Representação, paixão e mentira
em Thomas Hobbes
Representation, passion and lie in Thomas Hobbes
Francisco Luciano Teixeira Filho
Universidade Estadual do Ceará (Brasil)
Recibido: 27/02/2024 Aceptado: 16/12/2024
ResumO
O texto apresenta o modo em que a razão pode criar objetos para a paixão. O escopo do estudo é o Leviatã (1651), de Thomas Hobbes (1588-1679). Observa-se que os objetos das paixões são produzidos a partir de imaginação (ou memória), do que participa a razão. A razão, como cálculo de nomes, tem afinidade com a linguagem. Já que a linguagem é um produto do consenso, é relevante considerar que a política, a retórica e a mentira são seus elementos constitutivos. Disso se conclui que a paixão pode ter objetos baseados na mentira, ou seja, pode se querer o falso.
Palavras-chave:
Linguagem. Desejo. Engano. Imaginação.
Abstract
The text presents the way in which reason can create objects for passion. The scope of the study is Leviathan (1651), by Thomas Hobbes (1588-1679). It is observed that the objects of the passions are produced from imagination (or memory), in which reason participates. Reason, like the calculation of names, has an affinity with language. Since language is a product of consensus, it is relevant to consider that politics, rhetoric and lies are its constituent elements. From this it follows that passion can have objects based on lies, that is, one can want the false.
Keywords:
Language. Desire. Mistake. Imagination.
Por mis compañeros Marcela, Jonas y Aurora,
para que siempre tengamos algún camino hacia Andalucía.
Há uma interpretação hobbesiana, já há um certo tempo contraditada, que identifica o estado de natureza com um estado das paixões, ao passo que o estado civil se caracterizaria como o império da razão (p.ex.: Merêa 2004). A deliberação seria determinada pelos desejos e aversões, no primeiro caso, enquanto o segundo caso seria da determinação racional da vontade. Tal perspectiva foi revista, posto que esse dualismo não é compatível com o pensamento de Hobbes. Que o estado de natureza seja um estado das paixões, não há dúvidas. Mas também o é o estado civil, posto que a paixão é a sede do movimento voluntário. Hobbes não valora, na natureza humana, a razão ou as paixões, portanto, não há hierarquia na alma humana, muito menos mútua exclusão entre paixões e razão (Abizadeh 2017, 2), o que solaparia para fora do campo das paixões a participação das faculdades cognitivas. Nesse sentido, Bobier (2020, 585) sintetiza o problema: “a explicação não cognitiva, ao distinguir as paixões de suas imaginações causalmente eficazes, parece ser incapaz de fornecer uma interpretação satisfatória das passagens que identificam as paixões com as imaginações”.
Em Hobbes, não se pode dizer que o motor da vontade humana seja, exclusivamente, a razão. No mais, a própria noção de uma ação desapaixonada é descabida, me parece. Todavia, não chegamos ao ponto de supor uma “inércia da razão”, como Jean Hampton1 (1988, 19) faz crer: “...o único papel da razão no processo deliberativo é ajudar a determinar como alcançar um objetivo definido pelo desejo – ela não dita um objetivo nem nos motiva para persegui-lo”. A questão é mais bem apreendida se se entende como a razão estabelece representações para a paixão. O líquido e certo é que não há vontade ou ação sem paixão, mas o que precisa ser explicitado é que não há paixão sem dado estado cognitivo do homem (Abizadeh 2017, 11). Ou seja, não existe paixão sem uma representação, ou seja, as memórias das sensações. Portanto, a clássica compreensão de Bobbio (1989, 51), segundo a qual a razão prática estabeleceria princípios hipotéticos, nunca absolutos, estaria subsumida – não por ser falsa, mas por ser incompleta e não dar conta da questão do modo em que as paixões recebem seus objetos.
Ainda na via das explicações negativas, posso dizer, também, que os princípios de ação não são o que uma certa tradição chamaria de ‘controle racional das paixões’ ou de ‘submissão da razão ao império das paixões’. Segundo penso, o vocabulário de Carl Schmitt não está adequadamente posto, ao supor que “o medo levou indivíduos atomizados a se juntarem, uma faísca da razão brilhou e surgiu um consenso sobre a segurança” (Schmitt 2017, 153). É incompleto, ainda, ao afirmar que: “quanto mais perigoso se faz este ‘individualismo’ a-social, tanto mais forte se manifesta a necessidade racional de uma conclusão da paz geral” (Schmitt 1996, 36). Também o modelo tradicional de Leo Strauss (2009, 156) não parece estar devidamente equacionado: “o que é mais poderoso para a maior parte dos homens na maior parte das ocasiões não é a razão, mas a paixão”. De onde se segue que “a lei natural não será eficaz se os seus princípios forem contestados pela paixão ou se lhe desagradarem. A lei natural tem de ser deduzida da mais poderosa de todas as paixões”.
Penso que esses dois tipos de leituras supõem que “a razão tem que enfrentar as paixões em um dualismo contínuo” (Paganini 2012, 228), o que não tem respaldo no pensamento hobbesiano – ao menos não no Leviatã, objeto desse estudo. Por essa razão, o texto que se segue objetiva apresentar o entrecruzamento entre razão e paixão, em Hobbes, por meio dos seus conceitos de linguagem e de representação.
A seguir, vejamos esse entrelaçamento de conceitos mais de perto, em frases afirmativas, finalmente, buscando entender como a razão e a linguagem estabelecem representações para as paixões, de modo a sustentar a interpretação de que não pode haver paixão sem representação, bem como a mentira assume lugar nesse movimento em que as representações são dadas às paixões.
Em De Cive, publicado em 1642, cuja tradução inglesa aparece em 1651, Thomas Hobbes (2002, 25; 1998, 21) afirma, já na primeira linha, quase que a dar o tom da obra: “as faculdades da natureza humana podem ser reduzidas a quatro espécies: força corporal, experiência, razão e paixão”2. Passadas algumas dezenas de páginas, Hobbes parece dar razão ao esboço schmittiano: “pois o estado natural está para o civil na mesma proporção que a liberdade para a sujeição, que o desejo para a razão, que o animal para o homem”3 (Hobbes 2002, 134; 1998, 101). Esses dois fragmentos se apresentam de forma contraditória, se bem observados. Hobbes parece sustentar um dualismo radical entre razão e paixão, no segundo caso, enquanto se ampara na unicidade dos dois, encerrados na natureza humana, no primeiro fragmento. É preciso resolver essa questão, portanto, para colocar cada conceito no seu lugar. A fim de solucionar o problema, porém, o De Cive não é terreno fértil. Não há, na obra de 1642, uma teoria das paixões desenvolvida, senão a ancestral compreensão dualista – e talvez por isso a questão seja colocada de forma tão imprecisa. Nesse sentido, é preciso avançar alguns anos, para o célebre Leviatã, de 1651, obra mais destacada do corpus hobbesiano, que já se mostra dentro da nova compreensão hobbesiana de “pensamento apaixonado” (Hobbes 2002, 24; 1998, 12).
O destaque dado ao pensamento apaixonado surge no exílio de Hobbes na França e de seus debates com o bispo anglicano Bramhall (Hobbes and Bramhall 1999), o que tem as seguintes consequências, segundo Paganini (2012, 229): “os dois opostos [razão e paixão] se fundiam, explicando assim como a razão, pela peculiar paixão humana da ‘curiosidade’, pode conduzir o processo de deliberação, agindo de dentro e não de cima, como acontecia em suas considerações anteriores”. Adiante, lemos também que a curiosidade e o pensamento apaixonado “são responsáveis, no Leviatã, por um novo conceito de razão que pode operar no processo de deliberação de dentro e não de fora” (Paganini 2012, 251). Paganini (2012, 251) ainda adverte para o sentido oposto, em que razão e paixão seriam conceitos excludentes no processo de deliberação, momento em que “enfrentaríamos o estranho dilema entre a razão ser incapaz de afetar à vontade e, portanto, conduzir a deliberação ou a paixão cega que não é iluminada por considerações racionais”. Diante dessas considerações, creio que há, na paixão da curiosidade, algo que perpassa as demais paixões de um homem em pleno uso de suas faculdades, bastando, para isso, compreender o modo em que são dados objetos para a paixão.
Na introdução da sua magna obra, Hobbes (2003, 13; 1994, 4) afirma que as paixões são as mesmas em todos os homens. E dessa identidade de paixões ele acrescenta, especificamente, que “desejo, medo, esperança etc.” são comuns aos homens, mas não os “objetos das paixões, que são as coisas desejadas, temidas, esperadas etc.” Portanto, já transparece a ideia de que a paixão e o desejo se relacionam como gênero e espécie. Ou seja, todo desejo é paixão, mas nem toda paixão é desejo (Teixeira Filho 2015, 102). E diverso, em todo caso, é o objeto no qual a paixão se fixa, que varia em cada homem, conforme condições específicas.
As paixões, em Hobbes, desse modo, são condições constitutivas do homem, sendo formalmente invariáveis. Quanto a elas, o Capítulo VI do Leviatã é bastante completo em identificar suas formações, sendo o desejo e a aversão seus modos basais. De forma geral, a definição de paixão é aquela que engloba a faculdade específica dos corpos animados e voluntários, distintamente dos corpos animados e involuntários, nos quais a deliberação não se encontra presente (Teixeira Filho 2015, 102). Sobre os objetos das paixões (ou seja, os objetos da deliberação), porém, temos um sem-número de pormenores, que tornam impossível o trabalho de investigá-los um a um4. Quanto a isso, Hobbes (2003, 13; 1994, 4) afirma:
a constituição individual e a educação de cada um são tão variáveis e tão fáceis de ocultar ao nosso conhecimento, que as letras do coração humano, emaranhadas e confusas como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações.
Surge, com isso, uma ideia vital: embora as paixões sejam fixas e invariáveis, toda a formação histórica do sujeito se estabelece de modo a dar ao homem novos e mais variados objetos de desejo, conformáveis com certas representações de si mesmo e do mundo, nas quais participa a razão prática. Desse modo, a investigação sobre os objetos específicos das paixões só é possível como um saber sobre o modo em que eles se dão, em composição com a razão (a aritmética dos signos). Dito de forma clara, se as paixões são invariáveis, em Hobbes (2003, 46; 1994, 27), deve-se acrescentar que toda paixão se fixa a objetos imaginados, de modo que a pesquisa sobre o modo fixo da apresentação da paixão precisa conduzir, necessariamente, ao modo variável em que os objetos são produzidos para a vontade. Nesse sentido, a razão atua “indiretamente na vontade e, portanto, mais uma vez através de paixões” (Paganini 2012, 240).
Vale destacar que as paixões não são uníssonas. Há paixões simples e outras complexas, derivadas das simples; há também aquelas que são fortes, diversas das fracas. É possível, inclusive, desejar coisas contraditórias. É até comum amar o fim e odiar todos os meios. Essa plurivocidade das paixões emerge do conjunto infindável de objetos desejáveis e rejeitáveis, incutidos na imaginação humana, de forma involuntária, conforme a experiência se expande (Pettit 2008, 37ss). Esse caos de potenciais objetos de desejos só podem ser organizados, de forma coerente, conforme um determinado fim, mediante expectativas e representações de si e do mundo, pela razão (Pettit 2008, 84ss). Portanto, o que deve ficar claro é que a composição objetiva dessas múltiplas paixões se deve à complexa memória do homem, ordenada pela razão, ao contrário dos movimentos vitais, que prescindem dessas experiências.
A participação da faculdade da experiência na composição dos objetos da paixão é algo inequívoco5. O que nos interessa é avançar para o modo em que a razão se relaciona com essa memória na formação de representações para a paixão. Nisso, o Leviatã não deixa sombra de dúvidas: os objetos externos causam movimentos internos (sensações) no homem, e, com isso, imagens mentais desses mesmos objetos se formam materialmente (Hobbes 2003, 15; 1994, 6), apresentando ao homem a existência de corpos e movimentos fora dele mesmo, mas também corpos e movimentos internos, causados por aqueles. O acúmulo de imagens dos objetos na memória constitui o acúmulo de experiências (Hobbes 2003, 19; 1994, 9), que incorpora cada vez mais representações, quanto mais suas vivências se somam, e disso se deriva a perspectiva de que a experiência6 é uma faculdade da natureza humana, como já era dito no De Cive. Essas representações são diversas das coisas, mas também são o modo em que as coisas externas se apresentam ao homem. Não há, por isso, uma substituição do mundo pelas ideias; muito menos uma suposição de que só exista verdade na imediatez das sensações. Antes, o que se pode notar em Hobbes é a
suspeita de que o mundo realmente dado à imaginação talvez não seja realmente tal como é dado – eis porque, senão a posição mesma da existência do mundo, inerente à percepção, pelo menos o conhecimento que podemos ter a seu respeito deva remontar, não à percepção mesma, mas às operações da razão. (Limongi 2000, 111).
A verdade das imagens mentais do mundo, assim como da memória dessas imagens, está vinculada às operações racionais. A mente, em Hobbes, deve proceder com a hipótese de que o mundo não seja tal como representado mentalmente, daí a necessidade de se proceder uma ciência sobre o mundo. Limongi (2000, 114) assim nos ensina: “as operações discursivas da razão não retiram sua evidência do que é dado na imaginação, nem tampouco de alguma ordem intuitiva superior, mas a produz em plano lógico-semântico”. E ainda arremata: a razão, por si, é capaz de engendrar “a evidência de que a aparência sensível encontra sua causa no movimento de corpos exteriores”.
Ora, a razão age de duas formas na compleição da experiência: de um lado, ela garante que existe causalidade das coisas internas (representações) nas coisas externas, o que impede que se forme uma compreensão dualista de mundo; de outro modo, a razão também dá ordem aos acontecimentos externos e internos, dispondo o mundo de forma coerente. Não que a ordem do mundo seja uma faculdade da mente, mas as imagens vindas das sensações, por um lado carecem de certeza, por outro, de compreensão das leis de causalidade. Aí atua a razão na faculdade da imaginação, bem como na experiência derivada. Nesse sentido é que Limongi (Limongi 2000, 114) adverte: “na imaginação, ao contrário, os conceitos se sucedem, se compõem e se subtraem uns aos outros, mas não se predicam uns dos outros, como também não se aplicam ou se referem a alguma coisa diferente deles: a imaginação não denota”. É por isso que interpretamos de forma diferente o trecho do Leviatã em que Hobbes (Hobbes 2003, 66; 1994, 41) afirma que “os pensamentos são para os desejos como batedores ou espias, que vão ao exterior e encontram o caminho para as coisas desejadas; e é daí que provém toda a firmeza do movimento do espírito, assim como toda a sua rapidez”. Tal pensamento não é a mera soma passiva de sensações, mas a faculdade ativa da razão.
Disso se depreende que a possibilidade de falha impõe a compreensão de que a sensação não estabelece, perfeitamente, tudo aquilo que se deve esperar dos objetos da paixão. Ao simples, para tornar evidente: ter a sensação de um copo com um líquido translúcido, em cada caso, não impõe, para a experiência, a certeza de que ele é, em todo caso, desejável para matar a sede. A sensação, por exemplo, não nos diz nada sobre a potabilidade da água, por exemplo – e veja: só com uma certa atenção se pode diferenciar um copo com água de um outro com vinagre. Nisso deve intervir a razão, que interpõe cálculos que extrapolam a própria sensação. Quem diz que, em todo caso, a água é condição suficiente para matar a sede é a razão, atuando sobre os materiais percebidos, de modo que o objeto do desejo já nem ser, diretamente, aquele da sensação, mas um diferente, dado pela razão (se tenho sede, desejo água potável, mas isso já não é uma representação criada pela razão). A experiência sensível nos diz que, em casos específicos, o líquido translúcido funcionou para saciar a sede, mas em outro, causou incômodos abdominais ou mais sede. Se não houver a razão para exceder os casos particulares, como se poderia ter um objeto tão bem definido para uma paixão específica? Acaso seria o caso de tatearmos, entregando-nos à constante possibilidade do erro? Isso não seria arriscado para a vida confiar apenas nas sensações aplacar as paixões? Ao desejar, o homem pode pôr de lado a sua faculdade mais particular: a razão?
A razão é que anuncia, a partir da memória: vinagre se deve rejeitar para aplacar a secura, mas o mesmo objeto é desejável para temperar salada. A água, com dadas características, é desejável para matar a sede. Para Hobbes (2003, 26; 1994, 13), a curiosidade daqueles dotados de razão nos leva ao conhecimento das causas e isso não pode ser retirado da natureza humana que deseja. Há quem não faça uso da razão, mas esses são os casos excepcionais. O jogo de expectativas e estados mentais de bom e mau derivam de representações e do cálculo racional, desde o início, não sendo possível pensar a própria paixão em separado, exceto em seres em que a razão não se encontra desenvolvida – e porque se pode desejar sem razão, pode-se dizer que razão e paixão são faculdades distintas. Disso não se conclui que excludentes ou independentes, um da outra.
Nessa linha investigativa também se apresenta a filósofa Rita Gomes (2012, 105), para quem “a razão, assim, sempre se junta às paixões. A razão toma os apetites e aversões como matéria de cômputo, avaliando como as diversas possibilidades do ato ou da inação irão recair sobre o deliberante”. Corrobora com nossa perspectiva, em outros termos, Arash Abizadeh (2017, 12), para quem “o raciocínio é um processo pelo qual os agentes racionais formam crenças”. Logo, se “as paixões são causadas por crenças e são constituídas por julgamentos avaliativos”, então a razão coparticipa da formação das paixões e, por consequência, da vontade.
Disso que foi dito, devém uma ideia de razão como “uma potência capaz de ordenar os nomes, matéria da qual são feitos os conceitos” (Gomes 2012, 104). Mas os nomes, espécie de coisas com o que a razão é capaz de calcular, são objetos do consenso e da disputa. A verdade disso se torna mais evidente, segundo penso, na justaposição entre as duas faculdades (paixão e razão), onde a paixão se mostra como uma operação indiretamente racional, como já explanei, mas, fundamentalmente, quando a razão opera de forma apaixonada. Se a razão é capaz de produzir representações para o cálculo racional, seria possível pensar uma razão plenamente neutralizada, do início ao fim de sua operação? Ora, os objetos do entendimento não são artefatos caídos do céu, mas arranjos políticos artificiais, que condicionam a forma em que a razão vai proceder seu cálculo. Não penso, com isso, um desvio da razão natural, mas em pontos de partida que fazem com que a razão também participe do jogo de interesses egoístas, que aquela tradição dualista, citada acima, suponha superada pelo império da razão e da sociedade civil.
A paixão recebe seu material das faculdades cognitivas do homem, destacadamente da razão. Esta última, já dissemos, é um cálculo de nomes e os nomes são objetos convencionais. Cada nome, nesse sentido, é um corpo sutil, produzido por convenções humanas, mas tão poderoso que é capaz de criar experiências e dar objetos para as paixões. O que não foi dito, porém, é que Hobbes não tem uma visão olímpica dos consensos – ao menos, não a visão neoclássica do Olimpo. O consenso pode ser ensejado de forma espontânea, por convergência de interesses, mas também – e mais comumente – pela coação do poder, seja físico ou mais suave, como o político, econômico ou religioso (ver, por exemplo, o Cap. XX do Leviatã). Pelo consenso das palavras, suponho acontecer o mesmo. Os termos são consensuais e não podem não ser, para que tenham todo o efeito esperado. Entretanto, o pretexto para se produzir cada termo pode ser da ordem do poder ideológico, da coação física ou mesmo do universo da fantasia (Sobre os múltiplos poderes, ver Cap. X do Leviatã). Essa multiplicidade de exercícios de poder, que concorrem e subsistem em conflito, não deve ser confundida com a homogeneidade do poder do Estado soberano que, como fim político, vem apaziguar os diversos poderes com o Poder. Ou seja, não se pode conduzir a leitura hobbesiana do Estado para o campo em que falta esse ente artificial, seja no estado de natureza, na guerra civil ou no crime, simplesmente. A própria necessidade de desenvolver uma teoria do estado de natureza mostra que a natureza humana existe, antes da sociedade civil, e persiste, mesmo sob a tutela do Estado – e é por isso que é necessário o superdimensionamento dos poderes do Leviatã. Portanto, em suma, antes do Estado (ou tentando fugir do olhar vigilante do soberano), a razão e a linguagem, como armas da guerra de todos contra todos.
Examinando a questão, o curso da reflexão nos leva ao âmbito da linguagem, que determina a ida para além daquilo que poderia ser chamado de mera natureza ou mesmo de um mundo subjetivista. Como vimos, a razão nos informa que há uma cadeia causal entre os objetos internos e aqueles objetos externos, recebidos pelas sensações. Todavia, mesmo negando o solipsismo, dando conteúdo material para as representações, também materiais, Hobbes (2003, 29s; 1994, 16) vai além, posto que é preciso que a linguagem não seja meramente uma idiossincrasia. Ela é, portanto, um acordo por meio do qual os homens fazem saber seus pensamentos, vontades e interesses a outros homens. Esse movimento se dá pelo entendimento, faculdade cognitiva que consiste na formação de representações mentais pela interpretação dos discursos (Hobbes 2003, 23 e 37; 1994, 11 e 21). Se digo, por exemplo, que escrevo esse texto no alto de uma montanha, vendo um longo e largo horizonte, o leitor é capaz de formar essa imagem na cabeça, mesmo que seja mentira, e eu esteja escrevendo em um quarto pequeno, escuro e frio. Este é o poder criador da linguagem que, segundo a faculdade do entendimento, é capaz de produzir arranjos materiais na mente humana.
Para Hobbes, a imaginação é um fato material, existente fisicamente na mente humana, e relacionada, pelo exercício da razão natural, com o mundo extensivo. Porém, essa relação entre os objetos da mente e aqueles do mundo externo pode se romper, quando falamos do uso inadequado da razão. O que sustenta a subsistência relativa da experiência é exatamente a capacidade de produzir coisas artificiais, convenções, que só são possíveis por meio da comunicação e do entendimento mútuo, mas essa mesma comunicação pode produzir fantasias e fantasmas, por mentira, engano ou ignorância. Esse aspecto deve ser bem iluminado para que se leve a bom termo a teoria definitiva das paixões (e da política), em Hobbes.
Nesse sentido, se pode dizer que os objetos das paixões são valorados em códigos e sistemas sociais compartilhados por meio da linguagem. A expressão do valor de um objeto, o que o faz objeto da paixão, não é pertencente à natureza do próprio objeto, mas às representações que o homem faz de si e do mundo circundante. A propósito, Hobbes (2003, 335; 1994, 264) até sustenta uma difusão absolutamente supernatural de objetos das paixões, quando se refere às fantasias, ou seja, “os habitantes imaginários do cérebro do homem”. Para se notar a força concreta da realidade criada pelas representações, destaco a religião como sistema social, moral e político que se funda, em parte, sobre fantasmas: “e é nestas quatro coisas, a crença nos fantasmas, a ignorância das causas segundas, a devoção pelo que se teme e a aceitação de coisas acidentais como prognósticos, que consiste na semente natural da religião” (Hobbes 2003, 96; 1994, 66).
No consenso necessário para o surgimento institucional da região, também participa a linguagem, mas também a razão, embora não se possa dizer que ela tenha sido retamente guiada, em todo caso, posto que muitas vezes ignora as leis de causalidade. Cada qual considera sua razão como verdadeira e justa, mas uma razão não educada pode falhar, seja pelo conjunto das premissas ou pelo desvio do cálculo. Nisso, Hobbes (Hobbes 2003, 374; 1994, 300) é bastante explícito, conforme podemos ler no Leviatã:
e o problema não é mais o de saber se o que vemos fazer é um milagre, ou se o milagre de que ouvimos falar ou sobre o qual lemos é um fato, e não um ato da língua ou da pena, e sim, em termos simples, se o relato é uma verdade ou uma mentira. E quanto a esse problema nenhum de nós deve aceitar como juiz a sua razão ou consciência privada, mas a razão pública, isto é, a razão do supremo lugar-tenente de Deus.
Observa-se, assim, que a ausência de coincidência entre as representações e os objetos representados pode conduzir o homem para a ação apaixonada, de todo modo. Isso, em conjunto com a paixão do homem pela honra e pelo discurso, conduz a uma rede de mentiras e enganações capazes de fazer as paixões humanas se fixarem a objetos fantasioso e mentirosos, o que pode acarretar o desfazimento dos pactos sociais, inclusive. Hobbes (1840, 167) se refere a esse fenômeno quando narra os acontecimentos da Guerra Civil Inglesa, no seu Behemoth: os “ministros de Cristo” e “embaixadores de Deus”, que diziam ter “recebido o direito de Deus para governar cada uma das paróquias e a sua assembleia de toda a nação”, promoveram a sedução e o motim dos soldados e da população em geral.
Note-se, no caso acima, que o uso da linguagem na propagação da mentira não é um artifício de segunda ordem. A autodeclaração dos líderes sediciosos como ‘ministros de Deus’ é a condição do próprio conflito. É fundamental, nessa mobilização das paixões contra o rei Charles, que os líderes sejam capazes de criar representações na mente de uma larga camada da população, a fim de unir a todos para o intento golpista. Como se nota, falo de um movimento absolutamente explicito em que a paixão esteve completamente enredada num conjunto de representações que não foram bem avaliadas pela razão, seja por tolice ou por mero engano das premissas. A causa disso é absolutamente transparente, em o Leviatã:
a ignorância das causas naturais predispõe os homens para a credulidade, de modo que acreditem muitas vezes em coisas impossíveis. Pois, como nada conhecem em contrário que possa ser verdadeiro, são incapazes de detectar a impossibilidade. E a credulidade, dado que os homens se comprazem em que se lhes dediquem atenção, predispõe-nos para mentir. Assim, a simples ignorância, sem ser acompanhada de malícia, é capaz de levar os homens tanto a acreditar em mentiras como a dizê-las; e por vezes também a inventá-las. (Hobbes 2003, 91; 1994, 62).
A malícia acrescenta um fator de preocupação extra nesse contexto. Se a mera ignorância pode produzir paixões que depõem contra a soberana de todas as paixões (ou o medo da morte) e a máxima lei da razão (a autopreservação), a malícia pode produzir o aniquilamento da possibilidade da paz e a destruição da ordem social. A linguagem, portanto, deve ser controlada. Muito embora Hobbes (Hobbes 2003, 31; 1994, 17) identifique alguns abusos da razão, ao contrário de autores como Samuel Pufendorf (1997, 159), para quem a razão impõe certos deveres para aqueles que usam a linguagem, Hobbes tem noções mais realistas. Claro que é possível produzir discursos verdadeiros sobre o mundo, mas também é possível enganar, mentir, manipular etc. por meio da linguagem, sem supor uma irracionalidade dos meios. E se assim o é e as paixões dependem de dadas representações, então é possível manipular as vontades.
Hobbes tem consciência desse problema e desenvolve sua doutrina política também como uma doutrina do discurso. O ofício do soberano inclui a prescrição de quais “opiniões e doutrinas são contrárias à paz, e quais as que lhe são propícias” (Hobbes 2003, 152; 1994, 113), por meio do qual é possível controlar a malícia e a ignorância das causas, mas também punir os que abusam da linguagem para promover a sedição. Por isso, Hobbes (2003, 254; 1994, 197) afirma que “quem violar a lei baseando-se nos seus próprios sonhos e pretensas visões, ou nos de outrem, ou numa fantasia do poder dos espíritos invisíveis diferente da que é permitida pela república, estará se afastando da lei de natureza, o que é um delito certo”. Disso se depreende que não é que a lei natural imponha uma espécie de ética do discurso, como Pufendorf propõe, mas se o discurso é utilizado para promover a quebra do pacto social, fere a lei natural. Somado a isso, se o discurso também é contrário à lei civil (e se é contrário a lei natural, deve ser proscrito pela lei civil), tem-se aí condição suficiente para a punição.
Diante do exposto, consideramos que a razão não é par antagônico da paixão, em Hobbes. Pelo contrário, ela se encontra presente no processo de deliberação, conforma sua participação perene na formação das representações dadas à paixão. Isso não significa, por outro lado, que toda paixão seja conduzida retamente pelas leis da razão. Há, no processo descrito acima, um sem-número de erros, enganos, desvios que podem levar ao malogro da ação apaixonada, ou seja, volitiva. Tal constatação é dramaticamente explicita na realidade política dos povos. Sempre foi, mas com contornos novos, hodiernamente, ganha atualidade.
Deparamo-nos, nos últimos anos, com os fenômenos das fake news como motivo da ação concertada. A reação política foi de perplexidade; ainda desconjuntada, a contraposição institucional está a buscar um arrumamento contra esse fenômeno novo – ou nem tão novo. Talvez a dimensão que esse fenômeno ganhou, no tempo atual, devido às redes sociais, seja, de fato, uma grande novidade, mas a mentira nunca esteve distante da ação política e da vida social. As teorias filosóficas e políticas, de diversas formas, tentaram lidar com essa questão. Alguns autores de forma mais prescritiva (como Pufendorf), outros de forma mais descritiva (como Hobbes), buscaram examinar a questão e enredá-la em um discurso coerente sobre a vida política. Alguns até tentaram eliminar a mentira do campo da ação política, o que me parece um contrassenso.
O certo é que em teóricos como Hobbes, tal abuso político da mentira não tem lugar no estado civil. Sua proposta do Estado como doutrinador, por exemplo, quer exatamente criar um lugar em que a fake news (com o perdão do anacronismo) não tenham vez. E não sendo uma teoria da razão de estado, não tenha vez nem sob a guarda da soberania – o soberano não pode mentir para não falir as circunstâncias da sua soberania, não por dever para com o súdito. O abuso da linguagem, da enganação e da mentira, em Hobbes, é crime e precisa ser punido pelo aparato legal do Estado, ou vira fator de desobediência, revolta e insuflamento de massa contra a paz social e a vontade de todos, conforme a mecânica descrita acima.
Não digo, com isso, que a teoria hobbesiana seja a única alternativa. Há outras. Não crendo em natureza humana fixa, o que quero deixar claro é que a estrutura estatal moderna tem essa lacuna problemática, devido a um modo de realização da vida humana específico das sociedades modernas, tal como Hobbes bem demonstra. Os resultados são históricos. Teorias como a de Hobbes nos ajudam a entender o modo – e não tanto a causa – do fenômeno.
Por fim, resta dizer que a ação política concertada, massificada, requer uma unidade das paixões. A natureza dessa faculdade, porém, é incompatível com tal concerto, senão pela participação da razão e das suas representações. A definição clássica de República, de Sólon e Cícero até Maquiavel e Bodin, exige tal ação voluntária dos sujeitos. Se não é possível confiar na razão infalível, seja do próprio homem ou da graça perene de Deus, resta o perigo da guerra e da morte violenta, pela ausência do Estado. Esse foi o medo que movimentou Hobbes a supor o soberano, inclusive, como senhor da doutrina filosófica, religiosa e moral.
Abizadeh, Arash. 2017. “Hobbes on Mind: Practical Deliberation, Reasoning, and Language.” Journal of the History of Philosophy 55 (1): 1-34. https://doi.org/10.1353/hph.2017.0000.
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Francisco Luciano Teixeira Filho es Profesor Adjunto de la Universidade Estadual do Ceará (Brasil); Miembro Colaborador del IEF-UC; e Investigador Visitante de la Universidade Federal de Ceará (Brasil).
Líneas de investigación:
Teoría Crítica y Filosofía Social y Política.
Publicaciones recientes:
Teixeira Filho, Francisco Luciano, and Marcela da Silva Uchôa. 2024. “Ensaio contra o proclamado fim da história: elementos de discussão para um novo radicalismo.” Revista Izquierdas 53. https://doi.org/10.4067/s0718-50492024000100222.
Teixeira Filho, Francisco Luciano. 2024. “História e dialética do esclarecimento: alegoria e crítica ao progresso.” Cadernos de Filosofia Alemã 29 (2). https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v29i2p13-32.
Teixeira Filho, Francisco Luciano. 2024. “A ideologia moderadora da FFAA brasileira e a opinião de Hobbes e Constant.” Argumentos: revista de Filosofia 31. https://doi.org/10.36517/Argumentos.31.13.
Email: luciano.teixeira@uece.br
1 “...o único papel da razão no processo deliberativo é ajudar a determinar como alcançar um objetivo definido pelo desejo – ela não dita um objetivo nem nos motiva para persegui-lo.” (Hampton 1988, 19)
2 As citações de ‘Do cidadão’ serão apresentadas conforme a tradução brasileira de Renato Janine Ribeiro, em cotejamento e adaptadas crítica conforme a edição inglesa On the Citizen, vinda à luz pela Cambridge University Press, em 1998.
3 Diversamente de Renato Janine Ribeiro, preferimos traduzir “desire” por desejo, como intuitivamente se faria. Manterei essa tradução e, além disso, sustentarei a “passion” como paixão.
4 “Dado que a constituição do corpo de um homem se encontra em constante modificação, é impossível que as mesmas coisas nele provoquem sempre os mesmos apetites e aversões, e muito menos é possível que todos os homens consintam no desejo de um só e mesmo objeto.” (Hobbes 2003, 48; 1994, 28).
5 “De acordo com o método da natureza, o sentido é anterior ao apetite. Pois não se pode saber se o que vemos como um prazer o teria ou não, exceto pela experiência, isto é, pelo sentimento. Por isso costuma-se dizer que não há desejo pelo desconhecido”. (Hobbes 1978, 46).
6 “...imaginação e a memória são uma e mesma coisa...” (Hobbes 2003, 19; 1994, 9).
© Contrastes. Revista Internacional de Filosofía, vol. XXX Nº2 (2025), pp. 72-85. ISSN: 1136-4076
Departamento de Filosofía, Universidad de Málaga, Facultad de Filosofía y Letras
Campus de Teatinos, E-29071 Málaga (España)