Das revistas ilustradas ao fotojornalismo independente: tinerários da prática fotográfica no Brasil do século XX[1]
De las revistas ilustradas al fotoperiodismo independiente: itinerarios de la práctica fotográfica em el Brasil del siglo XX
From illustrated magazines to independent photojournalism: itineraries of photographic practice in Brazil of the 20th century
Ana Maria Mauad
Universidade Federal Fluminense, Brasil
anammauad@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8973-5238
Silvana Louzada
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - IFRJ, Brasil
silvanalouzada@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9050-9772
Luciano Gomes de Souza Júnior
Universidade Federal Fluminense, Brasil
lucianogsouzajr@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-0398-6552
Resumo:
No Brasil, ao longo do século XX, as fotografias publicadas nas páginas de revistas e jornais modelaram um espaço público visual, em que fatos e fotos se conjugavam na narrativa dos acontecimentos. A cidade do Rio de Janeiro, capital brasileira até 1960, foi o espaço privilegiado para a institucionalização da prática fotográfica, pois nela se concentravam, desde o século XIX, os principais estúdios fotográficos, bem como as casas editoriais responsáveis pela circulação e comercialização de impressos.
Neste artigo abordamos os itinerários da fotografia pública no Brasil contemporâneo. Volta-se para a avaliação da produção de um espaço público visual, valorizando três momentos em que a prática fotográfica se consolida em espaços da imprensa semanal, diária e independente: as revistas ilustradas cariocas da primeira metade do século XX, com destaque para quatro magazines: “Careta”, “Revista da Semana”, “Fon-Fon” e “O Cruzeiro"; o fotojornalismo de jornais diários, “Jornal do Brasil” e "Última Hora”, nos anos 1950 e 1960; e as agências de fotógrafos independentes das décadas de 1970 e 1980, como: Central, Angular, F4, AGIL Fotojornalismo, Fotocontexto, entre outras, atuando como importantes instrumentos de documentação dos movimentos sociais, e promovendo a consolidação produção independente, a prática de arquivo dos originais o controle sobre a publicação e difusão de fotografias. Compreende-se que em tais espaços forjou-se a fotografia pública como uma das dimensões da experiência histórica contemporânea que se apoiou na imagem técnica para plasmar seus acontecimentos. Com vistas a indagar sobre como em cada um desses domínios a história foi visualizada, propõe-se um roteiro que se inicia com uma breve consideração sobre fotografia pública e espaço público visual, seguida de uma reflexão sobre produção de notícias nos semanários ilustrados, passando pela inscrição dos acontecimentos no regime dos foto ícones e chegando à prática fotográfica independente.
Conceitualmente, compreende-se a prática fotográfica suas formas de ver, apresentar e representar o mundo social como experiência histórica fundadora do mundo ocidental contemporâneo. Os circuitos sociais fotografía e seus usos e funções multiplicaram-se em uma economia visual sustentada na imagem técnica como dispositivo de produção de sentido social. Em termos metodológicos, utiliza-se da análise histórica da documentação primária que se encontra na base de dados da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Brasil e nos arquivos do Laboratório de Historia Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense. A análise histórica complementa-se com uma avaliação das formas comunicativas e do poder de significação de quatro fotografias, destacadas de cada um dos períodos históricos analisados.
Resumen:
En Brasil, durante el siglo XX, las fotografías publicadas en las páginas de diarios y revistas crearon un espacio visual público, donde los hechos y fotos se conjugaban con el relato de los acontecimientos. La ciudad de Río de Janeiro, capital de Brasil hasta 1960, ha sido el espacio privilegiado de la institucionalización de la práctica fotográfica. Con la transferencia de la capital para Brasilia, en la región Centro-oeste del país, la metrópolis carioca perdería su capitalidad. Paralelamente, el golpe cívico militar de 1964 provocaría una reorganización de la economía visual por medio de la censura y del control de las inversiones del estado en la gran prensa. Sin embargo, la lucha por la vuelta a la democracia forjará un nuevo tipo de práctica fotográfica, apoyada en la autonomía de las agencias independientes.
En este artículo abordamos los itinerarios de la fotografía pública en el Brasil contemporáneo. Se enfocado en la evaluación de la producción de un espacio público visual, destacando tres momentos en que la práctica fotográfica se consolida en los medios de prensa semanal, diaria e independiente: las revistas ilustradas de los primeros años del siglo XX, destacando cuatro magazines: Careta, Revista da Semana, Fon-Fon y O Cruzeiro; el fotoperiodismo de periódicos diarios, Jornal do Brasil y Ultima Hora, entre los años 1950-1960; y las agencias de fotógrafos independientes de las décadas de 1970-198, como Central, Angular, F4, AGIL Fotojornalismo o Fotocontexto, entre otras, actuando como importantes instrumentos de documentación de los movimientos sociales y promoviendo la consolidación de la producción independiente, la práctica de archivo de originales y el control sobre la publicación y difusión de fotografías. Comprendiéndose que en estos espacios se forja la fotografía pública como una de las dimensiones de experiencia histórica contemporánea, que se apoyó en la imagen técnica para plasmar sus acontecimientos. Con la intención de indagar sobre cómo, en cada uno de estos dominios, la historia fue visualizada, se propone un guion que se inicia con una breve consideración sobre fotografía pública y espacio visual público, seguida de una reflexión sobre la producción de noticias en los semanarios ilustrados, pasando por la suscripción de los acontecimientos en el régimen de las foto-iconos, y llegando finalmente a las prácticas fotográficas independientes.
Conceptualmente, se comprende la práctica fotográfica, sus formas de ver, presentar y representar el mundo social como experiencia histórica fundadora del mundo occidental contemporáneo. Los circuitos sociales de la fotografía y sus usos y funciones se han multiplicado en una economía visual sustentada en la imagen técnica como dispositivo de producción de sentido social. En términos metodológicos, se sustenta en el análisis histórico de la documentación primaria que se encuentra en la base de datos de de la hemeroteca digital de la Biblioteca Nacional de Brasil y en los archivos del Laboratório de Historia Oral e Imagen de la Universidad Federal Fluminense. El análisis histórico se complementa con una evaluación de las formas comunicativas y del poder de significación de cuatro fotografías, destacadas de cada uno dos los períodos históricos analizados.
Abstract:
In Brazil, throughout the 20th century, the photographs published on the pages of magazines and newspapers modeled a visual public space, in which facts and photos were combined in the narrative of events. The city of Rio de Janeiro, the Brazilian capital until 1960, was the privileged space for the institutionalization of photographic practice, since it was concentrated, since the 19th century, the main photographic studios, as well as the editorial houses responsible for the circulation and sale of prints.
The article addresses the itineraries of public photography in contemporary Brazil. It focuses on the evaluation of the production of a visual public space, valuing three moments in which the photographic practice is consolidated in spaces of the weekly, daily and independent press: the illustrated magazines from the first half of the 20th century, with emphasis on four magazines: "Careta", "Revista da Semana", "Fon-Fon" and "O Cruzeiro"; the photojournalism of daily newspapers, “Jornal do Brasil”and “Última Hora”, in the 1950s and 1960s; and the agencies of independent photographers of the 1970s and 1980s, such as: Central, Angular, F4, AGIL Fotojornalismo, Fotocontexto, among others, acting as important instruments of documentation of social movements, and promoting the consolidation of independent production, the practice of archiving originals, control over the publication and dissemination of photographs. It is understandable that in such spaces public photography was forged as one of the dimensions of contemporary historical experience that relied on the technical image to shape its events. In order to inquire about how history was visualized in each of these domains, it proposes a script that begins with a brief consideration of public photography and visual public space, followed by a reflection on news production in the illustrated weeklies, including the registration of events in the regime of the photographic icons and arriving at the independent photographic practice.
Conceptually, photographic practice is understood as ways of seeing, presenting and representing the social world, a historical experience that founded the contemporary Western world. The social circuits in photography and their uses and functions multiplied in a visual economy sustained by the technical image as a device for the production of social meaning. In methodological terms, it uses the historical analysis of the primary documentation found in the database of the digital library of the National Library of Brazil and in the archives of the Oral History and Image Laboratory of the Universidade Federal Fluminense. The historical analysis is complemented with an appraisal of the communicative forms and the power of meaning of four photographs, highlighted from each of the historical periods analyzed.
Palavras chave: Brasil; fotografia pública; prática fotográfica
Palabras clave: Brasil; fotografía pública; práctica fotográfica
Keywords: Brazil; public photography; photographic practice
A prática fotográfica, seus modos de ver, apresentar e representar o mundo social está na base da condição histórica do mundo ocidental contemporâneo. Os circuitos sociais da fotografia e seus usos e funções multiplicaram-se em uma economia visual apoiada na imagem técnica como dispositivo de produção de sentido social[2].
No Brasil, ao longo do século XX, as fotografias publicadas nas páginas de revistas e jornais modelaram um espaço público visual, em que fatos e fotos se conjugavam na narrativa dos acontecimentos. A cidade do Rio de Janeiro, capital brasileira até 1960, foi o espaço privilegiado para a institucionalização da prática fotográfica, pois nela se concentravam, desde o século XIX, os principais estúdios fotográficos, bem como as casas editoriais responsáveis pela circulação e comercialização de impressos.
Com a transferência da capital para Brasília, na região centro-oeste do Brasil, a metrópole carioca perderia a sua capitalidade. Paralelamente, o golpe civil-militar de 1964 promoveria um reordenamento da economia visual por meio da censura e do controle dos investimentos do estado na grande imprensa. Entretanto, na luta pela redemocratização se forjou um novo tipo de prática fotográfica apoiada na autonomia das agências independentes.
Esse artigo volta-se para identificar os itinerários percorridos pela fotografia pública no espaço da imprensa semanal, diária e independente. Define-se por uma narrativa cronológica que visa registrar os três principais espaços da imprensa em que a prática fotográfica se consolidou. Busca-se com isso contribuir, mesmo que de forma abrangente, para a história da fotografia de imprensa no Brasil contemporâneo.
1. Considerações sobre a fotografia pública no Brasil do século XX
Os estudos sobre fotografia e história indicam que a fotografia se torna pública para cumprir uma função política, apoiada nas estratégias de poder, ou ainda, nas disputas de poder (Rossler, 2007, Linfield, 2010, Azoulay, 2010). A fotografia pública é produzida por agências de produção da imagem que desempenham um papel na elaboração de uma opinião pública (meios de comunicação, estado etc.). É, portanto, o suporte de agenciamento de uma memória pública que registra, retém e projeta, no tempo histórico, uma versão dos acontecimentos. Constrói-se uma narrativa visual e verbal, ou seja, intertextual, mas também, pluritemporal: o tempo do acontecimento, o tempo da sua transcrição pelo modo narrativo; o tempo da sua recepção no marco histórico da sua publicação, dimensionado pelas formas de sua exibição – na imprensa, em museus, livros, projetos, etc. A fotografia pública produz visualmente um espaço público nas sociedades contemporâneas, em compasso com as visões de mundo as quais se associa (Mauad, 2013, Lucaites; Harriman, 2016).
A produção histórica da fotografia pública, ao longo do século XX, associou-se, por um lado, a constituição da sociedade burguesa, liberal e democrática, e por outro, ao apoio à propaganda de regimes ditatoriais e fascistas. Sua prática se constitui, no âmbito de circuito social, proveniente da cultura dos meios e das mediações, composto pelas agências de produção das imagens governamentais (órgãos ligados ao Estado que possuem a função de registro e arquivo da sua ação sobre o espaço público; bem como as assessorias de imprensa e propaganda que cumprem a função de publicizar a ação do estado como o principal organizador das relações sociais no espaço público); pelas as agências da grande imprensa e pelas agências independentes que operam conjuntamente aos movimentos sociais.
Em compasso com a configuração de uma cultura visual plural e diversificada, ao longo do século XX, a questão social emergiu na cena pública, de distintas maneiras e em diferentes locais, alimentada pelos movimentos sociais e políticos de procedências e tendências também variadas: do movimento operário às demandas de liberdade sexual, passando pela lutas pelos direitos civis, movimentos pós-coloniais etc., tudo isto, captado por profissionais atentos ao calor dos acontecimentos. Tais imagens compõem um catálogo, no qual surge uma história redefinida pelo estatuto técnico próprio ao dispositivo da representação: a câmara fotográfica. Neste outro tipo de escrita da história, o local de sua produção (as agências de produção da imagem: família, Estado e imprensa) e o sujeito da narrativa (os fotógrafos), dividem com os institutos históricos e as academias literárias a tarefa de imaginar a nação e instituir os lugares de sua memória. Assim, a experiência fotográfica do novecentos redefiniu as formas de acesso aos acontecimentos históricos e sua inscrição na memória pública, a ponto de podermos contar a história do século XX por meio de suas imagens. Ao mesmo tempo, a produção de imagens fotográficas voltadas para o registro de processos, situações e sujeitos históricos, contribuiu significativamente para a configuração dos sentidos atribuídos ao espaço público na contemporaneidade (Mraz; Mauad, 2015).
2. Revistas Ilustradas no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX
Careta, Fon-Fon, O Cruzeiro, Revista da Semana, Kosmos, Malho, Avenida, Ilustração Brasileira, Rua do Ouvidor, Vida Doméstica, Selecta, Eu Sei Tudo, Para Todos, Vamos Ler, Scena Muda, Cinearte, Beira Mar, entre outras, compuseram o perfil de uma época em que as imagens fotográficas tinham nas revistas ilustradas o seu principal veículo de divulgação.
O surgimento de revistas ilustradas com fotografias, no início do século XX, associa-se ao alinhamento do Brasil à lógica de modernização internacional capitalista: o fim do trabalho escravo, o processo de imigração em grande escala e a entrada de empresas estrangeiras para a modernização urbana. As reformas no Rio de Janeiro, então Capital Federal, criaram um novo espaço público de circulação de mercadorias, pessoas e ideias, e a cidade tornou-se o emblema de um Brasil moderno.
No final da década de 1920, o mercado editorial dos semanários ilustrados não se limitava ao Rio de Janeiro, mas era nessa cidade que as principais editoras publicavam as revistas que seriam distribuídas para todo o Brasil. As revistas ilustradas voltavam-se, sobretudo, às classes abastadas, potencial consumidora de tudo o que se vendia em suas páginas. Suas seções atuavam tanto como janelas por meio das quais o público tomava conhecimento das novidades quanto espelhos em que se reconhecia como grupo social. Ao mesmo tempo que, por meio de suas crônicas e notas sociais, impunham valores, normas e criavam realidades, em um processo que transformaria a cidade em cenário e as frações da classe dominante, associadas ao Estado e ao setor de serviços, comércio de exportação e capital financeiro, em seus atores principais.
Consumidas por quem era o seu conteúdo principal, tais revistas, auxiliaram também a coesão interna do grupo em ascensão social. Com efeito, veiculavam comportamentos tidos como necessários para se tornar um bom cidadão, atuando como modelo a ser copiado e como exemplo a ser seguido. Neste sentido, foram importante instrumento, deste grupo social, no empenho de naturalizar suas representações por meio da imposição de uma determinada forma de ver e reproduzir o mundo em detrimento de todas as outras possíveis.
Em linhas gerais, o período da história das publicações ilustradas de críticas de costumes, que circunscreve a primeira metade do século XX, pode ser dividido em dois sub-períodos, delimitados por transformações de ordem técnica que influenciaram a forma de apresentação dessas revistas. O primeiro período se inicia, em 1900, com a introdução de fotografias na Revista da Semana, o único periódico ilustrado com fotos até então, e se prolonga até 1928, quando foi lançada a revista O Cruzeiro, um marco na história do jornalismo brasileiro, tanto por introduzir uma linha editorial de influência, marcadamente, norte-americana como pelo aumento significativo no uso de fotos (Mauad, 2005).
Neste primeiro momento, o tom das publicações variava do crítico e cômico ao refinado e artístico, circunscrevendo o universo mental da elite carioca em todas as suas possibilidades. A tendência crítica e cômica pode ser exemplificada nos editoriais de lançamento das revistas Fon-Fon e Careta. A Fon-Fon se lançava como "semanário alegre, político, crítico e esfuziante, noticiário avariado telegrafia sem arame e crônica epidêmica" cujo único objetivo era "fazer rir, alegrar a tua boa alma carinhosa(...) com o comentário leve das coisas da atualidade(...). Para os graves problemas da vida, para a mascarada política, para a sisudez conselheiral das finanças e da intrincada complicação dos princípios sociais, cá temos a resposta própria: aperta-se a sirene...FON-FON!" (Fon-Fon, 15/4/1907).
A revista Careta, por sua vez, seguia o mesmo tom de pilhéria, propondo em seu editorial, "um programa vasto e sedutor" para o público "apreciador das sessões galantes do jornalismo smart" (Careta, 6/6/1908). Dentro desta mesma linha editorial, situavam-se a Revista da Semana e o Malho, esta última foi lançada em 1902 e especializou-se em crítica política e caricaturas.
A tendência mais refinada e artística teve como representantes a Ilustração Brasileira e a Kosmos. Em 1904, surgiu o primeiro número da Kosmos, uma revista nos moldes modernos dos semanários internacionais, apresentando, portanto, uma publicação bem cuidada de acabamento primoroso. À época de seu lançamento, a revista Kosmos foi descrita da seguinte maneira: "um primoroso álbum de nossas belezas e primores artísticos, propagando o seu conhecimento a outros pontos do país e do estrangeiro” (Kosmos, ano 1, n1 1, janeiro de 1904). No seu conteúdo, constavam manifestações artísticas e literárias, crônicas e reportagens sobre eventos sociais da elite endinheirada da cidade do Rio de Janeiro. Colaboravam nesta revista: Arthur Azevedo, Gonzaga Duque, Capistrano de Abreu, e Euclides da Cunha.
Publicadas aos sábados, as Ilustradas prometiam ser a distração do final de semana, além de cumprirem o papel de divertir, também informavam e ainda promoviam a educação moral de um público urbano e alfabetizado. O uso intensivo de ilustrações - fotografias e caricaturas, apoiava-se nas modernas técnicas de fotogravura, o que lhe garantia a nitidez adequada e na composição junto ao texto escrito, embora a relação entre texto e imagem só se limitasse ao breve descritivo de legenda. Em 1911, a revista O Brasil Artístico, apontou a consagração da fotogravura, uma técnica mais moderna e barata, nas páginas "das melhores publicações ilustradas do país, ‘A Ilustração Brasileira’, ‘O Malho’, ‘Fon-Fon’, ‘Careta’ e a ‘Revista da Semana’” (Martins, 2001, p. 309).
Em compasso com a ampliação do horizonte técnico da experiência urbana carioca, entre 1890 e 1930, os usos e funções da fotografia expandiriam os circuitos sociais de produção, circulação e consumo desse artefato. A ampliação do acesso à fotografia, sobretudo, com a compactação das câmeras fotográficas, nos anos 1910, vai ampliar o consumo e a produção das imagens. Os ateliês de fotógrafos, no centro da cidade, incrementam seus estoques de câmeras e insumos para a fotografia amadora, os aficionados pela arte fotográfica passariam a dividir espaço com os “batedores de chapa”.
As câmeras portáteis multiplicaram o potencial da prática fotográfica e da circulação de imagens. No caso da imprensa ilustrada, observa-se a profusão de flagrantes e instantâneos sem autoria e de retratos individuais e em grupo que bem poderiam ter saído dos álbuns de família. Os instantâneos fotográficos encontrados entre os textos das revistas, muitas vezes só com o título “flagrantes”, fornecem a sensação de que o fotógrafo estava em trânsito pelas ruas da cidade e detém-se para fotografar algo do cotidiano que pode reverberar entre o público da revista.
1. Instantâneos do ‘footing' no Rio de Janeiro em tempos de pandemia de influenza, Revista Careta, n. 0545, 30/11/1918, p. 12 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Em algumas publicações, se reconhece a assinatura de Augusto Malta, prestigiado fotógrafo da prefeitura do Rio, em outras, como a Fon-Fon, se registra a atividade de Paulino Botelho, fotógrafo que circulava de bicicleta pela cidade fotografando não só para esta revista, mas também para a Careta, Revista da Semana, Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil. Botelho dedicou-se, também, a produção de filmes com a sua produtora, ”Botelho Films" que fez inúmeros registros históricos e documentais pelo Brasil.[3] Tinha, ainda, o Zenobio Rodrigo do Couto, como fotógrafo de o Malho, responsável pelas fotos do levante do Forte de Copacabana, em 1922 (Castro, 2020, p. 147). Assim, os flagrantes nas vias públicas se tornariam uma espécie de serviço que a imprensa ilustrada oferecia para as “celebridades” de ocasião. A literatura especializada aponta para a presença desses fotógrafos profissionais registrando o cotidiano urbano, embora não identifique a migração dessas imagens para as páginas ilustradas, pode-se especular que esse serviço fosse oferecido de forma eventual.
A identificação de um espaço público visual se daria pelo compartilhamento das imagens entre as revistas, bem como, de notícias e personagens retratados pelos jornais diários, embora em um número bem menor, haja vista, o uso limitado da fotografia na imprensa diária do período. A imprensa - diária e semanal - teria a função de dar inteligibilidade à vida social, organizando o fluxo dos eventos em notícias, com seu ritmo próprio. A circulação de imagens entre os espaços ratificaria essa perspectiva - fotografias de cenas de teatro, de artistas de cinema, literatos, políticos em prédios públicos - animar-se-iam nas telas dos cinematógrafos nas películas de cavação, nos filmes de ficção, nas encenações teatrais e nas tertúlias literárias.
A experiência visual proporcionada pelas fotografias da imprensa semanal do Rio de Janeiro, ao codificar processos em cenas, habilitou, seus leitores e leitoras, para o encapsulamento dos acontecimentos em “fatos noticiosos”. Relatos, que, por sua vez, pulavam das páginas das revistas e circulavam pelos espaços públicos por onde as imagens fluíam: pelas bancas, nos quiosques, nas vitrines das livrarias, passando pelos cafés, cinemas, teatros, praças, jardins e pelas ruas em que transitava a população urbana atraídas pela imagem técnica que, aos poucos, educaria o olhar carioca.
O segundo período se inicia com o lançamento da revista O Cruzeiro e se prolonga, em termos de linha editorial, até a década de 1960, com a introdução, entre outras modificações, da cor nas fotos de revista. Essa nova etapa da publicações ilustradas diferencia-se da anterior, tanto pela introdução de novas técnicas de impressão, tais como a rotogravura, quanto por uma redefinição do perfil do mercado editorial, ávidos por informações atualizadas. Tais fatores foram definitivos para a mudança no padrão estético e informativo das revistas ilustradas. Enquanto o primeiro momento foi fortemente marcado pela presença de textos ficcionais, crônicas e por fotografias pequenas e independentes do texto escrito, o segundo enfatiza a notícia, a interpretação dos fatos nacionais e internacionais e as fotografias, em grande formato, associadas a estas publicações.
É importante enfatizar a diferença entre estes dois períodos, como forma de caracterizar as mudanças inscritas na própria transformação da audiência das revistas, dentre as quais pode-se destacar: a ampliação dos estratos médios da sociedade carioca, crescimento urbano, valorização de padrões comportamentais relacionados aos meios de comunicação etc.
A revista O Cruzeiro foi lançada no dia dez de novembro de 1928, com uma tiragem inicial de 50.000 exemplares, cifra bastante significativa para a época. Em seu editorial de lançamento, evidenciou-se o perfil moderno e inovador que Os Diários Associados, empresa pertencente a Assis Chateaubriand e responsável pela publicação de O Cruzeiro, O Jornal e o Diário da Noite, queria traçar para si mesmo:
Depomos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira. Nossas irmãs mais velhas nasceram por entre as demolições do Rio Colonial, através dos escombros a civilização traçou a reta da avenida Rio Branco: uma reta entre o passado e o futuro. O CRUZEIRO encontrará ao nascer o arranha-céu, a radiotelephonia e o correio aéreo. O esboço de um mundo novo no novo mundo (...). A revista é um compêndio da vida (...) revela a sua expressão educativa e estética, por isso a imagem é um elemento preponderante. Uma revista deve ser como o espelho leal onde se reflete a vida, seus aspectos edificantes, atraentes e instrutivos (O Cruzeiro, 10/11/1928).
Neste contexto, ao mesmo tempo que a revista O Cruzeiro se inseria no conjunto das chamadas publicações "frívolas", advogava para si o direito, quase missionário, de ser o espelho fiel da vida. A imprensa, segundo a concepção da revista O Cruzeiro, ficaria encarregada da nobre missão de, no caso dos jornais, julgar e, no das revistas, depurar os fatos da vida para que o leitor se educasse de forma correta.
Esta postura tem como premissa básica a ideia de que o que está escrito é a própria verdade. Tal concordância seria reforçada pela utilização maciça de imagens. Isto porque, a imagem, diferentemente do texto escrito, chega de forma mais direta e objetiva à compreensão com menos espaço para dúvidas, pois o observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia nos seus próprios olhos.
Com o intuito de reafirmar o papel predominante da imagem sobre o texto, a empresa dos Diários Associados investiria, três anos depois do lançamento da revista, na modernização dos equipamentos de impressão, buscando uma melhoria na qualidade da imagem fotográfica. Brevemente, as páginas de O Cruzeiro, ganharam cor, a princípio, exclusivamente em ilustrações e caricaturas e, bem mais tarde, em fotografias.
Em sua primeira fase editorial, que se prolongaria até o final da década de 1930, a revista O Cruzeiro, apesar de em muitos pontos assemelhar-se às outras revistas ilustradas contemporâneas, especialmente à Revista da Semana, apresentou um caráter mais cosmopolita, adquirido por meio da utilização dos serviços das agências de notícias internacionais, ampliando seu universo temático. Um exemplo disso, foi o aparecimento de sessões exclusivas, como a chamada: “Pelas Cinco Partes do Mundo”.
No entanto, a partir da década de 1940, a revista incorporaria o padrão de qualidade das publicações internacionais, incluindo, desde então, nas suas primeiras páginas, um detalhado expediente, onde se podia constatar a especialização dos serviços da revista em vários departamentos, nos moldes das famosas revistas Life, Look, Paris Match, entre outras. Por esta época, O Cruzeiro já contava com uma tiragem de 120.000 exemplares. Cabe ressaltar, que foi O Cruzeiro a primeira publicação a conceder o crédito das fotografias publicadas, contando inclusive com um departamento e equipe fotográfica que reunia fotógrafos tais como: Jean Manzon, Edgar Medina, Salomão Sciclar, Lutero Avila, Peter Scheir, Flávio Damm, José Medeiros, entre outros. Estes encarregados juntamente com os fotógrafos foram os pioneiros na introdução de uma linguagem fotográfica: o fotojornalismo.
F2. Cobertura da eleição presidencial em que Getúlio Vargas voltaria ao poder pela via eleitoral, Revista O Cruzeiro, n. 0052, 14/10/1950, p. 20. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Uma nova linguagem imbuída de um caráter fundamentalmente didático e de um controle estreito da correlação texto/imagem por parte da equipe editorial. O fato é literalmente construído, seguindo esta nova tendência, as fotografias deixaram de ser simplesmente dispostas nas páginas das revistas, para serem, com diferentes tamanhos e formas, deliberadamente arranjadas rompendo com o esquema ilustrativo tradicional.
Com tais mudanças, a revista O Cruzeiro, promoveria uma reformulação geral no padrão das publicações ilustradas, que tiveram de reordenar toda sua linha editorial para poder concorrer com o novo padrão estético imposto por O Cruzeiro. Algumas publicações, que tradicionalmente tinham uma boa entrada no mercado, tais como: Careta, Fon-Fon E Revista da Semana, conseguiram se reformular e sobreviver até os anos 1960.
A partir dessa década, o mercado editorial de publicação ilustradas passaria por uma nova reformulação voltada para a segmentação do público leitor, como a revista Claudia (Bassanezi, 1996), voltada para o público feminino, a Realidade (Vieira, 2014), investindo marcadamente na fotografia documental dirigida para o registro dos grandes temas do país, ou ainda publicações temáticas voltadas para futebol, como a revista Placar, ou automóveis como a Quatro Rodas. Outro aspecto que vale ressaltar, é a gradual perda de centralidade do mercado editorial do Rio de Janeiro, sobretudo, pelo fortalecimento de conglomerados editoriais paulistas como no exemplo, da Editora Abril, e também, pela transferência da capital do país para Brasília (Mira, 2001). A perda da capitalidade da cidade do Rio de Janeiro, embora não tenha sido sentida de forma imediata, foi fundamental para descentralização do mercado editorial de semanários.
3. Fotojornalismo nos jornais diários
O processo que criou condições para o desenvolvimento de uma imprensa de massa no país se consolidou, ao longo da primeira metade do século XX, com a formação dos jornais, dos complexos editoriais e a modernização do estilo no texto e na paginação dos veículos. Entre as diversas alterações, destaca-se a fotografia.
Essas mudanças profundas na imprensa brasileira estão associadas a uma proposta de modernização, e os jornais diários iriam buscar a objetivação do jornalismo também pela fotografia, ao mesmo tempo em que a utilizariam como um poderoso agente de subjetivação do mundo, pela criação de padrões específicos de imagem associados à imprensa brasileira.
As transformações no jornalismo na década de 1950 incluíram, com destaque, um novo lugar para o fotojornalismo. Embora, o lugar privilegiado que o fotojornalismo ocupou neste processo não esteve livre de contradições: se por um lado, a fotografia corporifica mais do que qualquer outro aspecto – por ser mais visível – a materialidade dessas mudanças, o fotógrafo teve um ganho relativo na sua posição dentro da engrenagem. O lugar de destaque que a fotografia ganha não agregou automaticamente capital simbólico ao fotógrafo, e a valorização profissional seria uma tarefa que passaria dessa para outra geração de fotógrafas e fotógrafos, como veremos mais tarde. Entre os jornais que investiram, ao longo desse período, na modernização do jornalismo e na linguagem fotográfica estão a Última Hora e o Jornal do Brasil (Louzada, 2013).
3.1. Última Hora e o Jornal do Brasil
Criado pelo jornalista Samuel Wainer, o jornal Última Hora inovou na forma de apresentar a fotografia, no tratamento das imagens fotográficas, nas temáticas abordadas e no uso da fotografia como ferramenta de mobilização popular e instrumento de barganha no cenário político. O Última Hora sedimentou novos parâmetros para o fotojornalismo diário na utilização da fotografia “em movimento” em suas famosas sequências fotográficas, na publicação regular da cor, na profusão de produção e publicação de fotografias. Além de popularizar as sequências fotográficas, especialmente nos esportes, explorou fotografias de crimes e tragédias sensacionais, políticas e valorizou o fotógrafo como nenhum outro órgão de empresa até então. O Última Hora foi pioneira na publicação do crédito do fotógrafo e da fotografia colorida, aprimorou a linguagem fotográfica e contribuiu de forma decisiva para o amadurecimento da capacidade do público ler imagens.
A experiência de UH, de jornalismo popular que valorizou a fotografia de forma inédita, abre caminho para o sofisticado tratamento das imagens que terá lugar no Jornal do Brasil. Dentro de lógicas editoriais distintas, os dois jornais construíram o lugar do fotojornalismo diário no país e, como consequência, pavimentaram um local de distinção para o fotógrafo, até então inexistente.
O primeiro número de Última Hora chegou às bancas em doze de junho de 1951. A primeira página já trazia as marcas que fariam do jornal um sucesso no jornalismo popular: em oito colunas e letras garrafais, anunciava uma “Nova Tragédia” e completava em tipos sucessivamente menores “a qualquer momento – desmorona a Central”. Uma fotografia representando a Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro, mostra uma locomotiva que se funde a um trem apinhado de passageiros pendurados do lado de fora, uns sobre os outros, numa tentativa de se agarrarem ao vagão.
Nesta primeira edição, já estão presentes três das características mais marcantes de UH: o apelo visual, a exploração do sensacional e a inclusão de temáticas cotidianas e populares. Uma quarta característica, igualmente importante e estreitamente vinculada a essas, não tardaria a surgir: a exploração da fotografia para mostrar em detalhes o esporte, especialmente o futebol.
A exemplo de jornais como o Diário da Noite, O Globo, A Noite, A Notícia e Tribuna da Imprensa, Última Hora surge como vespertino. Não circulava aos domingos e sua edição de segunda-feira valia também para o dia anterior. Mas é na edição matutina, exclusiva das segundas-feiras, que se inicia o uso radical da fotografia. A partir da segunda semana de publicação, em 25 de junho de 1951, UH traz uma novidade: a edição matutina a ser publicada exclusivamente nas segundas-feiras, intitulada “esportivo-policial”, essa edição vai explorar a linguagem fotográfica de forma até então inédita nos periódicos diários.
A primeira página, repleta de fotos, custando metade do preço normalmente cobrado, e contemplando as temáticas de maior apelo popular – esporte e polícia –, tem endereço certo: as camadas populares. O Última Hora investiu na fotografia e nos textos curtos para atrair esse público e, dessa forma, esta edição funcionaria como uma espécie de balão de ensaio para a utilização inovadora da fotografia no jornal Última Hora.
A edição matutina viria ainda, a partir da semana seguinte, acompanhada de um suplemento esportivo, sem acréscimo de preço. Em formato tablóide, o suplemento trazia poucas fotos, mas em tamanho grande, atributo incomum no período, no qual o usual era a publicação de muitas fotos pequenas para “aproveitar” o espaço.
Pouco depois, outra forma de disponibilizar a imagem faria sucesso nas páginas do Última Hora. As famosas sequências fotográficas de até dezesseis poses que retratavam preferencialmente os lances do futebol, mas também, de outros esportes e temáticas. Para realizar esse tipo de sequência, que o jornal explorou exaustivamente, foi preciso importar uma câmera especial, uma vez que, as câmeras usuais não tinham mecanismo de avanço rápido. O sucesso do Última Hora se deveu em boa parte a essas famosas sequências fotográficas, tendo sido o único jornal a fazer esse investimento tecnológico.
O UH oferecia aos leitores, nas manhãs de segunda-feira, uma nova experiência visual. Na ausência de registros da imagem em movimentos - a televisão havia chegado ao país no ano anterior e funcionava apenas ao vivo - o jornal oferecia a própria sensação do movimento do corpo, da apreensão do tempo, a reconstrução mental da jogada da véspera, que podia ser feita, a qualquer momento, apenas comprando um jornal ou mesmo visualizando um exemplar pendurado em uma banca de jornal, o que era muito comum na época.
A sequência fotográfica foi uma forma de dar legibilidade à fotografia de esportes. Passo a passo, lance a lance, segundo a segundo, o leitor figurava o lance passado e o atualiza no seu presente. A reconstrução temporal, pela narrativa fotográfica com o texto sincopado, permitia ao leitor realizar a construção do sentido da imagem e reconfigurar o lance esportivo.
O jornal diário vai também, mais e mais, incorporando a fotografia como elemento noticioso. Dessa forma, a trajetória do fotojornalismo no Última Hora possibilitou a evolução da linguagem que, partindo das didáticas sequências para fotografias elaboradas e com uma abordagem mais subjetiva, promoveu uma espécie de educação visual da população. E a modernização da linguagem se deu como resultado do amadurecimento dos produtores da imagem, de seus consumidores, assim como, do veículo.
Entretanto, esse processo não ficou restrito ao círculo de produção e consumo do próprio jornal. Pelo contrário, a modernização da linguagem fotojornalística no Última Hora transpôs as fronteiras internas influenciando outros veículos e servindo como modelo para os profissionais do mercado.
Embora tenha se modernizado no UH, a linguagem fotojornalística alcançaria um patamar diferenciado em outro jornal, o Jornal do Brasil. Este veículo contribuiu para a elaboração de uma visualidade inovadora, para o amadurecimento da valorização profissional do fotógrafo na imprensa e dos códigos deontológicos da categoria.
Essa experiência fundamental para o fotojornalismo no Brasil ocorreu durante as chamadas reformas do Jornal do Brasil. Juntamente com uma série de modificações formais e empresariais, a fotografia paulatinamente ganhou importância no periódico durante as reformas, tendo sido, juntamente com a reforma gráfica e do texto, um dos carros chefes da modernização da imprensa no Brasil.
Fundado em 1891, na metade da década de 1950, o Jornal do Brasil já havia experimentado diversas fases editoriais e empresariais. Em 1951, quando o jornal Última Hora foi lançada, o JB era um popular balcão de anúncios classificados de emprego que publicava também, na sua primeira página, notícias internacionais, nacionais e locais e nenhuma fotografia. A partir da metade da década de 1950, esse perfil começou a mudar e em março de 1957, o jornal passou a publicar fotos na primeira página. Em pouco tempo, a fotografia assumiria um papel preponderante na modernização do JB onde se desenvolveu uma linguagem fotográfica ímpar, até então não experimentada em nenhum jornal diário no país.
Outras mudanças já vinham se desenhando no jornal, que passa a publicar também notícias nacionais, reflexo da introdução da reportagem de rua, até então praticamente inexistente. É provável que, ao substituir matérias apuradas na própria redação por outras realizadas pelos repórteres pelas ruas da cidade, tenha sido gerada uma demanda imediata de publicação de fotografias. Além disso, as reformas gráficas implementadas pelo concretista Amílcar de Castro, a partir de 1957, que estabeleceu um aspecto visual mais limpo, abriram espaço para a publicação de grandes fotos com uma maior sofisticação da linguagem.
O Jornal do Brasil, embora já houvesse sido um jornal popular, não visava, com as reformas, conquistar esse público. Pelo contrário, almejava se consolidar como o jornal da classe média carioca. As temáticas do gosto popular, como crimes e acidentes violentos, não tinham lugar na pauta do JB e, quando incontornáveis, eram abordados de forma a não chocar o público, apenas sugerindo o sofrimento, tanto no texto como na fotografia.
As coberturas de manifestações populares e documentações das condições de vida da população eram comuns, afinal, a partir da metade do século XX, a intelectualidade brasileira elegeu como um de seus objetos privilegiados e de forma muitas vezes folclorizada, a cultura popular. E, por buscar se dirigir a esse público, ao contrário do Última Hora, o JB não se propunha a ser uma tribuna para a população de baixa renda, mas procurava contemplar a curiosidade da intelectualidade e das elites brancas, especialmente ao leitor das classes mais altas da cidade do Rio de Janeiro.
Dessa forma, a importante diferença da fotografia do Jornal do Brasil em relação ao Última Hora era a cobertura de casos policiais, tragédias naturais e mazelas sociais que chegavam ao leitor de forma subjetiva Não eram publicadas cenas de sangue e o horror não aparecia, sequer era sugerido, em imagens e reportagens que convidavam à reflexão, jamais à ação, uma vez que essas calamidades não afetavam seu público. O sofrimento era distante, era verdadeiramente a dor do outro e, o mais próximo que chega do leitor do JB, era na portaria do edifício, na cozinha ou no volante de um táxi.
E, para atingir seu público, o jornal procurava investir em temáticas do cotidiano da cidade, criando um protocolo visual e temático totalmente diferente do Última Hora. O jornal se firma com o leitor de classe média, intelectuais e artistas, buscando uma linguagem específica, que não visa a documentação "fiel" da realidade, mas busca, mais que tudo, uma bela composição, dando à fotografia jornalística uma dimensão artística incomum até então nos periódicos.
Os fotógrafos utilizam elementos gráficos, ângulos inusitados, apelam para a instantaneidade da fotografia e o seu estatuto de espelho da realidade reforçados pela naturalização da composição, embutindo as escolhas do fotógrafo que busca sintetizar e ordenar o espaço e o tempo para organizar a sua narrativa. Essa escolha é amparada na diagramação que eliminava os elementos considerados como supérfluos, como fios e vinhetas e utilizava os espaços brancos para separar e hierarquizar as matérias.
O JB construiu um espaço que instituiu as competências necessárias a seus agentes para se apresentarem com detentores de um capital cultural diferenciado e mais elevado que o dos demais jornais. Investiu-se na reformulação gráfica do jornal, valorizando-se, no aspecto estético, uma fotografia que, além de “artística” visava se colocar como mais autêntica e, em termos “culturais”, hierarquicamente superior.
Ao orientar a formação de um sistema de classificação que representa o mundo social, por meio de valores estéticos, o jornal se afirmava frente ao público de maior poder aquisitivo, associando a fotografia a um gosto diferenciado, o “bom gosto”. Paralelamente, procurou atribuir distinção ao fotógrafo, que era muitas vezes citado nominalmente em textos baseados nas fotografias e assinados por um reconhecido time de cronistas. O JB buscou a distinção, e para isso, há que diferenciar também os seus fotógrafos, validando o discurso jornalístico moderno do jornal (Louzada, 2013).
Desde as revistas ilustradas até a fotografia moderna do Última Hora e do Jornal do Brasil, constituiu-se uma cultura visual que não dizia respeito exclusivamente às revistas e aos jornais, mas envolvia um público leitor que se construía e se educava, nas letras e nas imagens.
A fotografia vai ocupando espaços materiais e simbólicos neste processo, não apenas como coadjuvante do texto e recursos gráficos, mas assumindo a vanguarda das transformações por que passa a imprensa diária no período.
F3. Manifestações estudantis no centro do Rio de Janeiro, no evento conhecido como “sexta-feira sangrenta”, 1a página, Jornal do Brasil, 21/6/1968, Hemeroteca Digital Biblioteca Nacional; 1a página, Ultima Hora, 21/6/1968, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
O jornal Última Hora protagonizou uma verdadeira mudança na imagem dos diários brasileiros, com o retorno da caricatura, o uso da cor na fotografia, na diagramação que procurava ser dinâmica e didática, dirigida a um público dos extratos mais baixos da sociedade, muitas vezes com pouca instrução.
O Jornal do Brasil ingressou nessa aventura seis anos mais tarde, com o claro objetivo de se diferenciar do Última Hora e de tudo o que então se fazia no jornalismo diário. Também não assumiu a linguagem das revistas ilustradas. O JB, ao buscar a diferença estava, na verdade, coroando a construção da linguagem da fotografia de jornal que vinha sendo praticada, desde o início da década de 1950, pelo Última Hora.
Se inicialmente no Última Hora, a fotografia procurava dar conta de uma semântica didática, acostumando o olhar do público, nesse mesmo jornal, no final da década, assim como no Jornal do Brasil, a linguagem adquiria vida própria baseada em códigos que não foram traçados em nenhum manual ou ensinados na escola. Criou-se um espaço de produção fotográfica que obedecia a lógicas próprias e que muitas vezes antecedia o texto. A fotografia ganhou destaque nas diversas instâncias de reconhecimento e o fotógrafo não seria mais o um simples “batedor de chapas” à disposição de repórteres e editores.
4. Fotojornalismo independente nos anos 1980: o movimento das agências
As agências de fotógrafos independentes surgiram no Brasil nos anos 1960 e multiplicaram-se nas décadas seguintes, com especial vigor na década de 1980, constituindo um circuito social de produção de imagens autônomo em relação ao Estado e a chamada grande imprensa. Foram instrumentos de agenciamento das imagens, da consolidação da produção independente, da prática do arquivamento dos originais e do controle sobre a publicação e difusão das fotografias.
O surgimento dessas agências vincula-se ao o contexto de um regime ditatorial marcado pela censura e repressão, cerceamento das liberdades individuais, perseguições políticas e uma política econômica pautada numa modernização conservadora. Assim como às lutas políticas pela redemocratização, pela realização de eleições diretas, as greves, manifestações pela Anistia e uma série de mobilizações populares que marcaram a cultura política da retomada da democracia no país (Monteiro, 2016).
A organização independente das agências de produção da imagem se inspirou no modelo cooperativo de agências internacionais (Ritchen, 2013), mas possuem a marca do olhar engajado das décadas de 1970 e 1980. Associadas às lutas políticas pela redemocratização política no Brasil de final dos anos 1960, o movimento das agências independentes define seu engajamento pela elaboração de uma pauta política que incluía temas a serem fotografados e conquistas profissionais a serem realizadas, dentre estas: a consolidação das lutas pelo crédito nas imagens e da delimitação de um espaço autoral para o tratamento da fotografia de imprensa e de documentação social em geral.
As agências de fins de 1970 e 1980 guardavam algumas diferenças importantes em relação às agências brasileiras da década de 1960. Apesar de todas estarem diretamente influenciadas pelos modelos estrangeiros, o cenário político e o perfil dos fotógrafos envolvidos em sua organização eram diversos. As agências dos anos 1960 atuaram principalmente nas áreas de fotografia jornalística, comercial e de publicidade. Eram formadas por profissionais experientes, saídos das grandes revistas ilustradas como O Cruzeiro e Manchete. O alto conhecimento técnico permitia que amealhassem grandes empresas como clientes, ocupando espaços no mercado ainda carente de mão de obra especializada (Mauad, Louzada, & Souza Júnior, 2014).
Esse é o caso da Image, criada em 1962, por Flávio Damm e José Medeiros, que além de ter sido correspondente da agência norte-americana Black Star, foi responsável pela cobertura fotográfica de importantes obras públicas realizadas pelas forças armadas e pelo governo brasileiro, como a implantação da CETEL[4]. Da mesma maneira, a Câmara Três, criada em 1973, por Claus Meyer, Walter Firmo e Sebastião Barbosa, logo no início de sua trajetória, conseguiu importantes convênios com a Varig, empresa do setor de aviação, a Editora Abril, e a Embratur, produzindo importantes trabalhos sobre a natureza e turismo no país.[5]
As agências da década de 1980 levaram adiante um modelo de gestão autônomo, com grande investimento no arquivo fotográfico, tanto como banco de imagens para comercialização futura, como documento político das lutas sociais. Isso porque o movimento das agências independentes não estava somente ligado a uma demanda de mercado, mas fundamentalmente à renovação da cultura política e à construção de um espaço público visual. Inseriam-se no contexto dos anos finais da década de 1970, de luta política pela ampliação e democratização da informação e, como um dos importantes sujeitos históricos na luta pelas liberdades democráticas, as agências independentes brasileiras passaram a ocupar um espaço destacado no panorama do fotojornalismo nacional.
Foram diversas as iniciativas de agências durante esse período, por exemplo, Central, Angular, Fotocontexto, Fotossíntese, Reflex, Ponto de Vista, Casa da Foto Agência, Fotograma e Vix. No entanto, duas se sobressaem na década de 1980: AGIL Fotojornalismo, em Brasília, e a agência F4, em São Paulo e Rio de Janeiro.
4.1. A agência F4
A F4 foi fundada em São Paulo, no início de 1979, por Juca Martins, Delfim Martins, Ricardo Malta e Nair Benedicto. Desde 1978, as discussões sobre a criação de uma agência cooperativa vinham sendo realizadas, ao mesmo tempo em que se recolhiam informações com profissionais de outros países sobre o funcionamento desse tipo de empreendimento. O nome da agência tem relação direta com o diafragma f4 das câmeras, usado no fotojornalismo em combinação com as velocidades altas para a captura de flagrantes, e também com o papel f4 da Kodak, apreciado pelo contraste que proporcionava nas imagens.[6]
Antes da F4, existiram outras agências cooperativas, contudo, o que diferenciava sua atuação era a luta para conseguir que todos os direitos dos fotógrafos fossem assegurados. Nair Benedicto, observa que a agência “surgiu baseada num princípio líquido, certo e indiscutível: o autor é o único proprietário de sua produção, sendo o seu trabalho subvencionado ou não pela agência”[7]. A F4 consolidou mecanismos para a garantia do pagamento do direito autoral, por meio da criação do contrato por uso da fotografia. O fotógrafo levava seu contrato e poderia discutir os termos com o contratante. Um avanço importantíssimo, sobretudo, se levarmos em conta a situação precedente, onde a imposição unilateral era comum nas negociações.
A atuação da F4 no mercado era ampla, atendendo desde jornais e revistas até editoras e revistas estrangeiras como a Stern, Neesweek, Euromoney, Nouvel Observateur, Geo-Magazine e outras. Segundo Nair Benedicto, quando a agência trabalhava para publicações internacionais ou vendia suas fotos para elas, exigia o pagamento pelo mesmo valor pago no exterior[8]. A F4 também esteve presente no mercado editorial, onde dois livros de fotografias foram publicados: A questão do Menor e A Greve do ABC. A agência produziu também audiovisuais sobre a sexualidade feminina, O Prazer é nosso, sobre violência doméstica, Não Quero Ser A Próxima, sobre as populações ribeirinhas e os grandes projetos governamentais, Amazônia, sobre os clubes de mães, E agora, Maria? e sobre a questão ambiental, Qualidade Do Ambiente – Qualidade Da Vida (Coelho, 2012, p.138).
Os fotógrafos da F4, assim como os fotógrafos de agências em geral, também enfrentaram o receio dos outros profissionais acerca das disputas por espaço no mercado de trabalho. Entretanto, como esclarece Nair Benedicto, o diferencial das agências estava no seu arquivo: "80% das fotos de arquivo vendidas são o que chamamos “memória” e, assim sendo, seria impossível contratar em 1983 um profissional para cobrir as greves do ABC de 1979, o movimento de mulheres de 1980, ou o show do Arrigo Barnabé de 1981[9].
A F4 teve vários fotógrafos colaboradores, tanto em território nacional como internacional. Contou com a colaboração de fotógrafos como Luis Humberto, Cyntia Brito, Paula Simas, Maurício Simonetti, Miguel Chicaoka, Zeka Araújo e outros. Além do núcleo paulista, existia um núcleo da agência localizado no Rio de Janeiro. No núcleo carioca, trabalharam fotógrafos como Rogério Reis, Ricardo Azoury e João Roberto Ripper. Ao todo, a F4 chegou a ter dezesseis associados durante sua trajetória (Magalhães, Peregrino, 2004).
4.2. A agência AGIL Fotojornalismo
Em abril de 1980, na capital federal, começou a funcionar uma das principais agências cooperativas brasileiras. A AGIL - Agência Imprensa Livre Fotojornalismo foi fundada pelos fotógrafos Milton Guran, Eliane Motta e Rolnam Pimenta, além do editor e economista Chico Neiva. A proposta da agência, segundo Guran, “era cobrir o poder e viabilizar pautas nacionais sobre questões cruciais daquele momento político, como a luta pela anistia, a luta pela terra, a reorganização da representação política em todos os níveis”[10]. Após alguns anos de atividade, o quadro de sócios mudou com as saídas de Eliane e Rolnam e as entradas de Beth Cruz, Duda Bentes, Kim-Ir-Sem, André Dusek e Julio Bernardes. Além dos sócios, a agência chegou a possuir mais de cem fotógrafos e fotógrafas agenciados por todo território nacional, como por exemplo Leila Jinkings, Silvana Louzada, Luiza Venturelli e outros. (Coelho, 2012, p.138).
A AGIL iniciou sua trajetória com a edição do livro Brasília Ano 20 – Depoimento de 35 fotógrafos, lançado com uma grande exposição no Salão Touring Club, durante a semana de aniversário da capital. Tendo a preocupação de formar um painel do distrito federal, o processo coletivo de elaboração do livro durou dois meses, onde cerca de 600 fotos foram apresentadas à discussão, reunidas por assunto e avaliadas pelos participantes. Ao todo, foram escolhidas e publicadas, pela comissão de edição, 109 fotografias. As fotos de Brasília Ano 20 revelam um olhar crítico sobre o desenvolvimento físico e humano da cidade. Tudo isso traduzido visualmente por uma linguagem fotográfica refinada e questionadora. No lugar da glorificação da grandiosidade arquitetônica, encontramos a figura do calango, as manifestações populares e um novo olhar sobre a política. A cidade deixa de ser o personagem principal e passa a ser vista como palco onde se encontram pessoas, sentimentos e práticas oriundos dos mais diversos lugares do país.
F4. Capa do livro Brasília ANO 20 Depoimento de 35 fotógrafos, publicado pela AGIL. Brasília, 1980. Arquivo dos autores.
A publicação de livros e fotolivros esteve presente ao longo de toda trajetória da agência. Chico Neiva criou a Dazibao, editora que teve como sócio Milton Guran. A parceria entre AGIL e Dazibao foi responsável pela edição de diversas obras que constituem, ainda hoje, uma biblioteca para a fotografia no Brasil.
Em 15 de fevereiro de 1985, um incêndio no laboratório da agência causaria um prejuízo material que foi calculado em Cr$ 100 milhões e destruiria cerca de 600 mil imagens, tanto pelas chamas como pela água usada na tentativa de apagar o fogo. Até hoje não se sabe qual a origem do incêndio, a suspeita geral é de que tenha sido um ato criminoso, em consequência do perfil engajado com as causas progressistas da agência. Após o incêndio, iniciou-se o trabalho de reconstrução do laboratório, recuperando o que havia restado dos negativos do arquivo e manter o ritmo das coberturas e distribuição das fotos. Foram três anos de resistência até a proposta empresarial se tornar inviável. A AGIL encerrou suas atividades após a cobertura da Assembleia Nacional Constituinte e a edição do livro O Processo Constituinte 1987-1988 (Souza Júnior, 2015).
A ideia de um movimento de agências foi construída no processo histórico por meio da percepção dos problemas semelhantes, das possibilidades que esse modelo abriria e do diálogo entre os fotógrafos de diferentes regiões do país. Nesse sentido, o movimento das agências foi fruto das ações dos fotógrafos em constante mobilização pelos interesses da categoria. As agências foram instrumentos de luta construídos cotidianamente pelos sujeitos históricos comprometidos com sua prática e conscientes de suas aspirações, investindo seu tempo, suas economias e esperanças em projetos coletivos e para o coletivo. Foram mais do que respostas ao mercado fotográfico ou reações ao contexto de repressão em que estavam inseridas. Difundiram as práticas associativas, criaram propostas, conquistaram valores, ideais e expectativas de futuro, mesmo diante dos desafios de seu tempo. Não se restringiram a reagir, foram construídas para transformar.
As agências, embora participantes de um mesmo ambiente político e profissional, assumiram projetos, propostas e aspirações distintas, muitas vezes com estruturas e organização diferentes, o que provocou dissidências, insatisfações e embates que levaram a rupturas, reconfiguração e construção de novas perspectivas para a prática fotográfica independente. Paralelamente, a reação negativa de muitos fotógrafos devido ao medo da perda de espaço no mercado de trabalho, o não entendimento ou concordância com taxas e o modelo cooperativo, a gestão dos arquivos, ou mesmo o imediatismo e o individualismo que foi alimentado desde os primórdios da profissão se tornaram em muitos momentos desafios a serem superados. Assim, o movimento das agências teve que construir coletivamente e pedagogicamente uma nova percepção da profissão e dos sentidos de sua ação no mundo.
Nas agências independentes, os fotógrafos passaram a produzir imagens cujo teor crítico redefiniu o posicionamento da produção fotográfica no espaço público. As denúncias dos problemas sociais, os eventos da política e a valorização de agentes sociais esquecidos pela grande imprensa passaram a ser pautados na sua cobertura fotográfica. As fotografias das agências nos ensinam, em consonância com estudos recentes, que a década de 1980 não foi um tempo perdido (Quadrat, 2014, p. 8). Significou o tempo em que os movimentos sociais –feministas, negros, ambientalistas, de trabalhadores– ganharam as ruas com a emergência de uma cultura política participativa em que se buscava a valorização dos espaços públicos para se manifestar, da volta dos exilados, da volta do pluripartidarismo e de eleições livres nos estados e nas capitais.
Diversas experiências contemporâneas se inspiraram nas agências dos anos 1980, organizando fotógrafos em redes, coletivos e diferentes formas de associação que colocam em pauta variadas questões, dentre as quais as novas formas de autoria, o direito à imagem e o reconhecimento da linguagem fotográfica como expressão artística. Contornos que convergem para a configuração de um espaço fotográfico revelado pela emergência de uma fotografia pública, cujos fotógrafos se engajam em causas múltiplas nas quais se define um espaço público visual, onde se mobiliza o público para novas visualidades fotográficas.
5. Considerações finais. A História e suas imagens
Ao longo do século passado, a prática fotográfica plasmou a história em imagens, por meio da figuração do acontecimento em cenas, narrativas visuais, e fotoícones (Mauad, 2008). A cada regime visual a incorporação da fotografia na imprensa apresentava-se de forma renovada. Como um exercício de observação deste processo, tomaremos quatro eventos e como se inscreveram fotograficamente na história.
1. O fato e a foto nas revistas ilustradas. Delineava-se no início do século XX, com a compartimentação das câmeras e a difusão do filme de base flexível, associados aos processos de modernização da imprensa, o protagonismo das fotografias na elaboração do acontecimento moderno: visual, replicável e instantâneo. Um bom exemplo pode ser observado na cobertura fotográfica da pandemia de influenza de 1918 pelos semanários ilustrados que encapsularam o acontecimento em notícia, compondo uma narrativa visual da emergência sanitária. Nela, instantâneos pulavam de uma revista para outra, garantindo que personagens protagonistas, lugares e situações pudessem ser identificados pela população da cidade (Mauad, 2020).
F5. Atendimento aos doentes na pandemia de influenza no Rio de Janeiro, Revista da Semana, n.040, 09/11/1918, p. 12, Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
2. A foto na política. No final dos anos 1940, já havia se consolidado nas páginas das revistas, as fotorreportagens em que texto e fotografias compunham uma narrativa para ser publicada como fato. Um bom exemplo é do então jovem fotógrafo que, convidado por um amigo, vai visitar o ex-presidente Getúlio Vargas, que governou o Brasil sob o Estado Novo (1937-1945). O encontro entre o fotógrafo e o presidente, resultou na fotorreportagem “A longa viagem de volta”, publicada na revista O Globo (n. 470, 6/11/1948), em que o presidente anunciava a sua disposição de voltar ao governo pela via democrática. A matéria ganhou repercussão internacional e lançou Flávio Damm na carreira de fotojornalista, como também, anunciou o início de um turbulento período político que se concluiria com o suicídio de Vargas, em 1954 (Mauad, 2008).
F6. Fotorreportagem “A longa viagem de volta" sobre o retorno de Getulio Vargas a política. Revista do Globo, n. 470, 6/11/1948, arquivo dos autores.
3. A foto faz o fato. Em 1961, o presidente eleito Jânio Quadros, político conservador que apostava nas crises políticas para se manter no poder, foi retratado pelo fotógrafo no Jornal do Brasil, Erno Schneider, na cidade de Uruguaiana, durante um encontro com o presidente argentino Arturo Frondizi. Lado a lado do presidente, o fotógrafo o acompanha, de repente um ruído forte e inesperado, faz com que todos se virem para direção do barulho. Neste momento, Erno ao contrário de todos, vira a câmera para o presidente, e cria um foto ícone. O mundo se polariza e no clic de Erno Schneider, Jânio Quadros não sabe qual rumo tomar, se enrola nas pernas, e num balé inusitado, renuncia, contribuindo para o desfecho no golpe civil militar. Já Erno levou o prêmio Esso na categoria fotografia, em 1962.[11] (Mauad, 2009).
F7. Erno Schneider, Uruguaiana, 1961, reproduzida com autorização do autor.
4. Foto e a reserva de memória. Nas agências independentes, o arquivo fotográfico desempenhava um papel fundamental ao garantir que as imagens pudessem ser acionadas para diferentes tipos de finalidades: publicação na imprensa, livros, exposições. Um bom exemplo desse tipo de gestão é a fotografia produzida pelo fotógrafo Milton Guran, um dos fundadores da AGIL - Agência Imprensa Livre Fotojornalismo. A fotografia foi produzida no comitê da Anistia, em Brasília, em 1979, nela vemos dois importantes artífices da redemocratização, os políticos Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, em uma imagem que sugere que Ulysses está apoiando o rosto de Tancredo. Tempos depois, em 1984, em plena campanha pelas Diretas já, essa foto saiu do arquivo e foi parar na Revista Senhor, como parte do artigo de abertura da revista que realizava um balanço da situação política da semana. No dia nove de maio, a fotografia é publicada com o seguinte título: “Negociação ou mobilização? Só fala em nome do povo quem não negocia as diretas-já”, e legenda: “Figueiredo gostaria de desfazer esta velha afetuosa união”. Neste caso, a apropriação da foto de um tempo por outro, implica no esgarçamento da duração do acontecimento, atribuindo à conjuntura de abertura política um sentido visual compartilhado (Mauad, 2010).
F8. Milton Guran, Comitê da Anistia, Brasília, 1979, reproduzida com autorização do autor.
A forma como cada um destes eventos se inscreve fotograficamente na experiência histórica, aponta para aspectos interessantes da prática fotográfica relacionados:
1. quem fotografa, no caso da fotografia de imprensa a gradual valorização do(a) fotografo(a) merece destaque, pois se nas ilustradas dos anos 1910, os fotógrafos ainda eram considerados profissionais diletantes, embora transitassem entre os meios da cultura visual, como o caso de Paulino Botelho, a partir dos anos 1940 consolida-se a figura do fotojornalista e sua presença nos jornais diários e revistas, mas somente com as agências independentes a profissionalização dos fotógrafos será tomada como uma bandeira política e sindical; 2. de quem é fotografado: o que implica a forma como a sua imagem se inscreve na cena, as negociações da pose, a captura do instantâneo, e as marcas de presença daquele que se torna objeto central da fotografia. 3. do observador contemporâneo à fotografia, pois a ele se endereça a imagem publicada, o que não garante uma compreensão única para as imagens fotográficas, devido ao impacto das diferentes mediações e competências comunicativas que concorrem na recepção da fotografia.
Por fim, vale considerar que as imagens prescrevem trajetórias até se tornarem objeto de atenção historiográfica, uma vida social em que assume múltiplos sentidos. Aspectos que nos remetem para os circuitos sociais da fotografia, seus usos e funções em cada período histórico, mas também para a sua sobrevivência nos arquivos e repositórios de acesso público.[12]
A historicidade das práticas de dar a ver o mundo visível agencia de maneira incontornável a forma como acessamos as experiências passadas. Experiências que não somente se inscrevem na superfície da imagem em cenas vividas, mas que a impregnam como artefato produzido e consumido por meio de relações sociais, de vivências pessoais, de valores e princípios que plasmam o mundo social.
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Acesso aos Vídeos
https://www.youtube.com/channel/UCCn8JWIifh8qMMs2H6I37IA/videos
Mauad, A. M. (Director). (2008). A Longa Viagem de Volta. LABHOI, UFF.
Mauad, A. M. (Director). (2009). Erno Schneider: A História num click. LABHOI, UFF.
Mauad, A.M. (Director). (2010). Milton Guran em Três tempos. LABHOI, UFF
França, A., Andueza, N. (Diretores). Passeio Público, 2018, https://www.youtube.com/watch?v=ePbvt-JgNoQ
[1]. O artigo se insere nos projetos de pesquisa “Dos arquivos às exposições: itinerários da fotografia pública no Brasil contemporâneo”, apoiado pelo CNPq e "Fotografia Pública nos Arquivos do Rio de Janeiro: Coleções e Circuitos Sociais”, Projeto Temático FAPERJ.
[2]. Esse texto é uma homenagem ao fotógrafo Flávio Damm, falecido em setembro de 2020 aos 92 anos, por suas contribuições para a consolidação da prática fotográfica no país e pela disponibilidade em receber os pesquisadores do LABHOI/UFF, concedendo diversas entrevistas e compartilhando suas histórias e memórias.
[3]. Sobre a biografia de Paulino Botelho cf. Memória dos Esquecidos, http://amemoriadosesquecidos.blogspot.com/2014/03/o-fotografo-e-cineasta-paulino-botelho.html acesso em 14 de janeiro de 2021. Confira-se ainda a produção cinematográfica da família Botelho no curta metragem "Passeio Público" (Andréa França & Nicholas Andueza), acesso por https://www.youtube.com/watch?v=ePbvt-JgNoQ (17/01/2021) Agradeço a revisão identificar o nome completo do fotógrafo, que me possibilitou complementar as informações.
[4]. Entrevista com Flávio Damm realizada por Ana Maria Mauad e Silvana Louzada em 07/10/2003, transcrição de Ana Flávia Cicchelli Pires, David Rodrigues da Silva e Robson Wellington, acervo LABHOI-UFF.
[5]. Entrevista com Sebastião Barbosa realizada por Ana Maria Mauad em 26/03/2011, transcrição de Luciano Gomes, acervo LABHOI-UFF.
[6]. Folheto do 6º FestFoto, Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre, acervo LABHOI-UFF.
[7]. Conferir o documento “As agências de fotografia”, Tese para o 1º Encontro Nacional de Repórteres-Fotográficos, texto de Nair Benedicto, São Paulo, acervo LABHOI-UFF.
[8]. Idem.
[9]. Idem.
[10]. Folheto do 6º FestFoto, Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre, acervo LABHOI-UFF.
[11]. Prêmio Esso criado em 1955 como premiação anual das melhores coberturas jornalísticas, a partir de 1961 passou a premiar a melhor fotografia publicada no ano.
[12]. Vale considerar a importância do acesso aos repositórios de documentos de acesso aberto ao público, como é o caso da Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, que possibilita o acesso a versão digitalizada de um vasto acervo de revistas e jornais. Ressalta-se ainda o arquivo em construção sobre a Memória e História da Fotografia no Brasil pelo Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (www.labhoi.uff.br).