Lá está, se calhar por causa da minha veia de investigação, depois comecei a ver tudo. Nan Goldin, obviamente, é uma referência, mas quanto aos temas, ela fotografava-se a ela própria, o mundo dela, a droga, a toxicodependência, a decadência, se calhar no caso dela um lado mais decadente. Mas eu percebo perfeitamente a comparação e cada vez gosto mais, não apenas fotograficamente, mas o seu lado ativista. Agrada-me o seu lado ativista, deu-lhe um brilho, uma força especial. Porque ela poderia ter se deixado ir — quase todos os seus amigos morreram de sida ou pela droga, mas este lado social que ela ganhou, e de intervenção, eu cada vez mais aprecio isso nos artistas. Diana Arbus, claro que sim. E eu identifico-me imenso com ela, mais do que com a Nan. Não a conheci, mas a sua maneira de ser, como vai aos sítios... dou sempre como exemplo aos meus alunos. Às vezes não percebem bem, não é uma fotógrafa muito entendida. E depois do curso da Gulbenkian, eu perguntei ao David Alan Harvey se eu devia fazer um curso ou ir para a faculdade, e ele disse “não percas tempo com isso, tu já fotografas muito bem, já sabes muito bem o que tu queres. Vai fazer workshops com fotógrafos de que gostas.” E assim fiz um primeiro workshop na Toscânia, onde a professora era a filha da Diana Arbus, a Amy Arbus, que, curiosamente, um dia diz-me, “Pauliana, tu fazes-me lembrar da minha mãe, a maneira de falar e de andar, e por isso eu gostava muito de te fotografar.” Então, eu passei uma tarde inteira com ela, a ser fotografada por ela. Foi muito interessante ver a maneira como ela o fazia. Porque ela fotografou-me com tudo pensado: trazia um caderninho com imagens de mãos, de poses, depois o vestuário, “veste esta roupa, e agora põe a mão assim” — isto porque ela influenciava-se nos desenhos, nos quadros, nas proporções, nas composições da história de arte, e recriava nos seus retratos. Isto quando eram cenas encenadas, obviamente.
Muito importante para mim foi o David Alan Harvey. Um dia levei-lhe os meus slides, escolhi alguns. O curso era frequentado por fotógrafos profissionais e, quando lhe mostro o meu trabalho, ele elogia-o à frente de todos eles. Ficou muito curioso. Depois o David quis ficar aqui em Portugal porque estava a acabar um livro sobre a diáspora ibérica, o Divided Soul, e pediu-me conselhos de sítios onde ficar. E eu: “podes ficar em minha casa!” Então, de repente, tenho um fotógrafo “à séria” a fotografar a minha vida, os sítios onde eu ia. Depois pediu para fotografar bullfighters, os forcados, ok, então podemos ir ali. Eu ia lhe dando dicas, ia fazendo, no fundo, e fui, a sua assistente em Lisboa. Fui assistente, fui musa, fui guia. Somos amigos até agora. Depois fui fazer um workshop com ele na Toscânia de como fazer um livro fotográfico. E foi assim.
Voltando às mulheres, mulheres europeias na fotografia, quero destacar a Patrícia Almeida, que já faleceu. Para além de ser minha amiga, gosto imenso da fotografia dela. Mesmo muito. Desde as viagens à maneira como ela fotografava. É uma das pessoas de quem eu falo sempre nas minhas aulas. Também a Viviane Sassen, que eu adoro. Ela mistura fotografia com pintura. Eu, por acaso, até tenho ali um livro dela, vou-te mostrar, vais adorar. A Viviane Sassen cresceu em África, vive em Amsterdão, e é muito cuidadosa com a sua fotografia. Adoro a composição. Às vezes, antes de fotografar qualquer coisa, vou ver fotografias dela, inspirar-me na composição, nas cores. Nos Estados Unidos, a Olivia Bee. Mas essa é americana. Mostro aos meus alunos, porque acho que é uma boa referência, é uma miúda que fotografa com analógicas, point and shoot. E, entretanto, pelo trabalho pessoal dela, foi escolhida pela Converse para fazer uma publicidade e, de repente, está a fazer publicidade, das mais bem pagas, para além de que também faz vídeos publicitários de músicos, etc. Incrível essa miúda. Também estou fascinada pela britânica Nadia Lee Cohen, uma artista fotógrafa, que também faz filmes, o livro Woman é maravilhoso. A Sul Africana, Kristin-Lee Moolman, também ênte a mim stin-Lee Moolman, tamblivro " amigos como "oudenni.olaborada com diversas galerias nacionais e internacionaié, actualmente, uma referência para mim.
E encontro também uma grande referência na Sophie Calle. Se calhar agora ainda mais porque ela tem aquele lado muito conceptual. Ela é, sobretudo, uma fotógrafa conceptual, que vive muito do texto, da fala, da escrita. E eu cada vez mais gosto disso. Também é uma grande artista de quem eu falo sempre nas minhas aulas, e mostro vídeos. É corajosa, metia-se nas cenas. Tem um lado muito autobiográfico: adoro aquela série Esquisite Pain, do Japão, e depois o namorado terminou a relação, e ela carimbou as fotografias, 92 dias antes e 92 dias depois da infelicidade. Lá está, é conceptual, cerebral, e cada vez mais acho que a fotografia tem de ter esse lado. Cada vez mais aprecio que a fotografia esteja ligada ao pensamento.
F2. New Age Kids, Lisboa, 2024. Fotografia de Pauliana Valente Pimentel. © Pauliana Valente Pimentel.
[1] No “Relatório,” Dominique François Arago apresentou a invenção do daguerreótipo à Academia de Ciências francesa, legitimando a fotografia como uma inovação tecnológica crucial e na intersecção com a ciência.
[2] Benjamin referia-se à “aura” do retratado do século XIX. Como explica mais à frente no ensaio: “Os primeiros seres humanos reproduzidos entravam no espaço da fotografia em estado virgem, ou melhor, anónimo. Os jornais eram ainda objetos de luxo que raramente se compravam, lendo-se mais nos cafés, e o processo fotográfico ainda não havia se tornado um instrumento deles; assim, só muito poucas pessoas viam o seu nome impresso. O rosto humano tinha uma auréola de silêncio na qual repousava o olhar.” Cf. Benjamin, W. (2017). Pequena história da fotografia. In J. Barrento (Ed. & Trad.), Estética e Sociologia da Arte. Autêntica Editora.
[3] Gisèle Freund (1908-2000), fotógrafa e fotojornalista francesa nascida na Alemanha, foi pioneira na análise repercussão entre a fotografia e as sociedades que documentam, investigando a forma como a fotografia molda a percepção pública e a memória cultural. Ao combinar a análise histórica com a análise sociológica, Fotografia e Sociedade lançou importantes fundamentos para a compreensão da fotografia não apenas como uma forma de arte ou técnica, mas como um mediador de relações sociais.
[4] O processo de racionalização, introduzido por Max Weber para definir a construção da atividade económica capitalista, refere-se, como se sabe, às transformações estruturais experimentadas pelas sociedades modernas — caracterizadas pela substituição progressiva das explicações mágicas e mitológicas por explicações racionais e científicas (o chamado “desencantamento do mundo”), pelo desenvolvimento e institucionalização de formas de conduta orientadas pela racionalidade formal, e pela modernização da sociedade e cultura ocidental. Este processo foi largamente impulsionado pela matematização e refinamento das técnicas de cálculo, pela explosão de áreas científicas e especialização do conhecimento, pelo recurso a tecnologias de controlo de processos sociais e naturais, pela burocratização geral das instituições e pela despersonalização das relações sociais. Segundo Weber, a racionalização está na base da construção do capitalismo, da explosão dos centros urbanos e da reordenação das organizações tradicionais.